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Começo citando trechos de Câmara Cascudo, sobre os primeiros contatos entre catequistas católicos e a sociedade nativa – especificamente com os pajés. Notemos que os pajés possuíam características semelhantes às de nossos atuais mestres e mestras catimbozeiros.
Quando os primeiros padres chegaram ao Brasil, tiveram o mais desmarcado campo de ação que catequistas haviam podido sonhar. Milhões de quilômetros povoados por centenas de milhares de homens. A tarefa inicial era identificar objetos de adoração. Esses constituíam os inimigos à propagação da Fé.
Observaram logo que a maior autoridade pertencia aos velhos que os indígenas chamavam “Pajés”. Eram incapazes de ação física, enrugados, cheios de tatuagens, colares e pulseiras, pintados com urucu (Bixa orellana) e Jenipapo (Genipa brasiliensis) e dominavam todos os homens fortes da terra. Eram médicos que curavam pelo sopro e pela sucção. Faziam profecias e augúrios, cheirando o pó do paricá (Piptadenia colubrina) e fumando cigarros enrolados na entrecasca do tauari (Curataria tavari), fazendo esgares, dando saltos, tendo convulsões, mudando a fala.
Os indígenas não oravam nem faziam sacrifícios humanos. Jejuavam em certas festas e o Pajé era o intermediário único entre eles e a divindade [CASCUDO, GEOGRAFIA DOS MITOS BRAILEIROS, 2002, p. 57].
Em linhas gerais, não só no que se refere “aos modos de trabalho”: sopro, sucção, fumaça, transe… entre pajés e mestres existe uma continuidade. O mestre juremeiro é o herdeiro cultural e espiritual do pajé. Necessário se faz, entretanto, para que compreendamos a amplitude da Mestria de Jurema, a realização de um estudo que analise, também, a herança cultural africana e europeia existente entre os mestres catimbozeiros (e este é o meu objeto de pesquisa atual). Sigamos.
Em maio de 1560 o padre José de Anchieta, escreveu:
É cousa sabida e pela boca de todos corre que há certos demônios, a que os Brasis chamam CURUPIRA, que acometem aos índios muitas vezes no mato, dão-lhes de açoites, machucam-o e matam-os. São testemunhas disto os nossos Irmãos, que viram algumas vezes os mortos por eles. Por isso, costumam, os índios, deixar em certo caminho, que por ásperas brenhas vai ter ao interior das terras, no cume da mais alta montanha, quando por cá passam, penas de aves, abanadores, flechas e outras coisas semelhantes, como a uma espécie de oblação, rogando fervorosamente aos CURUPIRAS que não lhes façam mal [CASCUDO, Obra citada, 2002, p. 30].
Essas oferendas aos espíritos, tão comuns entre os índios do litoral brasileiro, permanecem vivas entre os juremeiros e populares das zonas rurais do nordeste. Os Xukuru ofereciam aos espíritos, além da bebida Jurema, uma comida preparada com mocó chamada ukrinmakrinkrin. Na década de 1930, no catimbó paraibano do mestre Manuel Laurentino da Silva, quem fosse ser curado ou “arranjar qualquer coisa”, dava “presentes e coisas necessárias pra sessão” [CATIMBÓ, 1949, p. 82]; e para trabalhos com o Mestre Adivinhão, por exemplo, os presentes levados deveriam ser: vinho, bebida, mel e charutos [p. 90]. No Rio Grande do Norte, caçadores de João Câmara (e vi o mesmo em todos os lugares por onde passei), no mínimo entram na mata fumando – quando não fazem oferendas de tabaco e mel à Florzinha da Mata. Oferecem-na para conseguir boa caça, mas devem evitar matar fêmea prenha ou animal marcado pertencente à Florzinha; ou qualquer acordo feito com esse espírito protetor dos animais sob o risco de levarem surra tremenda.
