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Abu Omar Yabir
Excerto do livro Criterium Naturae
Tradução: Andressa Lopes
A medicina não existiu sempre. Essa afirmação é válida tanto a nível epistemológico quanto linguístico. Comecemos pelo princípio: se revisarmos qualquer manual de História da Ciência, das Artes ou de qualquer atividade da humanidade, perceberemos que se narra um processo temporal de forma linear e progressiva. Quase poderíamos dizer que qualquer manual apresentado como “História de…” nos mostrará uma série de concatenações tendendo a uma meta, embora sempre ignorada.
Por acaso, não estamos acostumados a expressões tais como “avanço da ciência” ou “progresso da humanidade”? No entanto, “avançar” ou “progredir” são, em todas as línguas, verbos de direção, palavras que implicam a existência de um caminho inequívoco e determinado, em que deve haver uma origem e uma meta. Como poderíamos saber se avançamos ou retrocedemos, se progredimos ou regredimos, se estamos em evolução ou involução? É claramente uma loucura fingir saber em que lugar de um vetor precisamente nos encontramos sem ter as referências da origem e do final desse vetor, e, apesar disso, a arrogância humana o faz diariamente. Vanitas vanitatum!
A única referência de que dispomos para falar de progresso de forma linear é o movimento medido de um antes a um depois, e isso só podemos apreciar em elementos específicos, nos quais, por comparação com outros similares, podemos supor qual será o ponto final desse movimento apreciável. Um homem, como um animal, está sujeito a um ciclo de movimento que vai do nascimento à decrepitude e à morte; isso sabemos pela evidência que mostram os outros homens e os outros animais. Mas, conhecemos outra história da humanidade que poderia nos deixar supor qual será nossa meta? O próprio desejo da humanidade de se apegar a essa referência a fez sonhar e se recriar em mil Atlântidas, em aventuras recriadas e continentes perdidos, esquecidos e imperiosamente requeridos pelo inconsciente.
Se decidíssemos olhar nossa própria história sem esse preconceito linear, veríamos que a realidade é bem outra. Compreenderíamos por que as verdades de ontem são mentiras hoje, sem a arrogante temeridade de tachá-las de “superadas”.
O que chamamos de Ciência, como todo afazer humano, move-se através de paradigmas. Um paradigma pode ser definido como um conjunto de leis, instrumentos, valores morais e conceitos que uma comunidade humana compartilha em uma determinada época. Um paradigma seria, por definição, uma concepção de mundo.
Podemos imaginar, e estaríamos muito próximos da realidade, que quando um ser nasce, vem provido de um “saco” em que traz informações úteis legadas por seus antepassados genéticos. Uma vez nascido, o saco vai se enchendo com a configuração de mundo que lhe é transmitida na sociedade e na época em que vive, ou seja, lhe é proporcionado um paradigma de mundo.
Se nos ativermos à sociedade científica de uma época determinada, o conjunto de leis, valores e instrumentos que essa comunidade compartilha seria seu paradigma científico. A ciência que se pratica dentro dos limites do paradigma é o que essa sociedade aceita como ciência oficial, ciência séria. Nesse tipo de “ciência”, os cientistas têm por única missão reconhecida resolver os problemas que a primeira formulação do paradigma deixou sem resolver, porém, sem sair do marco conceitual do mesmo. Quando um determinado paradigma científico começa a fraquejar em suas bases, prepara-se o que é chamado de revolução neste campo, que na realidade não seria senão uma troca de paradigma, e a ciência que se pratica no tempo que precede a imposição desse novo paradigma seria a ciência “revolucionária”, posto que questiona as bases do paradigma estabelecido. Se hoje em dia esse processo é evidente no campo científico, dado que a rapidez e a eficácia das comunicações facilitaram praticamente um paradigma mundial, em outros tempos foi muito mais confuso, pois ocorreram simultaneamente paradigmas estanques em sociedades e civilizações diversas. Na antiguidade, os paradigmas de civilizações distintas estavam refletidos em nomenclaturas mitológicas, em sistemas de mitos próprios de cada cultura, que a estupidez de tempos posteriores converteu em panteões de deidades. Não devemos atribuir à estupidez de primitivos o fato, chocante para muitos, dos viajantes da antiguidade prestarem seus respeitos aos “deuses” locais quando chegavam a cidades estrangeiras, evidentemente não se tratava de trocar de religião em cada porto, mas de aceitar o modo de configurar o mundo que tinha o povo que nos acolhia, aceitar o paradigma diretor dessa sociedade distinta… E não por pura cortesia, mas por necessidade, pois como iriam entender as leis, os costumes, a vida enfim, daqueles homens que literalmente viviam outro mundo, às vezes radicalmente diferente?
