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Por Humberto Maggi
excerto de Rainhas da Quimbanda
Vimos que na época de Fontenelle já estava se tornando clara uma divisão fundamental entre o Cemitério e a Encruzilhada. A divisão das Linhas da Quimbanda enfatizava uma classificação dos espíritos de acordo com o tipo ou local de origem, mas em algum momento (ainda indeterminado) um arranjo diferente evoluiu. Fontenelle já falava do Reino de Obatalá e do Reino de Odum que dividiam os espíritos entre a boa Umbanda e a Quimbanda do mal, mas depois a Quimbanda e seus espíritos começaram a ser vistos em uma luz melhor e surgiu uma divisão de Reinos centrada em lugares: Reino das Encruzilhadas, Reino dos Cruzeiros, Reino das Matas, Reino da Kalunga Pequena (cemitério), Reino das Almas, Reino da Lira e Reino da Kalunga Grande (mar).
O conceito de reino aqui se refere a lugares de poder onde vibrações astrais específicas se manifestam fortemente, permitindo que certas entidades se manifestem com mais força. Essas entidades não estão necessariamente vinculadas a esses lugares, mas é aí que a conexão com um dos reinos pode acontecer melhor. Por exemplo, os espíritos do Reino das Almas, cuja função é ajudar as almas no momento da morte, estão mais presentes nos locais onde ocorre essa transição, do último suspiro ao sepultamento do cadáver: hospitais, necrotérios, capelas funerárias. Assim que o funeral chega ao cemitério, se a alma ainda se apega ao cadáver, ela entra no Reino da Kalunga Pequena, onde pode ser aprisionada. Essas almas dos mortos, chamadas kiumbas, podem ser forçadas a trabalhar para os exus da Kalunga Pequena ou podem ser cooptadas para servir a um quimbandeiro.
O Cruzeiro, a grande cruz de fundação geralmente no centro do cemitério, também conhecido como Cruz das Almas, é considerado uma porta de entrada entre os diferentes planos da existência, e por isso se acredita que os espíritos do Reino do Cruzeiro também podem ser contatados em pontos liminais como portas e portões. A noção de cemitério pode ser estendida ao oceano, como já vimos, e os espíritos do Reino da Kalunga Grande costumam ser as almas dos afogados; o mesmo pode ser dito do Reino das Matas.
O Reino da Lira está associado a locais de prostituição, motéis, boemia, bares, cabarés; com a música, as artes, etc., de modo que suas obras são muito menos necromânticas e relacionadas à morte do que as dos outros. Os espíritos deste reino estão ligados à música, dança, etc.
O Reino da Encruzilhada é geralmente o primeiro nas listas de reinos que encontramos nos livros. É de fato o mais próximo do conceito original do orixá Exu, que não está diretamente relacionado aos mistérios da morte. Vimos que nas descrições iniciais da Quimbanda outro orixá, Omulu, estava associado aos cemitérios. O Reino das Encruzilhadas trata da abertura e fechamento dos caminhos, da circulação de energias, da comunicação e das viagens – atribuições herdadas de Exu.
