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Excerto de o Despertar dos Mágicos de Louis Pauwels e Jacques Bergier
Se não fosse aquele peregrino que de repente lhe apareceu mesmo a meio do deserto, onde prosseguia o jejum ritual da Quaresma, Frei Francis Gérard de L’Utah com certeza nunca teria descoberto o documento sagrado. Era aliás a primeira vez que tinha oportunidade de ver um peregrino com uma tanga a envolvê-lo, de acordo com a melhor tradição, mas um simples olhar bastou para convencer o jovem monge de que a personagem era autêntica. O peregrino era um velho desengonçado que coxeava apoiando-se ao clássico bordão; a barba selvagem estava manchada de amarelo à volta do queixo e transportava um pequeno odre ao ombro. Com a cabeça coberta por um amplo chapéu e sandálias nos pés, tinha os rins apertados por um pedaço de pano de sacos, bastante sujo e esfarrapado. Era o único vestuário que usava e assobiava (falso) enquanto descia a pista pedregosa do norte. Parecia dirigir-se para a abadia dos frades de Leibowitz, situada a uma dezena de quilómetros na direcção do sul.
Assim que avistou o jovem monge no seu deserto de pedras, o peregrino cessou de assobiar e começou a examiná-lo com curiosidade. Quanto a Frei Francis, absteve-se de quebrar a lei do silêncio imposta pela Ordem para os dias de jejum; afastando rapidamente o olhar, continuou portanto a trabalhar, trabalho que consistia em erguer uma muralha de pedras grandes para proteger dos lobos a sua provisória habitação.
Um pouco enfraquecido após dez dias de um regímen exclusivamente composto por bagas de cactos, o jovem monge sentia que a cabeça lhe andava à roda enquanto continuava o trabalho. Há já algum tempo que a paisagem parecia bailar-lhe diante dos olhos e via manchas negras flutuarem à sua volta; por isso, a princípio, perguntou a si próprio se aquela barbuda aparição não seria uma simples miragem provocada pela fome. . . Mas o peregrino não tardou em dissipar-lhe as dúvidas:
– Ola allay!, exclamou alegremente, numa voz agradável e melodiosa.
Visto que a lei do silêncio o impedia de responder, o jovem monge limitou-se a esboçar um sorriso, sem erguer o rosto.
“Este caminho vai realmente para a abadia?”, continuou então o vagabundo.
Sempre sem levantar os olhos, o noviço acenou afirmativamente com a cabeça, depois inclinou-se para apanhar um
pedaço de pedra branca, semelhante a giz.
“O que é que aqui faz, no meio de todos estes rochedos?”, continuou o peregrino aproximando-se dele.
Rapidamente, Frei Francis ajoelhou-se para riscar sobre uma grande pedra lisa as palavras “Solidão e Silêncio”. Se soubesse ler – o que aliás era pouco provável, considerando as estatísticas – dessa forma o peregrino poderia compreender que a sua simples presença era um motivo de pecado para o penitente, e com certeza se retiraria sem insistir.
“Ah, bom”, disse o barbudo.
Ficou um instante imóvel, passeando o olhar em volta depois bateu com o bordão numa grande rocha:
“Olhe, disse, aqui está uma que lhe convinha… Então boa sorte, e oxalá encontre a Voz que procura!”
De momento, Frei Francis não compreendeu que o estrangeiro quisera dizer “Voz” com V maiúsculo; pensou simplesmente que o velho o tomara por um surdo-mudo. Depois de lançar um rápido olhar ao peregrino que se afastava assobiando novamente, apressou-se a dedicar-lhe uma bênção silenciosa para que fizesse boa viagem, depois regressou ao seu trabalho de pedreiro, desejoso de construir um recinto fechado em forma de caixão no qual se pudesse estender para dormir sem que a sua carne servisse de atractivo para os lobos devoradores.
Passou-lhe por cima da cabeça um celestial rebanho de nuvenzinhas: depois de induzirem cruelmente o deserto em tentação, aquelas nuvens preparavam-se agora para derramar sobre as montanhas a sua húmida bênção… Essa passagem refrescou por momentos o jovem monge protegendo-o dos escaldantes raios de sol e aproveitou-os para intensificar o seu trabalho, sublinhando cada gesto com orações segredadas para confirmar a verdadeira vocação – pois era esse, na verdade, o fim que pretendia atingir durante o período de jejum no deserto.
Finalmente, Frei Francis pegou na grande pedra que o peregrino lhe indicara… mas as boas cores que adquirira ao cumprir o seu penoso trabalho abandonaram-lhe o rosto e deixou cair precipitadamente o pedaço de rocha, como se tivesse tocado numa serpente.
