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Muiraquitã

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Shirlei Massapust

Após realizar escavações no Amazonas e coordenar uma equipe de arqueólogos brasileiros e estrangeiros na região dos rios Negro e Solimões, totalizando dezesseis anos de experiência de campo, o prof. Eduardo Góes Neves escreveu o livro Arqueologia da Amazônia (2006). Nesta obra ele afirma que entre 900 e 1600 d.C. houve ocupação da região dos rios Trombetas, Amazonas e Tapajós por grupos produtores de cerâmicas da tradição incisa e ponteada (Santarém e Konduri), de estatuetas de pedra polida e muiraquitãs. Apesar de associados à cerâmica Konduri, os artefatos conhecidos como muiraquitãs não são exclusivos da região do Nhamundá-Trombetas, pois há informações de sua ocorrência em locais como a ilha de Marajó, Santarém, alto Tapajós e até mesmo ao norte de Manaus.

Os muiraquitãs são normalmente bastante pequenos, sendo quase sempre zoomorfos — os antropomorfos são bem mais raros. Eles são também encontrados fora da Amazônia, nas Guianas e ilhas do Caribe. Não está ainda claro se a região do Nhamundá-Trombetas era o único centro de produção a partir do qual circulavam esses artefatos ou se eles eram produzidos em vários locais diferentes. O fato é que a distribuição de muiraquitãs por uma ampla área indica que as populações amazônicas do início do segundo milênio não estavam isoladas, mas sim integradas em redes de comércio ou de outros tipos, que permitiam o contato. Devido a seu tamanho reduzido e alta portabilidade, muiraquitãs são peças sujeitas a roubo e contrabando.[1]

Segundo Eduardo Góes Neves, artefatos líticos polidos com iconografias comuns são encontrados distribuídos por vastas áreas, “indicando a ocorrência de formas de contato que integraram populações em redes mais amplas”.[2] Os muiraquitãs mais comuns são em forma de sapo, feitos de pedras esverdeadas, mas há exemplares de rocha branca e com outros motivos zoomorfos.[3] No livro o exemplo fotográfico que o arqueólogo oferece é um peixe branco, mas,  durante uma entrevista realizada pela repórter Sylvia Miguel para o Jornal da USP, o prof. Eduardo Góes Neves mencionou a existência de muiraquitãs em forma de morcego:

Bem pequenos (…) os muiraquitãs, quase sempre confeccionados em rochas esverdeadas, tinham em geral forma de sapos. Mais raramente, podiam ser talhados também em rochas brancas, em formatos de morcegos, peixes e homens. Associados à cerâmica konduri, os muiraquitãs não são exclusivos da região do Baixo Amazonas. Há informações de sua ocorrência na ilha de Marajó, além de Santarém, Alto Tapajós, norte de Manaus e até nas Guianas e ilhas do Caribe, segundo o professor Eduardo Góes Neves, do Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE) da USP.[4]

A função de um muiraquitã é desconhecida. Contudo, segundo José Luiz Lopes Garcia e Francesco Palermo Neto, conhecemos um pequeno repertório de estatuetas em pedra polida proveniente da região Amazônica representando humanos e animais, especialmente onças e sucuris. Iluska Simonsen e André Prous falam de cerâmicas zoomorfas pré-históricas jogadas em grande quantidade na lagoa Miararré, no Alto Xingu, perto da aldeia Kikuro, provavelmente datadas dos séculos XIV e XV. Segundo os indígenas atuais, a presença destas peças na lagoa garantiu a abundância de peixes até quando foram retiradas de lá.[5]

A opinião dos especialistas sobre a etimologia do termo muiraquitã é bastante divergente. A corrente minoritária afirma que mu’ir são quaisquer missangas, incluindo aquelas com aspecto de figuras zoomorfas. A corrente majoritária se socorre da composição etimologia do termo tupi miraki’ta, enquanto missanga (mu’ir) relacionada ao uso (aki) da imagem de um batráquio (itã), embora existam, para além das pequenas esculturas de sapos e rãs, também peças cilíndricas, fusiformes, etc. Frederico Barata admite apenas as formas batráquias com furos[6] laterais duplos, não visíveis pela parte frontal, conforme descrito em O Muiraquitã e as Contas dos Tapajós (1954).