Parece que o Reino “primário” da Quimbanda era então a Encruzilhada; como vimos, existia um Rei das Encruzilhadas mesmo antes do surgimento da divisão dos reinos. A adição do Cemitério não veio por herança do orixá original Exu, mas evoluiu do importante papel dos mortos na religião bantu que se acentuou com o sincretismo entre a Macumba e Kardecismo. A isso temos que adicionar a influência católica: a Devoção às Santas Almas do Purgatório é provavelmente a inspiração para a criação da Linha das Almas. Os católicos tinham uma tradição popular de rezar às Almas do Purgatório, especialmente às segundas-feiras, e a visita ao cemitério para rezar pelos mortos não é apenas popular e tradicional, faz parte dos regulamentos oficiais da Igreja:
Coemeterii visitatio
Visita ao Cemitério
Uma indulgência, aplicável apenas às Almas do Purgatório, é concedida aos fiéis, que visitam com devoção um cemitério e rezam, ainda que mentalmente, pelos defuntos. A indulgência é plenária todos os dias de 1 a 8 de novembro; nos outros dias do ano é parcial.[1]
Coemeterii veterum christianorum
seu ‘catacumbae’ visitatio
Visita a um antigo cemitério cristão ou ‘catacumba’
Uma indulgência parcial é concedida aos fiéis, que visitam com devoção um dos primeiros cemitérios cristãos ou “catacumbas”.[2]
A ortodoxia católica vê as Almas do Purgatório como necessitadas de nossa ajuda, mas nega a elas qualquer poder de intervenção em nosso mundo ou em nossas vidas. É aqui que o Livro Português de São Cipriano se desvia e ajudou a criar todas as práticas na Umbanda e Quimbanda onde as almas do Purgatório e as presas nas suas sepulturas são convencidas ou obrigadas a prestar serviços mágicos. Embora a ideia de que a alma pudesse ser aprisionada na sepultura não seja ortodoxa, a partir de exemplos como do julgamento da demoníaca freira Madalena de la Cruz no século XVI, vemos que muitas vezes ela poderia passar incontestada.
Os espíritos de cada reino são divididos em legiões ou povos, uma divisão mais próxima do sistema de Linhas original; no Reino da Encruzilhada temos:
- Povo da Encruzilhada da Rua
- Povo da Encruzilhada da Lira
- Povo da Encruzilhada da Lomba
- Povo da Encruzilhada dos Trilhos
- Povo da Encruzilhada da Mata
- Povo da Encruzilhada da Kalunga
- Povo da Encruzilhada da Praça
- Povo da Encruzilhada do Espaço
- Povo da Encruzilhada da Praia
A partir disso, vemos que a influência dos exus se estendeu a outros lugares, alguns derivados das Linhas da Umbanda, ou Linha dos Orixás: a Praia de Iemanjá, e a Floresta de Oxóssi; lugares como a rua e a praça já eram associados a Exu, e os trilhos podem ser vistos como um equivalente moderno das ruas e estradas. A “Lira” é geralmente associada ao instrumento musical lira (grego: λύρα, lýra) com o qual Orfeu encantou o deus do submundo Hades para resgatar sua esposa morta – um feito semelhante também foi tentado em vão por um quimbanda, como vimos.
Eu tive a sorte de encontrar o que parece ser a origem do Reino da Lira; temos uma linha direta de descendência a partir do Povo da Lira ou Turma da Lira, que percorria o centro do Rio de Janeiro nas primeiras décadas do século XX, e a essa nós devemos acrescentar a grande popularidade que Orfeu (e a lira, por extensão) desfrutou no Rio de Janeiro dos anos 50 aos 70.
Sabemos que a expressão “povo da …” é típica da Quimbanda; assim temos o Povo da Rua, o Povo da Encruzilhada, etc. Nas primeiras décadas do século XX, no mesmo Rio de Janeiro onde surgiram a Umbanda e a Quimbanda, tínhamos o Povo da Lira, uma associação livre de capoeiras e seresteiros. Ambas as atividades eram um meio de subsistência para seus adeptos, os capoeiras, trabalhando para políticos como guarda-costas desde o final do século XIX com um papel importante nas eleições.
Ambas as atividades eram realizadas nas ruas, o que também ajudou a identificar este tipo de pessoas com os exus e as pombagiras, para os que os identificavam com as almas de pessoas marginalizadas cujas atividades (como a prostituição) aconteciam principalmente nas ruas. De fato, o Povo da Lira nas primeiras décadas do século XX se opôs bravamente às constrições da ordem social elitista, o que lhes valeu o epíteto de “O Invencível Povo da Lira”.
Se a prática da capoeiragem era proibida por lei, e a formação de grupos promovendo cantorias, batucadas ou equivalentes era inibida pela ação coercitiva policial, a existência da “turma ou povo da lira” já representava um fator de desafio à ordem republicana.[3]
Os boêmios “valentes”, “bambas” ou “cafajestes” que faziam parte desse grupo são os predecessores diretos dos “malandros” que também foram consagrados como espíritos na Umbanda e na Quimbanda.
