Categorias
Alquimia

Alquimia em Primeira Pessoa

Este texto foi lambido por 104 almas esse mês

por Thiago Tamosauskas

Se magia é a arte de transformar a realidade segundo a vontade, a alquimia pode ser entendida como uma grande área da prática mágica na qual o objetivo é transformar a si mesmo segundo a vontade. Ao mudarmos nós mesmos, mudamos nossa forma de atuação no mundo e ao mudarmos nossa atuação mudamos o mundo em si. Tendo essas definições em vista podemos dizer que Fernando Pessoa foi, à sua maneira, uma espécie de alquimista. Em sua obra literária, transmutou sua própria essência em muitos heterônimos de forma a atingir, com cada um deles, um objetivo diferente. 

Álvaro de Campos pode ser visto com um testemunho do Nigredo. Nesse heterônimo às emoções estão à flor da pele, há uma inquietação para experimentar todas as sensações possíveis, mas também extremos de euforia e depressão. Já Ricardo Reis com seu refino estoico clássico e controlado, tem muito da personalidade de um alquimista experiente no Albedo, alguém que aprendeu a encontrar e clareza equilíbrio diante do caos e da complexidade da vida. Mas é – ao contrário do que poderia parecer em uma leitura apressada – em Alberto Caeiro que encontramos uma espécie de Rubedo no qual a imagem do matuto é um espelho da experiência direta com a realidade, capaz de ver o mundo exatamente como é, como se tivesse acabado de nascer.

Mas e Fernando Pessoa, ele mesmo, o que seria? Sabemos de seus interesses em ocultismo, que sua biblioteca pessoal continha obras de Eliphas Levi e Helena Blavatsky e que ele entendia de astrologia o suficiente para corrigir o mapa astral de Aleister Crowley mas e com relação a alquimia? Teria ele deixado em sua obra algum legado mais claro de seu aprofundamento alquímico? A resposta, como veremos, é sim, mas teremos que visitar o interior da terra para encontrá-la. Ela não está explícita em nenhuma obra ou poema publicado, mas está presente em diversas anotações e fragmentos de espólio deixados a posteridade.

Em “Fernando Pessoa e a Filosofia Hermética” de Yvette K. Centeno. (1985) lemos na página 45 um trecho do poeta nos brinda com sua própria definição de Alquimia colocando-a em pé de igualdade à Magia e ao Misticismo os três pilares do Esoterismo:

“Afinal o conteúdo dos mistérios resume-se em ensinamentos, sobre três ordens de coisas, que sempre se julgou que não devem ser reveladas ao geral dos homens. Sempre se julgou que aqueles ensinamentos, que as religiões ministram, deveriam ser adaptados à mente dos que a os recebem, e, como muitos deles — tal é a opinião dos iniciados — são de ordem que o povo em geral os não compreenderia e que portanto, compreendendo os pervertidamente, se perturbaria com ele, segue que se pensou que esses ensinamentos se deveriam dividir em duas ordens: exotéricos ou profanos os que são expostos de modo a que todos possam ser ministrados; esotéricos ou ocultos os que, sendo mais verdadeiros, ou inteiramente verdadeiros, não convém que se ministrem senão a indivíduos previamente preparados, gradualmente preparados, para os receber. A esta preparação se chamava, e chama, iniciação. E esta iniciação é ela mesma gradual em todos os mistérios, e de tal modo disposta que o indivíduo inapto para receber esses ensinamentos ocultos se revela tal antes que eles lhe sejam inteiramente dados.

Se esses ensinamentos ocultos são verdadeiros, ou apenas especulações abstrusas, é outro problema. Se os hierofantes do oculto têm, na verdade, maior conhecimento da verdade pura do que nós profanos, que a buscamos, se a buscamos, com a leitura; ou a meditação, ou a inteligência discursiva e dialéctica — não o podemos nós saber. Tudo isso pode ser sinceramente crido pelos iniciados, e ser falso. O oculto pode ter alucinações próprias, enganos seus.