Jazia a seus pés uma caixa de lata enferrujada, parcialmente oculta pelas pedras. . .
Levado pela curiosidade, o jovem monge quis imediatamente pegar-lhe, mas primeiro recuou um passo e benzeu-se rapidamente, resmungando em latim, após o que, tranquilizado, não receou dirigir-se à própria lata.
“Vade retro, Satanás!”, ordenou-lhe, ameaçando-a com o pesado crucifixo do seu rosário. “Desaparece, Vil Sedutor!”
Tirando dissimuladamente de sob a túnica um minúsculo hissope, borrifou a lata com água benta, para o que desse e viesse. “Se és uma criatura diabólica, desaparece!”
Mas a caixa não deu provas de querer desaparecer, nem de explodir, nem sequer de se encarquilhar num odor de enxofre… Contentou-se em continuar tranquilamente no seu lugar, deixando ao vento do deserto o cuidado de fazer evaporar as gotas santificadoras que a cobriam.
“Assim seja!”, exclamou então o frade ajoelhando-se para pegar no objecto.
Sentado no meio das pedras, passou mais de uma hora martelando a caixa com uma grande pedra, a fim de a abrir. Enquanto se dedicava a essa tarefa, veio-lhe a ideia de que aquela relíquia arqueológica – pois era bem visível que disso se tratava – talvez fosse um sinal enviado pelo Céu para lhe indicar que a vocação lhe era concedida. No entanto, afastou imediatamente tal ideia, recordando-se a tempo de que o Frei Abade o pusera seriamente de sobreaviso contra qualquer revelação pessoal directa de carácter espectacular. Se deixara a abadia para cumprir no deserto aquele jejum de quarenta dias, reflectiu, era justamente para que a penitência lhe proporcionasse uma inspiração vinda do Céu, a chamá-lo para as Ordens Sagradas. Não devia esperar ser testemunha de visões ou ouvir-se chamar por vozes celestiais: tais fenómenos apenas trariam uma vã e estéril presunção. Inúmeros noviços tinham trazido do seu retiro no deserto abundantes histórias de presságios, de premonições e visões celestiais, motivo por que o Frei Abade adoptara uma política enérgica em face desses pretensos milagres. “O Vaticano é o único qualificado para se pronunciar sobre o assunto, resmungara, e é necessário evitar interpretar como revelação divina o que não passa do resultado de um golpe de sol”.
Apesar de tudo, no entanto, Frei Francis não podia impedir-se de manipular a velha caixa de metal com infinito respeito, enquanto a martelava o melhor que podia para a abrir…
Subitamente a caixa cedeu, espalhando o seu conteúdo pelo chão, e o jovem religioso sentiu um arrepio percorrer-lhe a espinha. Ia-se-lhe revelar a própria Antiguidade! Apaixonado por arqueologia, tinha dificuldade em acreditar no que via e pensou de repente que Frei Jeris ia ficar doente de inveja – mas logo se censurou por esse pensamento pouco caridoso e começou a agradecer ao Céu que o gratificava com semelhante tesouro.
Tremendo de emoção, tocou cautelosamente nos objectos que a caixa continha esforçando-se por os espalhar. Os seus antigos estudos permitiram-lhe descobrir no meio do conjunto uma chave de parafusos – espécie de instrumento utilizado outrora para introduzir na madeira toros de metal com roscas – e uma espécie de pequena tesoura, de lâminas afiadas. Descobriu também uma ferramenta bizarra, composta por um cabo de madeira carunchosa e por uma sólida haste de cobre à qual aderiam ainda algumas parcelas de chumbo derretido, mas não conseguiu identificá-la. A caixa continha ainda um pequeno rolo de fita negra e aderente, muito deteriorada pelos séculos para que fosse possível saber do que se tratava, e inúmeros fragmentos de vidro e de metal, assim como diversos desses pequenos objectos tubulares com escovas de fios de ferro que os pagãos das montanhas consideravam amuletos, mas que certos arqueólogos supunham ser restos da lendária machina analytica, anterior ao Dilúvio de Chamas.
Frei Francis examinou cuidadosamente todos aqueles objectos antes de os colocar a seu lado sobre a grande pedra lisa; quanto aos documentos, resolveu examiná-los em último lugar. Como sempre, aliás, eram eles que constituíam a mais importante descoberta, tendo em conta o reduzido número de papéis que tinham escapado aos terríveis autos-de-fé ateados durante a Era da Simplificação por uma populaça ignorante e vingativa, que não receava destruir dessa forma os próprios textos sagrados.
