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No vale do Nilo acontece essencialmente algo paralelo ao ocorrido na China, Índia e Mesopotâmia. Uma civilização mítica ali emerge, por volta do terceiro milênio antes de Cristo, de um neolítico centrado na cultura do trigo. Essa mantém ritualisticamente as paleotécnicas da agricultura, da cerâmica e da medicina e estabelece as da mineração e metalurgia, as da arquitetura e, principalmente, a das tinturas de vidros, tecidos e cosméticos. Também a astrologia e a paleomatemática egípcia são de origem mítica. As primeiras são técnicas mágico-míticas e as últimas são mânticas. As técnicas dos metais e da forjaria, assim como as da fabricação de vidros coloridos e das tinturas, de um lado; e de outro, as da medicina e da astrologia, mostram analogias e coincidências significativas entre si, como se o refino dos metais e o preparo das pedras ornamentais se relacionassem com a cura das doenças e a conquista da imortalidade. Algo de específico, no caso do Egito, é que essas técnicas originárias da alquimia estavam muito ligadas ao culto dos mortos. A protoquímica do processo de mumificação deve ter sido importantíssima nessa unificação. O simples fato de a mumificação ter como objetivo a imortalidade e divinização dos mortos deve ter sido, por isso, decisivo para o posterior aparecimento da alquimia egípcia.
Não se dispõe de documentos que atestem a atividade desses grupos de protoquímicos ou protomédicos da civilização mítica egípcia; mas há testemunhos de persistência de tais atividades, já então arcaicas, em épocas mais recentes. Um deles é o célebre Papiro de Leiden, o outro é o Papirus Holmiensis de Estocolmo, encontrados numa mesma coleção, no fim do século passado em Tebas, e que datam dos primeiros séculos de nossa era. Ambos tratam de simples técnicas protoquímicas, de metalurgia, de tinturas, de preparação de pedras ornamentais e da fabricação de ouro e prata. São tais documentos que permitem concluir pela existência de tais técnicas na civilização mítica egípcia.
Em 525 a.C., Cambises, rei da Pérsia, anexa o Egito ao Império Persa. Neste momento, embora sagrando-se Faraó, ao fundar a XVII dinastia, Cambises destrói a civilização mítica egípcia, forçando seu confronto com a sapiência caldaica. Não há dúvida que os antigos mitos egípcios persistem; mas, agora sujeitos a uma interpretação sapiencial, isto é, sujeitos à reflexão individual, preocupada com a procura de uma verdade única. Ísis, Hórus, Osíris e Thot não seriam, a partir de então, personagens míticos mas deuses revelados ou profetas reveladores. Por volta do ano 300 a.C. a conquista do Egito por Alexandre veio estabelecer definitivamente o advento de uma civilização sapiencial no Egito, pelo estabelecimento, em Alexandria, da cultura helenística. Aliás, tal cultura era baseada numa forma toda peculiar de sabedoria: a filosofia grega, que apareceu na Grécia clássica 600 anos antes de Cristo.
Um dos mais antigos textos helenísticos referentes á alquimia intitula-se A Profetiza Ísis para Seu Filho, onde Ísis revela como obteve de um anjo – que a desejava sexualmente – o grande segredo da técnica egípcia. Note-se que isso se dá num momento favorável da posição dos astros no céu: é o Kairos, o momento favorável – que domina um dos aspectos da alquimia helenística. O que revela o anjo não são somente receitas mágicas para obtenção do ouro alquímico mas, também, a necessidade da união dos opostos para conseguí-lo, no momento favorável; o que é expresso pela exortação final de Ísis a seu filho Osíris: “De modo que tu és eu e eu sou tu”. Isso indica que, nessa época, a técnica mítico-mágica da transmutação dos metais já se subordinava a um princípio sapiencial: o de que tudo resulta da constante oposição dos contrários e sua final conjugação.
Dessa forma, a alquimia egípcia – semelhantemente à chinesa, à hindu e à caldaica – provém de técnicas mágico-míticas. Mas, ela só se constitui definitivamente como tal depois de se tornar possível a visão dessas técnicas sob um ponto de vista sapiencial, baseado em meditações sobre a unidade e a verdade. Tal sabedoria aparece me Alexandria, entre o terceiro século antes e o terceiro depois de Cristo, como resultado de um sincretismo do neoplatonismo grego, da cabala judaica, da mântica caldaica e da mítica egípcia. Plotino (205-270), o filósofo neoplatônico helenístico, com sua procura mística de união com o bem, através da inteligência, constitui-se como ponto de ligação entre a filosofia grega e a sapiência alexandrina.