Boomert (1987) restringe mais ainda a difusão do padrão iconográfico às formas batráquias esculpidas no Baixo Amazonas conforme um estilo diferente das regiões do Caribe, índias Ocidentais, Venezuela, Guiana e Suriname.

A corrente minoritária admite que as missangas eram feitas em todas as variedades de jade (nefrita, cloromelanita, jadeita) e qualquer outra pedra de boa aparência, existindo variantes modeladas em argila. A corrente majoritária exige que sapos ou rãs sejam esculpidos preferencialmente em nefrita verde, minerada em jazidas brasileiras, tendo desenhos sulcados em baixo relevo[7].

Equiparar este padrão aos demais artefatos pré-colombianos esculpidos em pedras verdes equivaleria a colocá-lo num lugar comum. Todavia é verdade que a cultura da pedra verde foi importante na região setentrional da América do Sul. Peças zoomorfas, inclusive batráquias, foram encontradas na Venezuela, Guiana, índias Ocidentais (Antilhas, Mar do Caribe), América Central Continental, Colômbia, Venezuela, Guiana, Guiana Francesa, Suriname e etc.

Assim continuamos receosos em identificar uma hipótese de interação e fusão de estilos na escultura de jaspe verde-escuro PC.B.532 da reserva técnica do Dumbarton Oaks, que é um curioso pingente pré-colombiano de procedência desconhecida representando o que parece um misto abrasileirado de rã, mulher e morcego.[8]

Conforme exposto, no Brasil a maioria dos muiraquitãs provém do Baixo Amazonas, especialmente da área do rio Tapajós. Nesta região desenvolveu-se a cultura/tradição Tapajó/Santarém e Konduri, dizimadas pelo contato com o colonizador europeu a partir do século XVI. Há notícias de ocorrências de muiraquitãs no rio Nhamundá, nos municípios de Óbidos e Faro, também no Oiapoque, ilha do Marajó, às proximidades de Manaus e no alto Rio Negro, que não especificam a forma.

Autores do século XIX mencionaram pedras verdes com formas zoomorfas ou geométricas encontradas na terra habitada pelos índios Tapajós, da nação Tupinambá. A qualidade do material despertou o interesse de viajantes que levaram peças para Europa. Hoje elas se encontram em museus e coleções particulares. No Brasil quatro exemplares estão no Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG), na cidade de Belém do Pará, e cinco no Museu Paulista de Arqueologia e Etnologia (MAE) da Universidade de São Paulo (USP).

No Baixo Nhamundá os índios Uaboi dizem que as mulheres oferecem o próprio sangue às pedras no momento em que as retiram da água para esculpir e dar aos homens; “as lendas contam que os muiraquitãs eram magicamente elaborados a partir da lama de um lago da região do Yamundá ou que os muiraquitãs eram formas vivas encontradas nos lagos dessa região[9]”. João Barbosa Rodrigues teve o desprazer de testemunhar a morte da maioria dos Tapajós, afetados por uma doença cujos principais sintomas eram disenteria e febre hemorrágica. Neste interim uma senhora obteve um amuleto protetor:

Começou em 1750, com uma epidemia de cursos de sangue que apareceu e em 1798 eles já não existiam, senão cruzados com outros. Tive ocasião de estar com uma velha Tapajós, em Santarém, e nela vi pela primeira vez em seu pescoço um grosso muiraquitã, que guarda como uma relíquia, e diz ser boa para dores de garganta. Disse-me ela, que em certa época do ano, partiam alguns companheiros para o Amazonas, e traziam esse enfeite.[10]

Não há uma regra na estética que determine que o muiraquitã deva ser usado na cabeça ou pendurado num colar junto ao peito. Os índios Pariukur do rio Arukuá do Estado do Pará usavam pendurado no nariz, semelhante à moda mochica, e quando morriam eram enterrados com o mesmo. Em 2002 uma equipe escreveu que “recentemente um pajé indígena brasileiro tentou curar o indigenista brasileiro Augusto Rushi que teria sido atingido pelos poderes maléficos de batráquios da Amazônia”.[11]