Seja como for, o certo é que os ensinamentos ministrados nos mistérios abrangem três ordens de coisas: (1) a verdadeira natureza da alma humana, da vida e da morte, (2) a verdadeira maneira de entrar em contacto com as forças secretas da natureza e manipulá-las, e (3) a verdadeira natureza de Deus ou dos Deuses e da criação do mundo. São, respectivamente, o segredo alquímico, o segredo mágico, e o segredo místico. Ao primeiro chama se alquímico porque os ensinamentos relativos a ele são em geral ministrados através de símbolos da chamada alquimia, que não é mais, como hoje claramente se sabe, do que uma linguagem simbólica.”

Em outras palavras, Pessoa entendia a alquimia como “uma linguagem simbólica sobre a verdadeira natureza da alma humana, da vida e da morte”. Isso não significa que ele ignorava a existência ou não entendia a a razão trabalho em laboratório. Em “Fernando Pessoa: O Amor, A Morte, A Iniciação“, Yvette K. Centeno. nos trás outro fragmento significativo que esclarece este ponto:

“A química oculta, ou alquimia, difere da química vulgar ou normal, apenas quanto à teoria da constituição da matéria; os processos de operação não diferem exteriormente, nem os aparelhos que se empregam. É o sentido, com que os aparelhos se empregam, e com que as operações são feitas, que estabelece a diferença entre a química e a alquimia.

A matéria do mundo físico é constituída de três modos, todos eles simultaneamente reais: só dois desses modos interessam a um nível conceitual diferente, e não é atingível por operações, aparelhos ou processos que sequer se parecem com os que se empregam em qualquer cousa que se chame «química» ou «física» «ocultas» ou não.

A matéria é na verdade, e como crêem o físico e o químico normais, constituída por um sistema de forças em equilíbrio instável, formando corpos dinâmicos a que se pode chamar «átomos» Porque isto é real, e a matéria, considerada fisicamente, é na verdade assim constituída, são possíveis as experiências e os resultados dos homens de ciência, e a matéria é manipulável por meios materiais, por processos apenas físicos ou químicos, e para fins tangíveis e imediatamente reais.

Mas, ao mesmo tempo, os elementos que compõem a matéria têm um outro sentido: existem não só como matéria, mas também como símbolo. Há, por exemplo, um ferro-matéria; há, porém, e ao mesmo tempo, o mesmo ferro, um ferro-símbolo. Cada elemento simboliza determinada linha de força supermaterial e pode, portanto, ser realizada sobre ele uma operação, ou acção, que o atinja e o altere, não só no que elemento, mas também no que símbolo. E, feita essa operação, o efeito produzido excede trancendentalmente o efeito material que fica visível, sensível, mensurável no vaso ou aparelho em que a experiência se realizou.

É esta a operação alquímica.

E isto no seu aspecto externo: porque, na sua realidade intima, é mais alguma cousa do que isto. Como o físico (incluindo no termo o químico também), ao operar materialmente sobre a matéria, visa a transformar a matéria e a dominá-la, para fins materiais; assim o alquímico, ao operar materialmente quanto aos processos mas transcendentemente quanto às operações, sobre a matéria, visa a transformar o que a matéria simboliza, e a dominar o que a matéria simboliza, para fins que não são materiais.

A semelhança, porém, pára aqui. O resultado da experiência física é um produto externo, com que o operador não tem nada, excepto vê-lo, ou ser dono dele, se o é. Mas na experiência alquímica a «força», que o corpo trabalhado simboliza, está em contacto directo com o espírito do operador, e não só do operador, como também de quantos conscientemente o auxiliam (embora sem conhecimento alquímico) na suas experiências. O resultado da experiência, portanto, afecta o operador e os seus «adjuntos» (como se diz) de uma forma diversa e diversamente importante.”

