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Cultos Afro-americanos

Kalunga Grande, o Mar dos Mortos

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por Silmara DeVane

O Reino da Kalunga Grande, também conhecido como Reino da Praia, é uma das esferas espirituais mais complexas e simbólicas dentro das tradições afro-brasileiras, especialmente da Quimbanda. Este domínio é governado por Exu Rei da Praia e Pombagira Rainha da Praia, duas potentes entidades que comandam as forças das águas e das emoções humanas. Com relação a sua “atmosfera” recorremos a essa apresentação feita por Tatá Caratu no Caminho das Serpentes:

“Até os dias atuais, o oceano continua a ser o meio mais utilizado para o transporte de grandes volumes de mercadorias, transformando a praia em um reino tão dinâmico quanto a encruzilhada ou a lira. A maioria das cidades litorâneas foi pioneira no desenvolvimento ao redor do mundo, uma vez que os portos desempenharam um papel crucial na recepção e envio de mercadorias de diversas partes do globo. É importante notar que, antes da exploração marítima, os rios já eram utilizados para o transporte de pessoas e mercadorias por embarcações de diversos tamanhos.

Além do aspecto comercial, ao explorarmos o reino da praia deparamo-nos com outras características intrínsecas a esse ambiente. Uma delas é a sensação de bem-estar proporcionada pelo mar, enquanto outra, completamente diferente, revela sua face sombria e densa. Aqueles que já entraram no mar durante a noite provavelmente experimentaram um arrepio na espinha, acompanhado da constante sensação de estar sendo observado. Embora a praia transmita uma atmosfera descontraída e relaxante, ela também exibe uma densidade energética potencialmente destrutiva.”

Kalunga é um termo de origem bantu, vinculado aos povos da África Central, que associavam essa palavra ao mundo dos mortos. No contexto da espiritualidade afro-brasileira, Kalunga Grande refere-se ao mar e aos rios — os grandes caminhos de travessia entre o mundo físico e o espiritual — sendo o nkisi Kalunga Ngombe a divindade que rege esse espaço no panteão bantu.

Para os bakongos, da região do Congo-Angola, Kalunga representava tanto o limite entre mundos quanto uma força vital presente nas águas. Essa visão cosmológica atravessou o Atlântico e moldou rituais no Brasil, em especial na Quimbanda. Durante o período colonial, os africanos escravizados viam o oceano como “o grande rio”, pois muitos de seus familiares desapareciam nele durante a travessia forçada até o Brasil. Assim, Kalunga tornou-se símbolo de luto, transformação espiritual e portal entre mundos.

A geografia sagrada do Reino da Praia não se limita as praias e ao oceano. Abrange também ilhas, baías, faixas de areia, rios, grutas, pedreiras, cachoeiras, cavernas e matas costeiras. Essa abrangência evidencia sua conexão com o elemento água em todas as suas manifestações — tanto doce quanto salgada. A praia, afinal, é uma formação geológica composta por partículas soltas como areia, cascalho e seixos, localizadas nas margens de corpos d’água. Podem ser oceânicas, fluviais ou lacustres, sendo todas regidas pelas mesmas forças naturais e espirituais.

Entre algumas das legiões que compões o Reino da Kalunga Grande, temos: ​

Legião ou Povo dos Rios;
Legião ou Povo das Cachoeiras;
Legião ou Povo das Pedras Costeiras;
Legião ou Povo dos Marinheiros;
Legião ou Povo dos Piratas;
Legião ou Povo do Lodo;
Legião ou Povo do Mar;
Legião ou Povo da Ilha;
Legião ou Povo das Ondas;
Legião ou Povo dos Ventos;
Legião ou Povo das Profundezas.​​

Este é o reino mais influenciado pela Lua, cujas fases controlam as marés — fenômeno que serve de analogia para os ciclos emocionais e os estados psíquicos humanos. O vai e vem das ondas ecoa as flutuações do inconsciente e os mistérios do eu interior, conferindo a este reino uma profundidade simbólica singular. [Nota do Editor: A psicanálise jungiana relaciona a água ao inconsciente coletivo, reforçando essa associação mítica entre mares e o eu profundo.]

No imaginário espiritual e mítico de diversas civilizações antigas, os oceanos sempre foram considerados moradas de entidades poderosas e depositários dos segredos mais ocultos da Terra. Ainda hoje, a ciência não consegue explorar completamente as fossas abissais, devido à imensa pressão e isolamento desses espaços. Em várias tradições espirituais, acredita-se que multidões de almas estejam aprisionadas nos abismos dos mares, rios e lagos.