A preciosa caixa continha dois desses inestimáveis papéis, assim como três pequenas folhas de notas manuscritas. Todos aqueles documentos veneráveis eram muito frágeis, por a antiguidade os ter ressequido e tornado quebradiços; por isso o jovem monge pegou-lhes com a maior das precauções, tendo todo o cuidado em protegê-los do vento com uma aba da túnica. Aliás eram dificilmente legíveis e redigidos em inglês antediluviano, essa língua antiga que, como o latim, já não era utilizada actualmente, a não ser pelos monges e pelo Ritual litúrgico. Frei Francis começou a decifrá-los lentamente, lendo as palavras de passagem sem lhes penetrar o verdadeiro sentido. Sobre uma das pequenas folhas lia-se: “1 libra de salsicha, 1 lata de choucroute[1] para Ema.” A segunda folha dizia: “Pensar em ver a fórmula 1040 para declaração de impostos.” inalmente a terceira só continha números e uma longa adição, depois um número que manifestamente representava uma percentagem subtraída ao total precedente e seguida da palavra “Bolas!”. Incapaz de compreender fosse o que fosse daqueles documentos; o monge contentou-se em verificar os cálculos e achou-os certos.
Dos outros dois papéis que a caixa continha, um, apertado em forma de pequeno rolo, ameaçava desfazer-se se se tentasse desenrolá-lo. Frei Francis só lhe conseguiu decifrar duas palavras: “Aposta Mútua”[2], e voltou a colocá-lo na caixa para o examinar mais tarde, depois de submetido a um tratamento conservador apropriado.
O segundo documento compunha-se de um grande papel dobrado várias vezes, e tão quebradiço no sítio dos vincos que o religioso teve de contentar-se em afastar cuidadosamente as pontas para lançar uma olhadela.
Era um plano, um emaranhado confuso de linhas brancas, traçadas sobre fundo azul!
Um novo arrepio percorreu a espinha de Frei Francis: era um azul que ali estava – um desses documentos antigos e raríssimos que os arqueólogos tanto apreciavam e que os sábios e intérpretes especializados encontravam por vezes tanta dificuldade em decifrar!
Mas a inacreditável bênção que semelhante descoberta representava não ficava por ali: entre as palavras traçadas num dos ângulos inferiores do documento, eis, de facto, que Frei Francis descobre subitamente o próprio nome do fundador da sua ordem: o Bem-Aventurado Leibowitz em pessoa!
As mãos do jovem monge começaram a tremer tanto, na sua alegria, que correu o risco de rasgar o inestimável papel. As últimas palavras que o peregrino lhe dirigira voltaram-lhe então à memória: “Oxalá encontres a Voz que procuras!” Era de facto uma voz que acabava de descobrir, uma voz com V maiúsculo, semelhante ao que as asas de uma pomba formam quando esta desliza em direcção à Terra vinda do Céu, um V maiúsculo como o de Trere dignum, ou Vidi aquam, um V majestoso e solene, como os que ornamentam as grandes páginas do Missal – em suma, um V como o de Vocação!
Após um último olhar ao papel azul para ter a certeza de que não sonhava, o religioso entoou as suas acções de graças: “Beate Leibowitz, ora pro me. . . Sancte Leibowitz, exaudi me. . .” – e esta última fórmula não deixava de revelar certa audácia, visto que o fundador da Ordem ainda aguardava ser canonizado!
Esquecido das prescrições do Abade, Frei Francis ergueu-se de um salto e investigou o horizonte do lado do sul, na direcção em que seguira o velho caminhante com tanga de juta. Mas o peregrino há muito que desaparecera. . . Era com certeza um anjo do Senhor, pensou Frei Francis, e – quem sabe? – talvez o Bem-Aventurado Leibowitz em pessoa. . . Não lhe indicara ele o local onde descobrira o milagroso tesouro, aconselhando-o a deslocar determinada pedra no momento em que lhe dirigia proféticas despedidas?. . .
O jovem frade continuou mergulhado nas suas exaltantes reflexões até à hora em que o Sol-posto ensanguentou as montanhas, enquanto as sombras do crepúsculo o rodeavam. Só então a noite que se aproximava lhe interrompeu a meditação. Disse para consigo que a inestimável dádiva que acabava de receber certamente não o colocaria ao abrigo dos lobos, pelo que se apressou a terminar a muralha protectora. Depois, como as estrelas apareciam, reanimou o lume e juntou as pequenas bagas cor de violeta dos cactos, que constituíam a sua refeição. Era este o seu único alimento, à excepção da mão-cheia de trigo seco que um padre lhe levava todos os domingos. Por isso acontecia-lhe lançar um olhar ávido aos lagartos que percorriam os rochedos vizinhos – e os seus sonhos eram frequentemente povoados de pesadelos gulosos.