Eu, que nunca tive o desprazer de ser atingida por um dardo envenenado de zarabatana, não sei informar se o curare tradicional extraído das trepadeiras amazônicas Chondodendron tomentosum e Strychnos toxifera (princípio ativo C36H38N2O6) é mais ou menos eficiente que o veneno do bonito sapo okopipi (Dendrobates tinctorius) adaptado para secretar alcaloides causadores de paralisia muscular; cujo mero contato pode nos fazer parecer temporariamente tão mortos quanto vampiros que ressuscitam para o assombro do mundo, quando não acaba nos matando de verdade.

Medo de vampiros e muiraquitãs no século XX

Um artigo do jornal londrino The Mirror, edição de sábado, 09/12/1967, deu publicidade internacional a uma suposta notitia criminis investigada pela polícia civil de Manaus, no Estado do Amazonas (Brasil). Na noite de sexta feira trinta policiais fizeram ronda numa das três praias do Rio Negro em busca de uma suspeita de prática de lesão corporal, pois uma criança machucada no pescoço teria sido atacada por uma “vampira”. O retrato falado descrevia uma loira fatal “com dentes longos e pontiagudos” trajando minissaia e meia calça preta.[12]

Posteriormente Moisés F. Damacena, um leitor de quadrinhos de horror, enviou carta para a revista Coleção Assombração narrando para os ficcionistas como este “caso verídico” se atualizou ao ponto de se tornar lenda urbana no prazo de trinta e três anos. Trajada como uma vamp de discoteca, a loira caçadora de turistas teria poderes de transmutação, força física descomunal e mataria suas vítimas deixando marcas no pescoço iguais às descritas em qualquer filme de vampiros do período.

Ela é vista “correndo seminua pela praia e transformando-se em sereia para desaparecer nas águas escuras”. No momento em que seu “amuleto” foi encontrado pelos patrulheiros enviados pelo Secretário de Segurança Pública ela se esvaiu lutando, esquartejou oito homens armados e nocauteou quatro. Somente um soldado, Jesuíno Menezes, teria conseguido descrever uma mulher grande, de 1,90m ou mais, muito branca, olhos felinos, vermelhos, longos cabelos louros e dentes arreganhados, limados e afiados. O amuleto – diz a lenda – foi levado aos peritos do Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG) e identificado como um legítimo muiraquitã indígena. Depois que aquilo foi retirado das águas, “nunca mais se repetiram aqueles crimes nas praias de Manaus.[13]

Independentemente do que aconteceu ou não aconteceu em 1967, os relatos misturaram o folclore regional a elementos cinematográficos. São os espíritos dos muiraquitãs em exibição permanente no MPEG que ainda tentam proteger ou vingar os nativos da bacia hidrográfica do Rio Negro contra a descendência do invasor europeu, projetando os medos da população? Quatro anos depois, num recôndito da floresta Amazônica, um filme de monstros provocou surtos de paranoia. Otávio Velho estudou o caso dum povoado camponês que se armou contra a chegada duma “comitiva vampírica” na inauguração dum trecho da Transamazônica que ia até Marabá, em 1971:

Coincidiu a época da inauguração da rodovia com a exibição em Marabá de um filme sobre vampiros que causou grande impressão entre alguns moradores do povoado que o assistiram. No dia da inauguração da rodovia foram vistos atravessando a nova estrada na direção de Marabá grande número de “carros pretos”, certamente ligados à comitiva presidencial. Imediatamente surgiu a notícia no povoado de que estavam chegando vampiros à região, cuja técnica consistia em oferecer bombons às crianças para a seguir agarrá-las e chupar o seu sangue. Estabeleceu-se um pânico generalizado com os homens se armando e as mães buscando os seus filhos.[14]

E assim vislumbramos como um amplo conjunto de crenças de povos originários americanos encantou escritores e cineastas europeus e estadunidenses, até retornar para nós insuflado de toda carga de soberba e glamour a qual um falso diabo tem direito.