Medicina significa “ciência própria dos medos”, ou seja, dos persas, e isto requer uma explicação. A palavra “Medicina” nem sempre foi um substantivo. Como tantas outras palavras, deriva de um epíteto que nos põe de imediato na pista de sua razão de ser, em definitivo, de sua história.
Um dos paradigmas que mais determinou o que hoje entendemos por mundo civilizado foi o Renascimento. A revolução da modernidade, gerada no renascimento europeu, acarretou uma mudança radical em todas as ordens de pensamento, e especialmente no pensamento científico. Provavelmente, são os terrenos artístico e político onde com mais clareza se delimitou o fenômeno revolucionário, porém, como veremos a seguir, no domínio científico foi tão determinante ou mais, para compreender os caminhos por onde hoje marcha a humanidade. A concepção do mundo e da criação que se teve durante toda a antiguidade e o medievo contava, infalivelmente e sem exceção, com a presença de Deus, (tanto nas concepções pagãs quanto monoteístas). Basta abrir uma obra escrita medieval, seja qual for sua matéria, para encontrarmos a ideia manifesta de Deus. A revolução renascentista (certamente um nome curioso) é precisamente o intento do homem de emancipar-se do “divino”; a velha e insensata pretensão de autossuficiência de que a própria Bíblia adverte com o relato de Ninrode e a torre de Babel. Não foi por acaso a arrogância e o desejo de autossuficiência que levaram o próprio Adão à perdição?
Afastar-se de Deus equivale a afastar-se da Unidade, apostar em uma pluralidade insensata que nos leva cada vez mais longe da verdade. Nós, muçulmanos, sabemos que o Conhecimento está por todo o Caminho, que o caminho da Lei conduz ao Paraíso, o caminho do Amor conduz ao Farah (aniquilação do ego) e que o caminho do Conhecimento por excelência corre entre os dois anteriores e conduz à Verdade.
O primeiro caminho corre pela região do “visível”, o sensível, o geométrico. O segundo, pela região do espiritual, o “não visto”. O terceiro, por fim, pela região intermediária que separa a luz das trevas, o barsaj de Yabarut. O primeiro destes caminhos corresponde à grafia, o segundo à palavra e o terceiro ao Silêncio. A ciência da pena nos conduz pelo primeiro caminho, a voz pelo segundo, o pensamento pelo terceiro. A palavra escrita nos leva à lei, à norma. A palavra falada nos leva ao Amor, ao sentimento compartilhado. Por fim, a palavra pensada nos aproxima do Silêncio. A consciência pura nasce do Silêncio, mas como tudo, salvo Allah, está sujeito à dualidade para existir, referenciou-se de imediato com algo sensível, palpável, comparável. Mais tarde, necessitou se comunicar com “os demais” para seguir se diferenciando. Mas nessa luta para continuar “existindo” paradoxalmente estava escondida “a morte”. Quanto mais elementos diferenciadores havia, mais individualidade, mais “ego”; mas também, maior distância do Uno Real a que todo ser tende. Este paradoxo é, na realidade, a origem da angústia, da sede insaciável do homem por se conhecer, se singularizar, por ser como Deus, tal e como lhe prometeu a pérfida Serpente; porém, quanto mais o tenta, mais se distancia da Unidade Pura. É a lei da “Entropia”. A grande prova!
No campo artístico, o Renascimento fez nascer o próprio conceito de “Arte” como algo diferenciador. As obras artísticas começam a se “firmar” ao aparecer no paradigma a noção de “sujeito”. Toda a sensibilidade e espiritualidade das obras medievais passam de alguma maneira para o mérito do “artesão”. Ou seja: não é a obra, mas o “ego” do “artista” manifestado em uma assinatura de propriedade, que conta. Os artistas então são seres privilegiados pelo gênio, algo que não podem compreender o resto dos mortais. Inclusive se atrevem a chamar suas obras de “criações” numa tentativa ridícula de se comparar com o próprio Deus.
No terreno político, aparece a ideia de “estado” desprovida do conceito de “povo”, “nação”, no sentido de comunidade humana natural.
O que acontece no campo científico? Pois que a velha Filosofia, isto é, o Saber integral, começa a se desmembrar nas chamadas “ciências particulares” cada vez mais independentes umas das outras, cada vez com mais ares de autossuficiência e, portanto, cada vez com mais arrogância.
O cuidado da saúde também foi catalogado em uma ciência particular, porém, como veremos, parte dos adeptos a essa ciência resistiram e resistem por convicção a acatar as leis do paradigma da “modernidade”, mesmo sabendo o que significa ir contra a corrente em um mundo tão intolerante como o “científico”.
Dois paradigmas científicos concorreram na antiguidade pela “honra” de ser os pais do desenho futuro do que hoje entendemos por “medicina”. De um lado, o Império medo-persa e, de outro, o Império egípcio. Enquanto o paradigma persa se caracterizava por uma concepção de mundo radicalmente dualista, origem do pensamento zoroástrico e de Lend-Aresta, o pensamento egípcio foi eminentemente unitarista e dele derivaria a escola alexandrina dos “herméticos”.
