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Para que os seres humanos possam viver bem neste mundo, é preciso estar bem com os deuses. Por isso os homens propiciam os orixás, oferecendo-lhes um pouco de tudo o que produzem e que é essencial à vida. As oferendas dos homens aos orixás devem ser transportadas até o mundo dos deuses, o Orum. O orixá Exu tem esse encargo de transportador. Também é preciso saber se os orixás estão satisfeitos com a atenção a eles dispensada pelos seus descendentes, os seres humanos. Exu propicia essa comunicação, traz suas mensagens, é o mensageiro. É fundamental para a sobrevivência dos mortais receber as determinações e os conselhos que os orixás enviam do Aiê. Exu é o portador das orientações e ordens, é o porta-voz dos deuses e entre os deuses. Exu faz a ponte entre este mundo e o mundo dos orixás, especialmente nas consultas oraculares. Como os orixás interferem em tudo o que ocorre neste mundo, incluindo o cotidiano dos viventes e os fenômenos da própria natureza, nada acontece sem o trabalho de intermediário do mensageiro e transportador Exu. Nada se faz sem ele, nenhuma mudança, nem mesmo uma repetição. Sua presença está consignada até mesmo no primeiro ato da Criação: sem Exu, nada é possível. O poder de Exu, portanto, é incomensurável.
O sacrifício é o meio através do qual os humanos se dirigem aos orixás, e o sacrifício significa a reafirmação dos laços de lealdade, solidariedade e retribuição entre os habitantes do Aiê e os habitantes do Orum. Sempre que um orixá é interpelado, Exu também o é, pois a interpelação de todos se faz através dele. É preciso que ele receba a oferenda, sem a qual a comunicação não se realiza. A relação homem-orixá tem como fundamento a materialidade do sacrifício, a concretude da oferenda. Isso é uma definição religiosa, um ponto de partida essencial na concepção africana do sagrado. A própria possibilidade do homem professar a sua religião de orixás — seja na África, no Brasil, ou noutro lugar — depende, pois, do trabalho de Exu.
Como mensageiro dos deuses, Exu tudo sabe; não há segredos para ele, tudo ele ouve e tudo ele transmite. E pode quase tudo, pois conhece todas as receitas, todas as fórmulas, todas as magias. Exu trabalha para todos, não faz distinção entre aqueles a quem deve prestar serviço por imposição de seu cargo, o que inclui todas as divindades, mais os antepassados e os humanos. Exu não pode ter preferência por esse ou aquele. Mas talvez o que o distingue de todos os outros deuses é seu caráter de transformador: Exu é aquele que tem o poder de quebrar a tradição, pôr as regras em questão, romper a norma e promover a mudança. Não é, pois, de se estranhar que seja temido e considerado perigoso, posto que se trata daquele que é o próprio princípio do movimento, que tudo transforma, que não respeita limites. Assim, tudo o que contraria as normas sociais que regulam o cotidiano passa a ser atributo seu. Exu carrega qualificações morais e intelectuais próprias do responsável pela manutenção e funcionamento do status quo, inclusive representando o princípio da continuidade garantida pela sexualidade e reprodução humana, mas ao mesmo tempo ele é o inovador que fere as tradições, um ente portanto nada confiável, que se imagina, por conseguinte, ser dotado de caráter instável, duvidoso, interesseiro, turbulento e arrivista.
Para um iorubá ou outro africano tradicional, nada é mais importante do que ter uma prole numerosa, e para garanti-la é preciso ter muitas esposas e uma vida sexual regular e profícua. É preciso gerar muitos filhos, de modo que, nessas culturas antigas, o sexo tem um sentido social que envolve a própria idéia de garantia da sobrevivência coletiva e perpetuação das linhagens, clãs e cidades. Exu é o patrono da cópula, que gera filhos e garante a continuidade do povo e a eternidade do homem. Nenhum homem ou mulher pode se sentir realizado e feliz sem uma numerosa prole, e a atividade sexual é decisiva para isso. É da relação íntima com a reprodução e a sexualidade, tão explicitadas pelos símbolos fálicos que o representam, que decorre a construção mítica do gênio libidinoso, lascivo, carnal e desregrado de Exu-Elegbara.
Isso tudo contribuiu enormemente para modelar sua imagem estereotipada de orixá difícil e perigoso, que os cristãos, erroneamente, reconheceram como demoníaca. Quando a religião dos orixás veio a ser praticada no Brasil do século xix por negros que eram também católicos, todo o sistema cristão de pensar o mundo em termos do bem e do mal deu um novo formato à religião africana, no qual Exu veio a desempenhar outro papel. A visão “cristã” dos orixás confundiu Oxalá com Jesus, Iemanjá com Nossa Senhora, e outros santos católico com os demais orixás. Para completar o panteão afro-católico, sobrou para Exu ser confundido com o Diabo. Foi, portanto, o sincretismo católico que deu a Exu a identidade de um demônio. Mas essa identidade destorcida sempre foi católica, cristã, sincrética. Não tem nada de africana.
Pensam os que se acostumaram a ver os orixás numa perspectiva cristã (imposta pelo catolicismo e hoje reforçada pelo evangelismo) que Exu deve ser homenageado em primeiro lugar para não provocar confusão, para não bagunçar a cerimônia, como se ele fosse um simples e oportunista arruaceiro. É uma visão bem simplista e demasiadamente falsa. Ora, Exu é antes de tudo movimento e nada pode acontecer sem ele, nem mesmo em pensamento, sem movimento. Nada pode, portanto, se dar sem a interferência de Exu. Por isso ele é sempre o primeiro a ser homenageado: é preciso permitir o movimento para que o evento, seja ele qual for, se realize, seja para o bem ou para o mal. Esse movimento não é dotado de moralidade, nem poderia ser, pois se assim fosse o mundo ficaria paralisado. A vida é um pulsar permanente, e em cada passo, em cada avanço ou retrocesso, em cada mudança, enfim, Exu está presente. Tudo começa por ele; por isso ele será sempre o primeiro.
Bibliografia
PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos orixás. São Paulo, Companhia das Letras, 2001.
PRANDI, Reginaldo. Segredos guardados: orixás na alma brasileira. São Paulo, Companhia das Letras, 2005.
SANTOS, Juana Elbein dos. Os nagô e a morte. Petrópolis, Vozes, 1976.
VERGER, Pierre Fatumbi. Orixás: deuses iorubás na África e no Novo Mundo. 5ª edição. Salvador, Corrupio, 1997.
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Reginaldo Prandi é professor de Sociologia da Universidade de São Paulo e autor, entre outros livros, de Mitologia dos orixás, Segredos guardados, Os príncipes do destino, Ifá o adivinho, Morte nos búzios.
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Fonte: Texto extraído e modificado do livro Segredos Guardados, de Reginaldo Prandi, Companhia das Letras, 2005.
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