Para Pessoa a química é cartesiana e dialética enquanto que a alquimia é analógica e intuitiva mas ambas fazem quase que exatamente os mesmos experimentos e parecerão idênticos a um observador externo. A perfeição da química científica está na organização onde cada elemento é compreendido isoladamente e tem um papel definido num todo ordenado. Já na alquimia a perfeição está no casamento alquímico, ou seja na correspondência exata entre o que está acima (o interior/espiritual/alma) com o que está abaixo (o exterior/material/corpo). Essa visão pode ser vista neste outro fragmento publicado em “Pessoa por Conhecer – Textos para um Novo Mapa” de Teresa Rita Lopes (1990):

“Assim como a inteligência dialéctica, que tem nome razão, domina e compõe todos os elementos, com que se forma o conhecimento científico, assim também a inteligência analógica, que não tem nome especial, domina e compõe todos os elementos de que se forma o conhecimento oculto. A perfeição da obra material é um todo perfeitamente ordenado, em que cada parte tenha seu lugar e em seus modo e grau concorra para a formação do todo; a perfeição da obra espiritual é a correspondência exacta entre o interior e o exterior, entre a «alma» e o «corpo», de sorte que o conhecimento de um envolva necessariamente o conhecimento completo de outro. A Grande Obra é aquela em que o «metal», sendo composto, segundo a razão, de modo a ser o «ouro», material perfeito, seja, no mesmo acto, composto, segundo a analogia, de modo a ser o «ouro» espiritual simbolizado. Nestas palavras vai a distinção íntima entre a produção artificial do «ouro» segundo a alquimia, e essa mesma produção segundo a ciência. Em ambos casos o «ouro» material será idêntico como matéria, mas o ouro que a ciência produzir não será mais que ouro, pois que, ao fabricá-lo, ela não buscou produzir senão ouro, e o «ouro» que a alquimia produzir será mais que ouro, pois que, ao «fabricá-lo», ela buscou produzir, não só o ouro, senão também o segredo do ouro, ou o segredo áureo. O ouro da ciência será igual ao ouro da Natureza como efeito; o ouro da alquimia igual ao ouro da Natureza não só como efeito, senão também como causa.”

Posta a diferença entre química científica e química oculta, isso não significa que uma seja mais verdadeira do que a outra. Pelo contrário, Fernando Pessoa diz que ambas são ilusórias pois ambas estão ainda dentro da dualidade. Isso significa que nenhuma das duas técnicas sozinhas pode cumprir o proposito da alquimia. No fragmento abaixo, também de “Fernando Pessoa e a Filosofia Hermética”,  ele sugere que para que a Grande Obra seja alcançada a serpente – símbolo dessa dualidade – deve ser enrolar-se em si mesma, transformando o S em 8 (leminiscata) para superar essas limitações:

“No seu feitio de S (que, se se considerar fechada, é 8, e, deitado, igualmente serpentino, Infinito), a Serpente inclui dois espaços, que rodeia e transcende. (O primeiro espaço é o mundo inferior, o segundo o mundo superior.) Em outra figuração serpentina — a da cobra em círculo, a boca mordendo a cauda —reproduz-se, não o S, de que a letra é sinal, mas o círculo, símbolo da terra, ou do mundo tal qual o temos. No feitio de S a Serpente evade-se das duas Realidades e desaparece dos Mundos e Universos.

A ilusão é a substância do mundo, e, segundo a Regra, tanto no mundo superior como no mundo inferior, no oculto como no patente. Assim, quando fugimos do mundo inferior, por ele ser ilusório, o mundo superior, onde nos refugiamos, não é menos ilusório; é ilusório de outra, da sua, maneira. Só a Serpente, contornando os infinitos abertos — ou os círculos «incompletos» — dos dois mundos foge à ilusão e conhece o princípio da verdade.