Notas

[1] NEVES, Eduardo Góes. Arqueologia da Amazônia. São Paulo, Zahar, 2006, p. 50, Edição do Kindle. URL: <https://www.amazon.com.br/Arqueologia-Amaz%C3%B4nia-Descobrindo-Brasil-Eduardo-ebook/dp/B008M6CEK8>.

[2] NEVES, Eduardo Góes. Arqueologia da Amazônia. São Paulo, Zahar, 2006, p. 34, Edição do Kindle.

[3] NEVES, Eduardo Góes. Arqueologia da Amazônia. São Paulo, Zahar, 2006, p. 49, Edição do Kindle.

[4] MIGUEL, Sylvia. A vida na Amazônia pré-colonial. Em: Jornal da USP, ano XXI, nº 760, de 24 a 30 de abril de 2006. URL: <http://www.usp.br/jorusp/arquivo/2006/jusp760/pag06.htm>

[5] GARCIA, José Luiz Lopes & NETO, Francesco Palermo. A Documentação Arqueológica Sobre as Figuras Zoomorfas de Cerâmica do Sítio Brazabrantes I no Centro Oeste Brasileiro. Em: MUSEOLOGIA & INTERDISCIPLINARES: Revista do programa de pós-graduação em Ciência da Informação da Universidade de Brasília. Vol. IV, nº 8, dez. de 2015, p 186-187. Versão online: <file:///C:/Users/Windows%207/Downloads/15087-54127-1-PB.pdf>

[6] Supõe-se que os furos laterais eram feitos usando graveto de Phenakospermum guyanense, areia fina e água, prendendo-se a pedra entre os dedos polegar e indicador de um dos pés e fazendo-a girar entre as palmas das mãos, perfurando com habilidade, paciência e tempo.

[7] Os muiraquitãs tem comprimento de 44 a 64 mm, largura de 22 a 57 mm e espessura de 15 a 19 mm em média. As formas batráquias encontradas além do domínio do Baixo Amazonas apresentam design distinto e geralmente são menos elaboradas.

[8] ANTHROPOMORPHIC PENDANT PC.B.532 (6.7cm  x  4.8 cm  x 1.9 cm ). Dumbarton Oaks: Research Library and Collection. URL: <http://museum.doaks.org/Obj22848?sid=2908&x=28385&port=3096> Acessado em 05/07/2016 as 1h30.

[9] COSTA, Marcondes Lima da; SILVA, Anna Cristina Resque Lopes da; ANGÉLICA, Rômulo Simões. Muyrakyta ou muiraquitã: um talismã arqueológico em jade procedente da Amazônia: aspectos físicos, mineralogia, composição química e sua importância etnogeológica. Publicado no portal do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia em 01/09/2002, p 477. URL: <http://www.scielo.br/pdf/aa/v32n3/1809-4392-aa-32-3-0467.pdf>

[10] RODRIGUES, João Barbosa. Exploração e Estudo do Valle do Amazonas: Rio Tapajós. Rio de Janeiro, Typographia Nacional, 1875, p 130.

[11] COSTA, Marcondes Lima da; SILVA, Anna Cristina Resque Lopes da; ANGÉLICA, Rômulo Simões. Muyrakyta ou muiraquitã: um talismã arqueológico em jade procedente da Amazônia: aspectos físicos, mineralogia, composição química e sua importância etnogeológica. Publicado no portal do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia em 01/09/2002, p 483. URL: <http://www.scielo.br/pdf/aa/v32n3/1809-4392-aa-32-3-0467.pdf>

[12] BERGIER, J. O Livro do Inexplicável. Trad. Francisco de Sousa. Curitiba, Hemus, 1973, p 204-205.

[13] DAMACENA, M.F. Vampiras do Rio Negro. Em: COLEÇÃO ASSOMBRAÇÃO (1997) n. 7, p 16-20.

[14] VELHO, Otávio. Capitalismo autoritário e campesinato. São Paulo, Difel, 1976. p. 238.


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