Essa ligação foi expressa pelo neoplatônico sírio Jâmblico (250-330) que transformou a filosofia mítica de Plotino numa teurgia ou conjugação mágica de deuses. Seu livro mais conhecido, Os Mistérios do Egito, escrito em grego, é uma resposta à carta de Porfírio a Amélio refutando qualquer teurgia e as práticas de adivinhação da época. O livro Jâmblico é, portanto, uma defesa da teurgia, isto é da possibilidade da manipulação mágica dos deuses em prol da satisfação de desejos humanos. Faz ele apelo à sabedoria caldaico-egípcia, a qual se apoia na crença de uma co-naturalidade entre a alma humana e os seres divinos que governam o cosmo e a matéria. A verdade única vem dos deuses mas pode ser conhecida pelos homens através da mântica – as adivinhações em todos os seus aspectos: pelos sonhos, pela inspiração ou processão, pelos oráculos, etc. Mas é de se notar que a defesa da teurgia é feita recorrendo à filosofia grega, especialmente a platônica e, freqüentemente, à de Plotino.
Os mistérios do Egito são, além do mais, um testemunho do parentesco entre doutrinas caldaicas, a literatura hermética e o neoplatonismo; pois, uma das fontes de Jâmblico seriam os Oráculos Caldaicos, redigidos o segundo século de nossa era, onde velhos mitos babilônicos são associados a teorias filosóficas em torno da heliolatria zoroastriana. Mas, enquanto para os neoplatônicos o conhecimento da divindade é um meio de comunicação com os seres espirituais, para Jâmblico isso poderia ser conseguido pela conjuração mágica, embora guiada pela filosofia.
Tal parentesco é visível nos livros do Corpus Hermeticus – coleção de tratados – escritos em grego, provavelmente compostos entre o primeiro e o fim do terceiro século de nossa era, atribuídos ao personagem lendário Hermes Trimegistro, nome também atribuído ao deus Thot, revelador das técnicas e da escrita. São revelações da sabedoria divina, nas quais o cosmo constitui uma unidade cujas partes são interdependentes – princípio este que se tornou básico na alquimia. Mas, para tornar este princípio operativo e atuante na prática, seria necessária uma sabedoria hermética, secreta e sagrada. Evidentemente os tratados herméticos não são de alquimia, mas estabeleceram, além de preceitos de conjuração dos deuses em prol da satisfação de anseios humanos, inclusive imortalidade, uma interpretação sapiencial das técnicas mágico-míticas egípcias.
Um dos primeiros textos alquímicos helenísticos é a Physica kay Mistika do pseudo Demócrito, do segundo século de nossa era. O livro inicia-se por uma revelação. O autor é conduzido ao templo de Mênfis pelo mago caldeu Ostanes. Uma das colunas abre-se e mostra o aforismo zoroastriano: “a natureza é encontrada pela natureza, a natureza vence a natureza, a natureza domina a natureza”. Assim é um tratado grego que confessa uma influência caldaica na alquimia grega. O interessante é que as receitas mágicas para obtenção do ouro e da imortalidade são, neste livro, justificadas fazendo apelo, de um lado, à teoria grega dos quatro elementos e, do outro, à mântica caldaica da astrologia e do culto do fogo.
Contudo o primeiro alquimista egípcio autenticamente identificado, é Zózimo de Panápoles, que floresceu por volta do ano 300 de nossa era, em Alexandria. Zózimo, embora tenha sido o primeiro alquimista a ser chamado “filósofo”, refere-se à alquimia como técnica sagrada (leratiche techné) que trataria tanto da transformação dos metais em ouro, por sua morte e ressurreição, como da encarnação ou desencarnação de espíritos. Tudo isso feito através de operações protoquímicas de destilação, sublimação e coagulação, em instrumentos inventados e construídos pela alquimista Maria, a Judia (daí o famoso nome do equipamento de laboratório trazido até nossos tempos: o “banho-maria”). É de Zózimo também a idéia de que existe uma substância que produza a transformação imediata do metal em ouro, quando projetada nela – a substância que sucessivamente toma o nome de tintura, elixir e, finalmente, pedra filosofal. Seria considerada de virtudes semelhantes às dos remédios, que curavam doenças ou davam longa vida ou, mesmo, eternidade.