Um dos pontos cantados pela Florzinha na Jurema é esse:
Sou Fulozinha, Fulo da Mata, Fulô, Fulô, sou Fulozinha…
Sou Fulozinha, Fulo da Mata, Fulô, Fulô, sou Fulozinha…
Estou pedindo, estou rogando, alguém me dê uma fumacinha.
Estou pedindo, estou rogando, alguém me dê uma fumacinha.
O protestante francês Jean de Léry esteve no litoral brasileiro no século XVI, convivendo com os Tupinambá. Sobre os rituais indígenas dirigidos pelos karaíba, escreveu:
Unidos uns aos outros mas de mãos soltas e fixos no lugar, formam uma roda, curvados para a frente e movendo apenas a perna e o pé direito; cada qual com a mão direita na cintura e o braço e a mão esquerda pendentes, suspendem um tanto o corpo e assim cantam e dançam. Como eram numerosos, formavam três rodas no meio das quais se mantinham três ou quatro caraíbas ricamente adornados de plumas, cocares, máscaras e braceletes de diversas cores, cada qual com um maracá em cada mão. E faziam ressoar essas espécies de guizos feitos de certo fruto maior que um ovo de avestruz. […] Os caraíbas não se mantinham sempre no mesmo lugar como os outros assistentes; avançavam saltando ou recuavam do mesmo modo e pude observar que, de quando em quando, tomavam uma vara de madeira de quatro a cinco pés de comprimento em cuja extremidade ardia um chumaço de petum e voltavam-na acesa para todos os lados soprando a fumaça contra os selvagens e dizendo: “Para que vençais vossos inimigos recebei o espírito da força”. E repetiam-na por várias vezes os astuciosos caraíbas [LÉRY, VIAGEM À TERRA DO BRASIL, 1960, p. 191-192].
A “fumaçada”, ritual ou terapêutica, permanece uma constante nos cultos de matriz indígena.
As primeiras manifestações de religiosidades hibridas no Brasil ocorreram no mesmo século XVI. Foram mistos de crenças nativas com o catolicismo que se difundia no litoral. Indígenas aceitavam a fé adventícia, reinterpretando-a, sem abrir mão de aspectos de sua própria fé. Essa questão foi mais complexa do que imaginamos. Vejamos o que diz Vainfas sobre as chamadas “santidades”:
Nas áreas mais solidamente controladas pelos portugueses no século XVI, especialmente aquelas onde avançava a catequese jesuítica, grandes pajés ou caraíbas tupinambás lideraram migrações em busca da Terra sem Males, morada dos ancestrais, terra da abundância e da imortalidade no imaginário desta cultura nativa, afastando-se do litoral no rumo dos “sertões” – invertendo, assim, o sentido da migração que outrora caracterizava o povoamento tupi nas terras brasileiras. Tratou-se […] de movimentos migratórios de forte base religiosa, com nítidos traços milenaristas ou messiânicos, uma vez que várias lideranças nativas desses movimentos haviam já passado pela catequese ou tinham mesmo nascido dos aldeamentos jesuíticos. Os portugueses chamariam tais movimentos de “santidades” [VAINFAS, BRASIL: 500 ANOS DE POVOAMENTO, 2007, p. 48].
Na década de 1580 teria ocorrido o mais importante desses movimentos chamados “santidades”. No sul do Recôncavo Baiano, nos sertões de Jaguaripe. O líder da “Santidade do Jaguaripe” era um índio batizado por jesuítas, chamado Antônio. Aquele índio fugiu de um aldeamento inaciano, passando a difundir a ideia de ser ele próprio o mítico ancestral Tamandaré e verdadeiro papa. Os mais importantes membros do movimento eram nomeados bispos e santos e a esposa de Antônio se chamava Santa Maria Mãe de Deus. Um senhor de engenho da região, prometendo aos índios liberdade religiosa em suas terras, atraiu-os ao engenho de Jaguaripe, onde foram vítimas de uma armadilha. Em 1583, o governador geral destruiu a Santidade.
