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Cultos Afro-americanos

Sobre as Sessões de Catimbó

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Rômulo (Guyraúna) Angélico

(Texto adaptado de Aspectos do Catimbó-Jurema – quarto capítulo de meu livro: Visões de Catimbó: elementos da história indígena e do catimbó-jurema do Rio Grande do Norte)

Até o presente momento tem sido impossível, para o pesquisador acadêmico, afirmar se houve, em algum momento do passado longínquo, no nordeste brasileiro, um culto voltado exclusivamente ao vegetal Jurema (ou no qual a Jurema ocupasse um lugar central). Em outras palavras: não temos como afirmar com exatidão se existiu, durante o enorme período que antecedeu a presença portuguesa no território brasileiro, na região Nordeste, um culto ou cultos idênticos aos que nos dias atuais pertencem à Tradição chamada “Catimbó-Jurema”.

O que até o presente pode ser positivamente afirmado é que, séculos antes dos europeus aportarem no litoral do Brasil, as nações indígenas nativas do Nordeste cultuavam determinadas constelações, se preocupavam com a vida após a morte, interagiam com espíritos da Natureza e comungavam ritualisticamente de plantas consideradas sagradas (atualmente chamadas “Plantas de Poder”) – dentre as quais, sem sombra de dúvidas, se encontrava a Jurema Preta.

Entretanto, a partir do século XVI, cronistas europeus passaram a tomar notas de crenças e práticas mágicas de povos Tupi e Tapuia – identificando elementos que atualmente se encontram presentes em todas as formas de culto à Jurema. Além dos que foram citados no parágrafo anterior, podemos, ainda, elencar: a reverência à já citada Jurema, considerada sagrada e utilizada tanto mágica quanto medicinalmente; o uso ritualístico da fumaça da planta Tabaco; a manifestação de entidades espirituais que se apresentam como vindas de “lugares distantes” (atualmente esses seres afirmam vir de reinos, cidades e aldeias localizadas em um mundo paralelo conectado ao nosso, Reino chamado Encanto, Juremá ou Juremal); a produção de bebidas utilizadas durante determinados rituais ou em ocasiões específicas – beberagens que muitas vezes também são chamadas “Jurema” e tanto podem ser produzidas exclusivamente com a citada planta quanto com outros vegetais agregados ao elemento principal (a Jurema Preta); medicinas vegetais aplicadas principalmente pelos dirigentes dos cultos e seus discípulos; manifestações de entidades espirituais mediante transe mediúnico.

Os antigos pajés Kariri (Chumimy) e Tarairiú, por exemplo, preparavam uma bebida Jurema cuja fórmula sempre foi guardada com todo cuidado e discrição – bebida que ingeriam ritualisticamente para visitar o que hoje chamamos “Encanto” e manter contato com os espíritos dos Ancestrais, assim como para buscar respostas às questões existenciais e a cura para males aparentemente incuráveis. Essa e outras sagradas medicinas dos índios e caboclos nordestinos foi, ao longo dos séculos, tão zelosamente guardada (e perseguida pelas forças opressoras da Civilização) que seu “segredo” quase se perdeu. E aqui, por “segredo”, me refiro ao modo tradicional de preparar a bebida com a finalidade de expandir a consciência.

O processo de colonização do território brasileiro teve como consequência, por um lado, a desagregação de aldeias e etnias; e, por outro, a fusão de nações indígenas culturalmente diferentes (movimento ao qual foram acrescidos aspectos da vida, da espiritualidade e do imaginário cristão, africano e judaico). Em meio a esse gigantesco caldeamento nasceram, no Nordeste, famílias caboclas que cultuam a Jurema – manifestações que tanto possuem semelhanças quanto distinções entre si (de acordo com a família ou rama juremeira que realize o culto) – sendo algumas marcadas predominantemente por elementos indígenas e cristãos e outras por pajelanças e aspectos de Candomblé, Cabala Judaica e/ou Bruxaria ibérica. Entretanto, por mais que, em superfície, tais cultos pareçam distintos, os elementos centrais de matriz indígena permaneceram vivos e sobreviveram às crueldades da História, sendo, por isso, possível que as diversas “famílias” se reconheçam como juremeiras.

Veremos agora, muito sumariamente, características gerais de algumas formas de se cultuar a Jurema – conforme ocorrem, nos dias de hoje, no território do Rio Grande do Norte (região em que concentro a maior parte de minhas pesquisas sobre o Catimbó), sem afirmar de modo algum serem estas as únicas cosmovisões e expressões ritualísticas presentes na Tradição.

As sessões são geralmente chamadas “mesas” e “mesas de Jurema”. A origem dessas expressões poderá, talvez, ser encontrada tanto no uso de esteiras e toalhas que os pajés do passado utilizavam sobre o chão, durante a operação de seus misteres, quanto nas mesas sobre as quais feiticeiros e magos coloniais depositavam suas ferramentas de trabalho. Na Jurema de Mesa ou Mesa Alta o dirigente dos trabalhos é chamado “mestre” ou “mestra”. Ele conhece os modos tradicionais de abrir e fechar as sessões, evocar e despedir os espíritos, além de rezas e receitas (provenientes de uma medicina natural muito antiga) através das quais procura curar doenças do corpo e da alma. O mestre é o sacerdote do Catimbó, assim como o Babalorixá e a Yalorixá são os sacerdotes do Candomblé e o Pastor é o chefe da Assembleia Cristã.