Foram as ciências da saúde derivadas do paradigma medo-persa as que deram, enfim, seu nome e seus princípios ao que adiante e, sobretudo a partir do Renascimento, o mundo conheceu como “ciências médicas” ou “ciência dos medos”, de onde se alcunharia o termo “medicina”.
De sua parte, as ciências da saúde derivadas do paradigma egípcio, o antigo país de “Kemi”, o país da “terra negra”, foram conhecidas como ciências kémicas, epíteto ao qual os árabes emprestariam seu artigo para converter em “al-Kemico”, de onde provêm, naturalmente, o substantivo “alquimia”. Ambos os termos, “medicina” e “alquimia”, tiveram, pois, uma origem semântica comum, embora seus fundamentos tenham sido sempre diferentes, e inclusive contrários.
Com o florescimento da cultura grega, ambas as escolas de pensamento, como tantas outras escolas filosóficas, se desenvolveram em um ambiente helênico. As escolas de Cós e de Epidauro, por exemplo, gozaram de indiscutível prestígio por toda a antiguidade clássica. Tanto Hipócrates como Esculápio são reconhecidos como pais das ciências da saúde, seus pensamentos, porém, são praticamente opostos. É significativo que ao primeiro se reconhece como pai humano das ciências médicas baseadas na observação da Natureza, e ao segundo como um deus da Medicina de nível olímpico.
Dos aforismos de Hipócrates os romanos recolheram a apreensão dual da Natureza e a via de observação empírica. Esculápio, de sua parte, discípulo predileto do mítico Hermes o Trismegisto (uma das obras atribuídas a Hermes pela tradição helenística é precisamente “os diálogos com Asklépios” = Esculápio), desenvolve seu pensamento nas escolas herméticas da Alexandria helênica.
Tanto no mundo cristão como no muçulmano, ambas as escolas conviveram em contínua diatribe, e é o paradigma renascentista o que definitivamente fez reconhecer como “científica” a tradição “médica” e reduz a velha Alquimia à categoria de pseudociência, e o que é pior, de “ciência maldita”.
O capricho da História, porém, fez com que hoje o termo “Alquimia” se aplique somente a uma disciplina de caráter esotérico e obscuro, empenhada tanto em transmutar metais não-nobres em ouro quanto na consecução do Elixir da Imortalidade, despojando-a assim de toda sua dimensão de ciência da Saúde.
Sem entrar no debate Realidade/Quimera da ciência alquímica, pois que estas páginas não são o foro mais adequado para tal, é, no entanto, nossa intenção reinvindicar por legítima e histórica justiça, o direito da velha Alquimia de utilizar seu nome em relação com as ciências da Saúde; e precisamente neste sentido e para evitar confusões, realcunhamos o termo “Kemicina” ou “quemicina”, em paralelismo evidente com “medicina”.
A Kemicina ou medicina espagírica se fundamenta, pois, nas estritas leis herméticas originadas no paradigma egípcio, e são essas leis que diferenciam seus princípios dos conceitos médicos e farmacológicos em uso. Desde tempos imemoriais, os alquimistas sabiam que todo remédio se encontra na Natureza, como uma reparação dos erros emanados de uma manipulação indevida da mesma. Estamos, pois, em um território em que ciência e “moral” se dão as mãos para nos levar pelos caminhos de uma Ciência com Consciência.
A Espagiria ou Alquimia menor se define como a arte de separar o puro do impuro. Arte separatória por excelência, que exige toda uma liturgia de laboratório (ora et labora, como diziam então os veneráveis monges nazarenos). No entanto, a separação do puro dentre o impuro exige necessariamente a passagem pela morte, os mistérios de Thanatos, oficiados no “athanor”, o forno secreto dos alquimistas cujo fogo devora as partes mais impuras da matéria para torná-las em “espírito”, e voltar a cristalizá-las de novo na perfeita geometria que lhes impôs o Único Senhor.
A palavra “puro” vem do grego “pyros”, que vem do sânscrito “pyr”. Tanto o termo grego quanto o sânscrito significam “fogo”, e assim, na “separação espagírica do puro dentre o impuro”, se esconde a antiga e secreta teoria de extrair o fogo que habita a matéria inerte, a separação ou extração da Luz das trevas, tal como aponta o Gênesis que fizera o Criador no começo de Sua Grande Obra. Desse modo, o alquimista imita o Supremo Criador e se faz digno de ser considerado à “Sua imagem e semelhança”. A matéria, inerte em aparência, é na verdade um Caos vivo, pois encerra em seu seio o fogo elemental, origem de toda a vida, fogo de natureza muito semelhante ao do astro rei.
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