Assunção, em O Reino dos Mestres [2006, p. 76] cita características da Santidade do Jaguaripe: a cerimônia de iniciação através da qual alguém ingressava no grupo, era uma simples cópia do batismo católico; os indígenas participavam dos cultos portando rosários, pequenas cruzes e maracás; realizavam procissões, cantos e danças, poligamias, fumavam tabaco e, tragando, atingiam o transe místico, o chamado “espírito da santidade”. “Antônio […] pregava a busca da terra sem mal e sua mensagem passou a adquirir significados de hostilidade anticolonialista”.
Em 1647, Roulox Baro [HISTÓRIA DAS ÚLTIMAS LUTAS NO BRASIL ENTRE HOLANDESES E PORTUGUESES E RELAÇÃO DA VIAGEM AO PAÍS DOS TAPUIAS, 1979], intérprete e embaixador
da Companhia das Índias Ocidentais, visitou os sertões da então capitania do Rio Grande. Tentava convencer o grande morubixaba Tarairiu Janduí a apoiar os holandeses nos combates contra Portugal. Baro passou cerca de três meses entre os tapuias, deixando escrito um relatório de sua visita e permanência entre aqueles índios. Acompanhou e escreveu certas manifestações da espiritualidade nativa, das quais selecionei alguns trechos que deixam clara a importância do uso ritualístico do fumo (observemos, também, outras práticas relacionadas à magia indígena):
[…] me comprazia vê-lo [Janduí] tão robusto e desembaraçado. [Janduí] Pôs-se a rir e perguntou-me porque não lhe trouxera fumo […] (dia 28 de maio).
[…] Pediram-me fumo, dizendo que não podiam levar a cabo qualquer sacrifício, sem ele, tendo-se passado três luas desde o último que tinham feito […] (dia 29 de maio).
[…] Tendo alguém trazido fumo, todos puseram-se a saltar de alegria, pois assim tinham com que sacrificar ao Diabo, chama-lo à fala e consulta-lo sobre seus negócios (dia 30 de maio).
Lembremos que esses trechos provém da pena de um holandês de origem protestante que enxergava, assim como o padre Anchieta, os espíritos evocados como demônios. Aqui vemos a importância do fumo nos rituais – inclusive nas invocações espirituais presentes no cotidiano daquela sociedade indígena. No Catimbó, segundo mestres da primeira metade do século XX, tudo estava resumido na invocação dos Mestres via fumaça de cachimbo. O processo invocatório permaneceu essencialmente o mesmo. Continuemos com Baro.
[…] No dia 11 [de junho], os jovens puseram-se a dançar, para acabar o luto de um de seus principais que tinha falecido.
No dia seguinte, os feiticeiros chegaram junto de nós e reduziram a pó certas sementes de corpamba, que tinham torrado numa panela; depois de misturá-las com águas, engoliram-nas. Imediatamente essa beberagem saiu-lhes pelo nariz e pela boca e eles se agitaram como possessos. Disseram-nos que celebravam esta cerimônia a fim de que o seu milho, ervilhas e favas pudessem amadurecer bem depressa.
[…] pernoitamos na margem do Rio Potengi [16 de junho], todos molhados, tendo apanhado uma serpente chamada pelos portugueses cobra-veado, de três braças de comprimento, a qual os selvagens puseram num fosso, onde antes tinham feito fogo, para aquecê-lo, depois cobriram com terra e esta de faxinas, às quais atearam fogo, a fim de assar a dita serpente. Os feiticeiros reuniram-se no morro vizinho e nós com eles: choveu abundantemente em torno deles e de nós, mas não sobre eles nem sobre nós.