Zózimo aceita a idéia caldaica de que os processos alquímicos dependem da conjuntura dos astros e que cada astro corresponde a um metal. Operar com a prata exige uma posição adequada da lua, tanto como para operar com sucesso sobre o cobre é necessário que Vênus ocupe uma posição correta no céu. Isso corresponde à idéia do Kairus revelada por Ísis. Por isso a obra alquímica tomou o nome de Kairus Baphoi na tradição helenística.
De Alexandria a alquimia passou para Bizâncio quando essa cidade formou-se como capital do mundo helenístico e, depois, do império oriental. Um célebre alquimista bizantino é Olimpiodoro (século V), tido como o autor do livro Sobre a Sagrada Arte da Pedra Filosofal – o qual testemunha a alquimia bizantina nos mesmo moldes que a helenística. Entretanto, há uma diferença fundamental: Olimpiodoro é cristão e, além disso, versado na filosofia rega. Portanto, para ele, o processo alquímico não necessita da magia para realizar-se, mas, é possível ser compreendido pela teoria grega aliada à mística cristã. Esta atitude nova inaugura uma divisão, no mundo cristão, entre a alquimia dita séria e o charlatanismo mágico. Ele procura interpretar os textos e receitas alquímicas “sérias” à luz das escrituras, entendendo o sentido último de ambos, não os aceitando literal mas, simbolicamente. Um texto de Olimpiodoro é citado e interpretado sobre este enfoque, por Marie Louise von Frans, onde se descreve a transformação de algo personificado no Adão original – o homem moldado de barro, a matéria-prima original, a substância assimilada ao chumbo no processo alquímico. Depois de sofrer a morte pelo fogo e a ressurreição, une-se, como metal trazido das profundezas da terra, a sua esposa, seu oposto, simbolizado no vapor. Desta conjuntio, a união dos opostos, resulta uma substância líquida amarga, significando uma reflexão profunda da qual resultaria algo verdadeiramente desagradável para a consciência: o limiar do inconsciente, com suas formas obscuras e a ausência das ilusões do consciente. A opus alchimica prossegue até que o líquido amargo se vá engrossando e, finalmente, coagule em ouro alquímico. Tudo isso é, para Olimpiodoro, expressão simbólica do desejo de perfeição e imortalidade humana. Assim, a alquimia seria para Olimpiodoro mais um processo mental que uma sabedoria da matéria. Aliás isso já era sustentado, quase um século antes, por Sinésio de Cirene (c370-413), bispo de Ptolemais, na Líbia.
Quando os árabes conquistaram a Pérsia e o Egito, no século VII, entraram em contato com estas duas civilizações sapienciais, e absorveram-lhes a cultura por meio da tradução de seus livros. Entre os livros gregos, traduzidos para o árabe, estava O Livro dos Segredos da Criação – uma cosmogênese entremeada de conceitos alquímicos atribuída a Apolônio de Tiana, provavelmente do primeiro século de nossa era, um neoplatônico cuja figura biográfica, embora pagã, assemelha-se muito à de Cristo. Uma parte deste livro é a célebre Tábua Esmeraldina que, embora nada diga sobre as técnicas alquímicas, tornou-se para os árabes a obra básica de sua alquimia. O prestígio desta Tábua tornou-se tal que sua autoria foi atribuída ao próprio Hermes Trimegistro.
A Tábua Esmeraldina inicia-se pela conhecida frase: “O que está em cima é semelhante ao que está abaixo, e o que está abaixo é semelhante ao que está acima”. Segue-se uma série de máximas cujo significado hermético foi interpretado pelos alquimistas não só árabes mas, também, europeus, como uma interpretação sapiencial do que ocorria durante a opus. A partir do princípio do que o mais alto provém do mais baixo e vice-versa, e que tudo é obtido do único por meio da conjunção dos opostos, a obra, partindo da união do sol com a lua, engendra o sopro vital: o mercúrio, cuja aura é a terra. Ele é o fermento da transmutação dos metais, separa a terra do fogo, e o que é precioso do que é grosseiro; eleva-se da ao céu e retorna para unir o que está embaixo ao que está acima. É a força que penetra tudo que é sólido e assim cria-se o microcosmo, imagem do universo. Esse é o processo alquímico, interpretado pelos árabes, a partir da sabedoria helenística.