A magia e a alquimia têm ilusões como a ciência e a sexualidade, que são as suas figurações no baixo mundo. Construímos ficções, com a nossa imaginação, tanto na terra como no céu. O mago, que evoca determinado demónio, e vê aparecer materialmente esse demónio, pode crer que esse demónio existe; mas não está provado que ele exista. Existe, porventura, só porque foi criado; e ser criado não é existir, no sentido real da palavra. Existir, no sentido real da palavra, é ser Deus — isto é, ter-se criado a si mesmo; em outras palavras, não depender substancialmente de nada e de ninguém.

A G. O. [Grande Obra] é a libertação, no homem, de Deus, a crucifixão do desfolhável no morto, do perecível no perecido, para que nada pereça. A G. O., em outras palavras, é a criação de Deus.

A magia e a alquimia são caminhos de ilusão. A verdade está só no instinto directo (representado nos símbolos pelos cornos) e na linha directa da sua ascensão ao instinto supremo; no instinto directo, cuja forma activa é a sexualidade, cuja forma intermédia é a imaginação, fantasia, ou criação pelo espírito, cuja forma final é a criação de Deus, a união com Deus, a identificação abstracta e absoluta consigo mesmo, a verdade.”

Para nossa felicidade, além da definição, da abordagem e do objetivo da alquimia, podemos ainda encontrar um vislumbre do que Fernando Pessoa entendia como o método da alquimia. Ela está em “Páginas de Estética e de Teoria Literárias. Fernando Pessoa.” organizado por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho. (1966):

“O homem de génio é um intuitivo que se serve da inteligência para exprimir as suas intuições. A obra de génio — seja um poema ou uma batalha — é a transmutação em termos de inteligência de uma operação superintelectual. Ao passo que o talento, cuja expressão natural é a ciência, parte do particular para o geral, o génio, cuja expressão natural é a arte, parte do geral para o particular. Um poema de génio é uma intuição central nítida resolvida, nítida ou obscuramente (conforme o talento que acompanhe o génio), em transposições parciais intelectuais. Uma grande batalha é uma intuição estratégica nítida desdobrada, com maior ou menor ciência, conforme o talento do estratégico, em transposições tácticas parciais.

O génio é uma alquimia. O processo alquímico é quádruplo: 1) putrefacção; 2) albação; 3) rubificação; 4) sublimação. Deixam-se, primeiro, apodrecer as sensações; depois de mortas embranquecem-se com a memória; em seguida rubificam-se com a imaginação; finalmente se sublimam pela expressão.”

Aqui está então a resposta para a pergunta que fizemos no início deste artigo sobre qual a posição do próprio escritor português nos processos alquímicos. Se aceitarmos que Álvaro de Campos é a putrefação das sensações, Ricardo Reis o Albedo com o desapego mental e Alberto Caeiro (Não por acaso chamado “O Mestre”) o Rubedo no imagético do poeta, então Fernando Pessoa é aquilo que vem depois da Pedra Filosofal e que ele chama de sublimação. Tudo o que ele fez e nos deixou é uma espécie de Pó de Projeção que expressa tudo o que ele aprendeu nas fases pregressas de sua ascensão alquímica. Ele é o alquimista consciente que observou a transformação acontecer dentro de si e sublimou esses processos em sua poesia sem jamais se identificar completamente com nenhum deles.

BIBLIOGRAFIA

“Caminho da Serpente e outros escritos ocultos” de Fernando Pessoa, Editora Via Sestra

“Páginas de Estética e de Teoria Literárias. Fernando Pessoa.” organizado por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho. (1966):

“Pessoa, Fernando. Fernando Pessoa e a Filosofia Hermética”. Organização de Yvette K. Centeno. Lisboa: Presença, (1985)

“Fernando Pessoa: O Amor, A Morte, A Iniciação” de Yvette K. Centeno. Lisboa: Presença, (1985)

“Pessoa por Conhecer – Textos para um Novo Mapa”, organização de Teresa Rita Lopes, Lisboa, Estampa, (1990)


Conheça as vantagens de se juntar à Morte Súbita inc.

Deixe um comentário


Apoie. Faça parte do Problema.