[…] [No dia 29 de junho de 1647] na escuridão da noite, Houcha veio à choça do ancião. A ele e ao Sacrificador os tapuias apresentaram um grande cachimbo feito de noz de coco cheio de fumo. Os jovens [que iriam casar] estavam de pé e sobre eles o Sacrificador e o Diabo sopravam a fumaça de fumo; essa era a sua benção. Isto feito, todos se retiraram, com exceção dos mais idosos, que perguntaram a Houcha como eles se comportariam nessa guerra. Este calou-se longo tempo, depois, disse-lhes com uma voz horrível: – “Fugireis.” O ancião perguntou: – “E por que fugiremos? Não fui eu, sempre, o senhor dos meus inimigos?” – “Não importa, replicou o Diabo. Fugireis; mas voltarei e farei saber quando”. Dito isto, desapareceu, deixando grande espanto e tristeza para os tapuias.
[…] [Na tarde de 03 de julho do citado ano] Quando estavam dançando, um feiticeiro veio dizer que Houcha chegaria à noite, com outros cinco. Pararam imediatamente e foram armar um leito de folhas na choça do sacrifício, perto da qual puseram fumo. Chegada à noite, os tapuias recomeçaram suas danças e Janduí e seus feiticeiros vieram à choça de sacrifícios para indagar de Houcha o que lhes aconteceria. Três vozes enrouquecidas responderam a um só tempo – “Fugireis”. – “Como?” – perguntou Janduí. “Tenho mais homens que os meus inimigos, sem contar o socorro que espero dos holandeses.” Uma só voz respondeu-lhe: – “Tu o esperas, mas ainda não está aqui;” Isto foi escutado por todos, e todos, o ancião, os feiticeiros, os homens e as mulheres puseram-se a chorar e lamentar-se cerca de meia hora. Então, uma quinta voz falou a Janduí e disse-lhe – “Não combatas com os teus inimigos sem os holandeses: recua e a dissensão lavrará entre eles, e eles se matarão uns aos outros”. Ouvindo isto o povo reanimou-se e pôs-se a dançar o resto da noite, ao fim da qual o Diabo se retirou.
Como visto, o fumo estava presente no cotidiano dos Tarairiu de Janduí, sendo utilizado em determinadas cerimônias especiais e invocações de espíritos. A presença de Houcha e outras entidades é tão real, ativa e sensivelmente descrita, que me pergunto se o Grande Espírito que aconselhava Janduí não era uma espécie de karaíba (grandes pajés que viviam isolados na floresta) que visitava aqueles tapuias; ou um espírito que se manifestava por intermédio de um “esconjurador” (assim eram chamados os pajés tarairiu que recebiam entidades espirituais em seus corpos, ou seja, que eram médiuns). O próprio Janduí foi considerado um demônio, por um companheiro de Roulox Baro, que acreditou ser impossível um homem com mais de cem anos de idade ter a disposição e a vitalidade apresentada pelo morubixaba interiorano.
No que se refere aos Tapuy’ya Kiriri, Olavo de Medeiros Filho, citando o padre Bernardo de Nantes, afirma que entre os cariris havia o culto da jurema.
[…] o feiticeiro, agitando o maracá adornado de plumas, servia aos participantes uma beberagem sagrada, extraída das raízes da jurema, a qual proporcionava aos indígenas visões e sonhos maravilhosos, em que surgiam rochedos enfeitiçados, pássaros irradiando relâmpagos de um enorme tufo existente no alto da cabeça [ÍNDIOS DO AÇU E DO SERIDÓ, 2011, p. 74-75].
Conforme demonstram as notas selecionadas de textos escritos por alguns dos primeiros cronistas europeus que estiveram no Brasil, nossos indígenas evocavam espíritos fazendo uso ritual da fumaça de tabaco, faziam-lhes oferendas, bebiam jurema, entravam em transe, mudavam a voz e tinham visões espirituais – semelhante ao que acontece nas atuais sessões de nossos terreiros.
(Texto adaptado de meu primeiro livro Espiritualidade Indígena e Culto à Jurema no Rio Grande do Norte. A palavra karaíba significa “homem santo” – karaí, santo, aba, homem; era como se chamavam os grandes pajés que, embora vivessem isolados na floresta, dela saíam a cada dois ou três anos para visitar as aldeias. Os caraíbas eram muito respeitados por todos os índios).
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