Por outro lado, as fontes caldaico-persas da alquimia árabe são evidentes na importância conferida ao fogo, como agente das transmutações nas operações alquímicas. Disse ser a cidade de Harram, na Síria, a fonte principal da alquimia árabe; mas é possível que essa influência caldaica já tenha sido, anteriormente, transferida e incorporada à alquimia helenística, antes dos árabes a terem absorvido.
De qualquer forma, a alquimia árabe tem uma peculiaridade. Ela, em si mesma, não evoluiu de um estado de técnica mágico-mítica, nem é um resultado de uma interpretação sapiencial de uma técnica preexistente. Ela foi adquirida pelos árabes, por assim dizer, já pronta. Foi transposta de suas origens alexandrino-caldaicas para o contexto árabe já na forma de alquimia e não de técnica mágico-mítica. Tanto é assim que é possível que o primeiro livro árabe de alquimia seja o Livro da Composição Alquímica, escrito pelo conquistador árabe do século VII, Príncipe Chalite ibn Yazid, relatando o que lhe fora transmitido por um monge romano-egípcio, Morienus.
Por outro lado, os alquimista árabes puderam distinguir nitidamente entre o conteúdo protoquímico das operações alquímicas e as diferentes interpretações sapienciais projetadas sobre ele. Isto porque estavam em contato direto com as diferentes sabedorias: as alexandrinas, com sua origem sincrética greco-egípcio-judaica; os persas e sírios, com sua origem caldaica; e as hindus, com sua origem budista. Percebiam que a interpretação sapiencial era diferente, mas a técnica subjacente era a mesma. Disto resultou que muitos destes foram mais protoquímicos experimentais que místicos sapienciais. Daí o grande desenvolvimento da paleoquímica árabe – a qual realmente formou a base da química européia. Assim é que o interesse principal da alquimia árabe era o da preparação dos elixires para a cura das doenças. Formaram eles uma farmacopéia de remédios, à base de sais minerais, a qual permaneceu em uso até bem próximo de nossos tempos.
Entre os responsáveis por essa farmacopéia estão os dois primeiros grandes alquimistas árabes. O primeiro é Jabir ibn Hayyan (c721-815), o mesmo que esteve na Índia e é dito erroneamente criador da alquimia hindu. Era médico da corte de Harum-al-Rashid. Fazia sua paleoquímica a partir da teoria grega dos quatro elementos, dos quais decorriam os dois princípios básicos: o mercúrio e o enxofre, a partir dos quais formavam-se todos os metais, quando combinados em proporções diversas, a quantidade fabulosa de tratados atribuído a uma coleção de escritos produzidos escondidamente em Bagdá, durante uma perseguição religiosa aos alquimistas.
O segundo é Al-Razi (c860-923) conhecido pelo nome latino de Rhazes, médico persa que viveu em Bagdá, autor da Enciclopédia médica Continente de Medicina e mais uma centena de livros. A medicina de Rhazes era baseada na grega; no entanto não faltavam nela os elementos mágicos que a traziam francamente para a alquimia, no que concerne, principalmente, ao uso de drogas da farmacopéia árabe, cujas virtudes eram atribuídas a poderes mágicos.
Apesar disso não se podem esquecer os aspectos decorrentes da filosofia grega e místicos decorrentes da sabedoria alexandrina, tanto como a magia, a numerologia e a astrologia caldaica, nunca saíram dos interesses dos alquimistas árabes.
Quando Constantino, o Africano – que era um médico muçulmano formado em Bagdá e morreu como monge cristão em Monte Cassino, em 1087 – trouxe a farmacopéia árabe para a Europa, esta paulatinamente foi perdendo seu caráter mágico e transformando-se em medicina leiga. Referências a essa coleção de “elixires” árabes começaram a aparecer na Espanha a partir do século XI, incluídas nos tratados alquímicos árabes, os quais foram traduzidos para o latim a partir do século XII.
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