No universo da Quimbanda, essas entidades são mantidas em prisões astrais pelas falanges do Cruzeiro, e essas prisões são guardadas por Exus e Pombagiras do Reino da Praia — inacessíveis a outras classes espirituais. Esses guardiões são zeladores rigorosos do equilíbrio cósmico e dos segredos ocultos nas águas profundas. Assim, Exus e Pombagiras da Praia são capazes de conduzir os adeptos pelos caminhos da autodescoberta e da evolução. Ao explorar os meandros da psique humana, essas entidades conduzem o indivíduo ao centro de suas próprias emoções, forçando-o a confrontar dores ocultas e verdades reprimidas.

As entidades que atuam neste domínio são espíritos de pessoas que morreram próximas ou dentro de corpos d’água — sejam elas marinheiros, funcionários e escravos portuários, barqueiros, pescadores, piratas, náufragos ou mesmo indivíduos comuns que tiveram suas mortes ligadas ao mar, rios ou cachoeiras. Muitas dessas almas passaram por experiências intensas de dor, violência e afogamento, o que molda suas personalidades espirituais. Através desse sofrimento, ascenderam como mestres espirituais. São entidades que não se prendem ao sentimentalismo; sua atuação é objetiva e voltada ao cumprimento das metas espirituais. Por essa razão, são frequentemente invocadas em casos de problemas emocionais e relacionamentos, dada a forte ligação do elemento água com os afetos humanos. Contudo, sua ajuda nem sempre se manifesta como alívio: muitas vezes, provocam abalações emocionais profundas para que o consulente possa renascer mais forte.

Alguns desses espíritos são alegres e festeiros, associados à vibração da celebração, enquanto outros se mantêm reservados e introspectivos. Além de acolher náufragos, o mar já engoliu cidades inteiras, e esses espíritos guardam memórias de civilizações perdidas, cujos registros jamais foram documentados oficialmente. Assim, carregam conhecimentos ancestrais e místicos que ultrapassam as fronteiras do tempo.

O espaço físico da praia também possui qualidades energéticas notáveis. A areia é composta por microcristais, cada um funcionando como microponto de energia. Isso transforma as praias em centros de recepção e emissão energética de alta intensidade. A água salgada, por sua vez, é amplamente utilizada em práticas de limpeza espiritual, pois o sal possui propriedades que desobstruem os centros energéticos (chacras) e promovem bem-estar.

No entanto, essa limpeza não é seletiva — ela drena qualquer tipo de energia, o que exige cautela na realização de trabalhos mágicos. O ambiente de praia, portanto, é ao mesmo tempo um local de cura e de exposição, um santuário e um campo de prova espiritual, onde forças sutis atuam tanto para elevar quanto para testar o indivíduo.

Diversas falanges espirituais integram o Reino da Kalunga Grande, cada uma com atributos próprios: o Povo dos Rios, das Cachoeiras, das Pedras Costeiras, dos Marinheiros, dos Piratas, do Lodo, do Mar, da Ilha, das Ondas, dos Ventos e das Profundezas. Essas legiões representam diferentes aspectos da água e de suas manifestações simbólicas. Cada uma atua em áreas específicas do plano astral e do desenvolvimento humano, guiando os adeptos por experiências espirituais conforme suas afinidades e necessidades.

Os filhos espirituais desse reino carregam características marcantes e sua superfície descontraída e amigável frequentemente ocultam – tal como o reino a que tem ligação – a habilidade de drenar a alma até sua completa exaustão.  São, em geral, emocionalmente intensos, intuitivos, flexíveis, mas também inconstantes e carentes. Apresentam forte senso de geolocalização e liberdade interna, sendo desapegados de normas e convenções sociais. Têm tendência à instabilidade de humor, à manipulação emocional e até ao alcoolismo, refletindo a turbulência do reino que os rege. Sua psique é regida pelas águas: ora serenas, ora revoltas. São bons negociadores, carismáticos e geralmente de baixa estatura, porém trazem consigo uma carga emocional profunda e, muitas vezes, difícil de ser manejada. Vivem entre a alegria e o caos, entre a festa e o silêncio — assim como o próprio mar.

Por fim, é fundamental compreender o princípio espiritual que afirma: “Tudo é Kalunga!” Essa máxima, proferida por Exu Pantera Negra, e divulgada na obra Quimbanda – Fundamentos e Práticas Ocultas abaixo citada: tudo ao nosso redor é um grande cemitério, pois não há um único lugar onde algum ser já não tenha morrido. O leito de areia molhada da Kalunga Grande representa esse grande escoadouro para onde as águas levam, um a hora ou outra todos os cadáveres. O planeta, em si, é um espaço de constante transformação, onde a vida e a morte coexistem em ciclos incessantes.

Bibliografia:

– Introdução na Quimbanda, Danilo Coppini
– Quimbanda – Fundamentos e Práticas Ocultas
Os Caminhos da Serpente: Introdução à Quimbanda, Tata Caratu
Sete Reinos da Quimbanda por por T.Q.M.B.E.P.N


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