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Denízia Kawany Fulkaxó
Tunyrã um dos pequenos kurumin da comunidade, acompanha a vida do nosso povo, nossos costumes e rituais, vem crescendo, assim, já começa a puberdade, trazendo novos interesses, despontando a adolescência, despertando os interesses no caminho de se tornar um dos guerreiros da aldeia. O seu olhar para os assuntos da comunidade mudou, passa horas em pensamentos distantes, refletindo sobre assuntos que antes não o interessavam, olha de forma diferente para as meninas que em breve se tornarão mulheres e com nítido interesse vai definindo o seu caminho futuro, ele observa e começa a se interessar pelas práticas sociais dentro da aldeia, os jogos, as cantigas, os encontros com outros jovens, sempre muito atento.
Tunyrã está estudando o Ensino Fundamental II, atento aos debates, aos ensinamentos e as práticas e costumes do nosso povo, pergunta a seu avô Porãsutu:
– Vovô,
Fumar faz mal?
Fumar faz mal a saúde?
Seu avô que estava a apear o cavalo, para imediatamente, colocar pacientemente o cavalo para pastar, diz para ele:
– Pegue ali a minha chanduca,
Pegue o Tané, e venha sentar aqui comigo para chanducar. Vamos falar sobre esse assunto
Vamos falar sobre o fumar, sobre o fumo e sobre nós povos indígenas
Seu avô senta-se em um banquinho no terreiro da casa, acende a sua chanduca, pede para que o jovem Tunyrã puxe outro banquinho e sente-se ao lado dele e assim começa a falar:
- Tunyrã, para falar sobre esse assunto preciso te contar a história que os nossos antepassados
Contam os nossos ancestrais que há muito tempo atrás, mas é muito tempo mesmo, estamos falando de mais de dez mil anos, nosso povo veio de muito longe, de uma terra muito longínqua no oriente, na verdade falam os antropólogos sobre nossas origens de povos que vieram de várias partes em grupos que aqui se encontraram, grupos do continente asiático e até do extremo norte europeu, falam de regiões onde hoje está a Austrália, onde está a Mongólia, o Oriente Médio e até de grupos que vieram das terras onde hoje é a Rússia, pois bem, esses grupos aqui encontraram, terra fértil, clima favorável e se instalaram, formando assim os primeiros povos dos continentes hoje conhecidos como continente americano, na verdade esse nome foi dado pelos
colonizadores europeus em homenagem ao navegador italiano Américo Vespúcio que vendeu seus serviços tanto a coroa Portuguesa como a coroa Espanhola.
O nosso continente originariamente era conhecido por diversos nomes dentre eles, Abya Ayala que compreendia toda a região hoje denominada de América.
Tunyrã muito interessado na história, interrompe seu avô:
- Vovô, muito interessante essa história, mas a pergunta foi se fumar faz mal a saúde, o que tem a haver com a história do nosso povo?
- Calma menino!
Ouça a história e você vai compreender Tome modos e escute.
Porãsutu dá uma profunda baforada na sua chanduca liberando grande quantidade de fumaça que logo vai se dissipando e subindo pelos ares, enquanto ele retoma a conversa:
- Nosso povo faz parte desses grupos, ou seja, nós somos originários
Os povos originários viveram nesse território por milhares de anos, para isso, desenvolvemos as habilidades da caça, da pesca e da agricultura. Desenvolvemos nossas próprias tecnologias, arquitetura e assim os nossos saberes foram sendo transmitidos, domesticamos as sementes, as plantas, alguns animais e vivíamos em um eterno e farto paraíso.
Mas, é preciso entender que nosso povo carrega suas próprias crenças, crenças essas que nos conduziram até aqui há milhares de anos atrás e nos conduzem até hoje como povos protetores da natureza.
Para falar do fumar, eu preciso falar de BADZÉ. Você sabe quem é BADZÉ, né?
- Sim, vovô!
Badzé é o protetor do fumo, o organizador do mundo.
- Sim, Badzé é o protetor do fumo, o organizador do mundo, aquele que criou a tudo e a todos. O grande mestre formou os processos mentais, o pensamento.
Badzé é o grande pai foi ele que criou Poditã e o Warakdzã.
Poditã, filho de Badzé é o protetor da caça e da guerra e o Warakdzã é o protetor da noite e do sonho. Eles vivem nas sete estrelas, na constelação de Orion.
Badzé foi quem enviou Poditã para a terra no princípio dos tempos para ensinar ao nosso povo sobre as plantas, as medicinas, os frutos e grãos, foi Poditã que nos ensinou os segredos da caça, a fazer farinha de mandioca, a preparar utensílios para o nosso uso diário, foi ele que nos ensinou as artes do canto, da dança e os mistérios dos rituais, os segredos da pajelança e o grande segredo do nosso povo que mantém a vida na terra.
Warakdzã é quem rege a noite e seus mistérios, os sonhos e suas mensagens, os presságios e a sensitividade, os estados de consciência e as viagens para outras dimensões.