A história de Orfeu ganhou grande popularidade no Brasil nos anos 50: o poeta e político Jorge de Lima publicou o livro poético Invenção de Orfeu em 1952; o poeta modernista Murilo Monteiro Mendes publicou quatro poemas inspirados no herói trácio no período e, mais importante, uma peça musical dos músicos brasileiros Vinicius de Moraes e Antônio Carlos Jobim, Orfeu da Conceição, estreou em 1956, e foi filmada no Rio de Janeiro, pelo cineasta e escritor francês Marcel Camus, em 1959. Se prestarmos atenção a que os Reinos da Quimbanda não foram mencionados na obra de Fontenelle publicada nesta década, podemos considerar seriamente que a posterior inspiração para o Reino de Lira veio desse musical e da tendência poética no Rio de Janeiro naquela época. Os tons necromânticos do conto de Orfeu e seu uso da lira se encaixariam muito bem com as ideias em desenvolvimento sobre os exus e as pombagiras.
Os exus do Reino das Encruzilhadas são normalmente chamados para abrir ou fechar os caminhos para alguém, para alcançar a vitória sobre os inimigos, a paz nas provações, para ensinar feitiçaria e magia, trazer saúde ou doença, abrir fechaduras e quebrar correntes, tirar os pobres da pobreza e arruinar os ricos, a clarividência, unir os casais, trazer o progresso e o atraso, etc. De acordo com a minha própria experiência, posso dizer que a Rainha das Sete Encruzilhadas é uma Mestra da Magia.
Antes da criação da divisão dos reinos da Quimbanda, os Exus da Encruzilhada com seu Exu-Rei eram identificados com a Linha de Malei; até a primeira edição de Como Desmanchar Trabalhos de Quimbanda, de 1966, de Antônio Alves Teixeira Neto (“Antônio de Alva”) esta é ainda a referência utilizada, e neste trabalho nos é fornecida uma descrição muito interessante dos Exus da Encruzilhada:
Os Espíritos que trabalham nessa Linha são os EXUS das encruzilhadas e têm Eles o aspecto do DIABO do catolicismo. Apresentam-se com chifres, têm pernas e cascos de bode. Uns se apresentam com formas de macacos, outros sob a figura de um morcego. Têm sobre a cabeça uma luz avermelhada e sem brilho. Empunham tridentes e os seus chefes usam espada. Provocam vícios como a embriagues, do jogo, produzem impotência sexual, sendo também especialistas em assuntos relativos às funções sexuais, unindo e separando casais. Qualquer trabalho, pois, feito numa encruzilhada (em forma de cruz e não em forma de um “T”; esta é encruzilhada de POMBA-GIRA) está sempre por conta desses espíritos, embora outros também ajam nas encruzilhadas.
Vemos aqui que o surgimento dos reinos não aconteceu (ou não foi reconhecido) pelo menos até 1966, que o Exu-Rei ainda não era pareado com uma rainha e que Pombagira ainda era apenas o nome de uma entidade (e não para uma categoria) que governava especificamente no tipo “T” de encruzilhada.
O símbolo do Reino das Encruzilhadas é composto de dois tridentes cruzados; as cores atribuídas a ele são preto e vermelho; o dia da semana é a quarta-feira; o planeta Mercúrio e o dia sagrado, 7 de julho.
Notas:
[1] The Enchiridion of Indulgences: Norms and Grants, Authorized English Edition Issued by the Sacred Apostolic Penitentiary, 1968.
[2] Ibid.
[3] Da “Turma Da Lira” ao Cafajeste: A Sobrevivência da Capoeira no Rio de Janeiro na Primeira República, Luiz Sergio Dias.
MAGGI, Humberto; RIVAS, Verónica. Rainhas da Quimbanda: Rainha das Sete Encruzilhadas & Maria Padilha. Indaiatuba: Editora Via Sestra, 2021. 234 p.
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