Em seu local de trabalho (os mais antigos se “templos” eram chamados “estado”; atualmente são chamados “centro”, “terreiro” e “barracão”) há uma ou mais mesas, sobre as quais o mestre guarda ao menos parte de seus objetos de trabalho, além de imagens, livros e outros itens. Antigamente, quando não existiam centros, as sessões ocorriam no meio das matas – embaixo de um pé de Jurema Preta.

O mestre geralmente abre as sessões, invoca os espíritos e encerra seus trabalhos, cantando.

Com o tempo, os mestres e mestras, assim como os pajés, vão desenvolvendo uma intimidade transpessoal com a Jurema – passando a “aprender a Ciência direto do tronco”. Este aspecto da Tradição torna limitada qualquer Iniciação formal de um aspirante ao Catimbó uma vez que, sem essa íntima conexão ter sido estabelecida, por maior que seja a bagagem de conhecimentos que um juremeiro possa ter assimilado por via escrita ou oral, nada se compara à Ciência bebida e apreendida direto na Fonte.

Entre os índios e caboclos do interior do Nordeste, há uma variação que parece ter sido a origem da atual Mesa Alta: é a Mesa de Toré, também chamada Mesa Baixa e Mesa Rasteira, aberta sobre o chão. A configuração desse tipo de trabalho é basicamente a seguinte: em cima de uma toalha branca ou de uma esteira, aberta sobre o chão, o pajé coloca seus instrumentos e substâncias que serão utilizadas no trabalho (Tabaco, cascas de diversas ervas, sementes, etc.) – passando a realizar invocações e evocações de forças e inteligências espirituais através do canto (as músicas cantadas nos cultos juremeiros geralmente são chamadas “linhas”, “pontos” ou “toantes”).

Uma outra manifestação de Toré presente nas comunidades indígenas ocorre como uma dança circular (com uma ou mais variações, de acordo com a aldeia e a etnia).

Tanto na Mesa de Toré quanto no Toré dançado, os índios e caboclos louvam a Deus, cantam para os ancestrais e sobre suas etnias – invocando, ainda, a proteção espiritual dos encantados e de santos católicos.

Encantado é um dos nomes que se dá aos entes espirituais que trabalham nas sessões de Jurema. Essas entidades, nos catimbós de décadas atrás e em alguns do presente, não eram consideradas almas de pessoas mortas, mas espíritos antigos, forças inteligentes da Natureza, energias bastante severas com quem não respeita o ambiente onde vivem. Espíritos como a Florzinha da Mata, o Caxangá e a Mãe D’água, são exemplos. Há comunidades indígenas que não aceitam, em seus rituais, a manifestação do que chamam “espíritos de branco” – sejam Exus, Pombagiras (o que não quer dizer que esses terreiros não possuam seus Protetores Espirituais) ou almas de pessoas mortas. Já em alguns catimbós das zonas urbanas existe abertura para essas entidades (conhecidas, em ambiente juremeiro, como “eguns”).

Na Umbanda nordestina ocorre a Gira de Jurema (algumas vezes também chamada “Mesa”): uma dança circular, marcada por louvores e invocações cantadas, ritmadas por tambores, triângulos e, em algumas casas, maracás. Certos terreiros de Umbanda iniciam os trabalhos cantando para os Exus – considerados protetores, guardiões do terreiro, responsáveis pelo descarrego de energias pesadas que possam estar circulando no ambiente – que, limpando energeticamente o ambiente, abrem espaço para entidades e à realização de trabalhos em outros graus de vibração: os toques para os Orixás, depois, para Índios e Caboclos, finalizando com as linhas de Mestres e Mestras da Jurema Santa e Sagrada.

Embora a palavra “Catimbó”, de origem Tupi, em português signifique “fumaça de mato” e seja uma clara referência às defumações utilizadas (à base de Tabaco e outras plantas) por pajés e mestres, encontramos, ainda, nos dias de hoje, um tipo de Catimbó que mais se assemelha a feitiçaria e bruxaria ibéricas de fins da Idade Média e início da modernidade – feitiçarias marcadas pela crença em entidades diabólicas à guisa de como as conceberam o imaginário e doutrina cristã. Uma sessão dessas também é chamada Mesa Rasteira (além de Trabalho no Chão e Panela). Nelas atuam entidades espirituais que não são Índios nem Mestres Juremeiros – são considerados mestres das sombras, espíritos das trevas, perigosíssimos (segundo os mestres que os cultuam). A mesa desses mestres é o próprio chão e diretamente sobre o solo (sem toalha ou esteira) utilizam velas de cores diversas, ossos humanos e outros itens que nos fazem voltar no tempo, em direção ao imaginário europeu de séculos atrás e às imagens “pintadas” pela Igreja a partir de fins do medievo, sobre feitiçaria e bruxaria.

Tomando como referência o discurso do chefe de um dos dois únicos centros que trabalhavam nessa “linha” – os dois únicos que conheci há quase vinte anos – a Jurema é considerado algo superior em que os espíritos perversos, quando ingressam, jamais retornam às suas antigas práticas porque, passando a praticar o bem e a caridade, têm a oportunidade de “entrar na Jurema”. Porém, segundo aqueles sacerdotes, existem entidades que não querem de modo algum ingressas na Jurema – preferindo permanecer ao lado ou subservientes ao “Maioral” (como chamam o diabo judaico-cristão).

Eis, meus caros irmãos e irmãs, um pouco sobre o Catimbó-Jurema que conheci e no qual fui gerado. Espero que esta breve análise seja-lhes útil.


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