Nós povos originários reverenciamos BADZÉ e a ele nos conectamos através do uso da chanduca, a fumaça do Tané fortalece o corpo e o espírito dos que usam a sagrada chanduca ou pawí. Usamos a fumaça do tané também para a formação de um escudo de proteção quando estamos vulneráveis, para os recém-nascidos e suas mães enquanto estão com o corpo aberto no resguardo do pós-parto ou para proteger alguém dos seus males. Compartilhar a chanduca ou pawí fortalece os vínculos entre nós na comunidade.
Quando acendemos a chanduca assim como fazemos agora estamos em conexão com o sagrado, nos ligamos ao divino.
A fumaça que sobe leva nossos pensamentos, nossos pedidos, nossos males, nossos agradecimentos ao grande pai, quando cuspimos na terra, aterramos os pensamentos, confirmamos as intenções, assim nós entendemos o uso da chanduca.
Reverenciar sim, então fume, mas não trague, pois, o tragar pode trazer doenças O fumo é para se conectar ao Grande Espírito, não para você.
Em alguns momentos pode-se até tragar uma ou duas vezes para elevar e alterar o estado de consciência, abrir o campo dos sonhos trazendo mensagens e abrindo a mente para novos conhecimentos, mas não sempre, não como um vício, não como um hábito. O hábito é praticar o uso da chanduca ou do Pawí, o fumar de forma ritualística, de forma respeitável, de forma sagrada.
- Ah! Entendi, diz o jovem Tunyrã.
Fumar não faz mal, mas tragar pode trazer doenças É isso vovô?
- É mais ou menos isso filho, mas tem outros fatores que são muito importantes.
Nós povos originários no mundo inteiro usamos e reverenciamos a chanduca de diversas formas, ela tem grande poder de cura para algumas enfermidades, é um excelente repelente, na lavoura é usada contra as doenças das plantas, usamos infusões em garrafadas, em pastas com emplastros, em forma de rapé, mascando, bebendo, usamos como incenso, em tantas outras coisas, inclusive em rituais próprios e secretos. A chanduca é usada para selar a paz, para unir os parentes, para compartilhar as conversas e para nós indígenas, faz parte da vida diária.
Entre os povos originários, há aqueles que costumam cheirar um pó feito a partir das folhas secas, às vezes misturadas a outras ervas, entrecascos e raízes que chamamos de rapé, enquanto outros, os mais velhos fazem
pequenas bolas para mascarem, muitos povos ingerem o extrato do fumo em forma de chá, o sumo das folhas verdes misturado a outras ervas pode ser passado na pele como repelente ou como remédio na cura de coceiras e feridas, é poderosíssimo na cura de picadas de animais venenosos inclusive serpentes.
O manuseio dessa medicina é de grande responsabilidade, é sagrada, o seu manejo desde o cultivo, a escolha das folhas, seu preparo tradicionalmente deve ser feito com muita atenção, concentração, intenção, reza e tecnologia.
Existem diversas formas e tipos de preparos e de misturas que variam de povo para povo. O fumo pode ser usado puro ou misturado com outras plantas, há receitas especiais desenvolvidas por cada povo. Usamos em nossas cerimônias junto com outras medicinas, mas isso também vai do momento certo que é orientado pelos mais velhos e pelo pajé e faz parte das nossas ciências indígenas. Esses conhecimentos são ciências antigas e complexas que cabe a cada povo decidir quando como e com quem compartilhar, pois elas constituem seu íntimo sagrado e secreto.
O maior problema é que assim como com outras medicinas, o colonizador, invasor se apoderou dessa planta sagrada e desenvolveu um dos maiores males da humanidade, o cigarro, o seu mau uso matou e vem matando milhões de pessoas, pegaram uma planta sagrada, acrescentaram substâncias altamente tóxicas e viciantes, venenos, conservantes e mais uma vez se tornaram vítimas da sua própria ganância.
- Ynatekié obrigado vovô!
Hoje eu aprendi muito com você.
- Filho, lembre-se da minha resposta sempre:
Fumar faz muito mal Fumar mata as pessoas
Fumar causa doenças graves
O cigarro é um dos grandes males da humanidade.
Na certeza de que Tunyrã tinha entendido por que fumar de forma errada com outros tipos de substâncias acrescidas ao fumo faz mal, também que ele entendeu o significado do uso da chanduca pawí pelos nossos parentes em conexão com a ancestralidade.
Usar a Chanduca ou Pawí é um potente instrumento para estabelecer a conexão com o organizador do mundo, BADZÉ. Ele é o Grande Espírito da humanidade e o criador de tudo e de todos.
Após uma longa conversa sobre a chanduca, Tunyrã vai para sua casa na certeza de que seus encontros com seu avô ensinam muitas histórias de seu povo e sai cantarolando:
O cocar é minha casa
O pawí é meu coração
A maraca é o instrumento que o pajé fez pela união.
O lê, lê ra ra ra
O lê, lê ra ra ra Arreiarrá…
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