Naquela noite, no entanto, a fome passara para o segundo plano das suas preocupações. O que teria desejado, antes de mais, era dirigir-se a toda a pressa à abadia para participar aos seus irmãos o maravilhoso encontro que tivera e a milagrosa descoberta que fizera. Mas, evidentemente, era problema que nem se podia pôr. Quer tivesse ou não vocação, teria de permanecer ali até ao fim da Quaresma e continuar a agir como se nada de extraordinário lhe tivesse acontecido.
“Há-de construir-se uma catedral neste sítio”, pensou enquanto meditava junto do fogo. E já a imaginação o fazia ver o majestoso edifício que surgiria das ruínas da antiga aldeia, com os seus sinos altaneiros, que poderiam ser vistos de vários quilómetros em redor.
Acabou por adormecer e, quando acordou em sobressalto só uns vagos tições ardiam ainda na fogueira quase extinta. Teve de súbito a sensação de que não estava só naquele deserto. . . Semicerrando os olhos, esforçou-se por atravessar a escuridão que o envolvia e foi então que distinguiu, atrás das últimas brasas da sua modesta fogueira, as pupilas de um lobo que brilhavam nas trevas. Soltando um grito de pavor, o jovem monge correu a encerrar-se no seu túmulo de pedras secas.
O grito que acabava de soltar, pensou ele enquanto se escondia, muito trémulo, no seu refúgio, aquele grito não constituía, na verdade, uma infracção à lei do silêncio… E começou a acariciar a caixa de metal que apertava junto ao coração, enquanto rezava para que a Quaresma terminasse rapidamente. À sua volta, as pedras do esconderijo eram arranhadas por
garras. . .
*
Todas as noites os lobos rondavam o miserável abrigo do frade, enchendo as trevas com os seus uivos de morte, enquanto durante o dia, ele era atacado por autênticos pesadelos provocados pela fome, pelo calor e pelas impiedosas queimaduras do sol. Frei Francis ocupava os dias a apanhar madeira para queimar e também a rezar, empenhando-se em martirizar a própria impaciência de ver finalmente chegar o Sábado Santo que marcaria o fim da Quaresma e do seu jejum.
No entanto, quando esse bendito dia surgiu enfim, o jovem monge estava demasiado enfraquecido pelas privações para arranjar forças para se alegrar. Vencido por uma enorme fadiga, arranjou a sacola, pôs o capuz na cabeça para se preservar do sol e colocou debaixo do braço a preciosa caixa. Com menos uma quinzena de quilos em relação à Quarta-Feira de Cinzas, e num andar vacilante, iniciou o percurso de dez quilómetros que o separavam da abadia… Esgotado, deixou-se cair no momento em que atingia a porta; os frades que o recolheram e prodigalizaram os primeiros cuidados à sua pobre carcaça desidratada contaram que, enquanto delirava, não cessara de falar num anjo com tanga de juta e de invocar o nome do Bem-Aventurado Leibowitz, agradecendo-lhe com fervor o facto de lhe ter revelado as relíquias sagradas, assim como a Aposta Mútua.
A notícia desses vaticínios espalhou-se pela comunidade e chegou rapidamente aos ouvidos do Padre Abade, responsável pela disciplina geral, o qual logo se enfureceu. “Tragam-mo aqui!”, disse num tom capaz de dar asas aos menos solícitos.
Enquanto esperava o jovem monge, o Abade passeou de um lado para o outro, ao mesmo tempo que a cólera o invadia. Não era, evidentemente, contra os milagres, longe disso. Embora fossem dificilmente compatíveis com as necessidades da administração interna, o bom Padre acreditava piamente em milagres, visto que constituiam a própria base da sua fé. Mas achava que esses milagres deviam pelo menos ser devidamente controlados, verificados e autenticados nas formas prescritas, segundo as regras estabelecidas. Depois da recente beatificação do venerado Leibowitz, de facto, aqueles jovens loucos dos monges resolviam
descobrir milagres em toda a parte.
Por compreensível que na verdade fosse essa propensão para o maravilhoso, nem por isso era menos intolerável. Evidentemente, toda a ordem monástica digna desse nome tem o maior interesse em contribuir para a canonização do seu fundador, reunindo com o maior zelo todos os elementos susceptíveis de concorrerem para o facto, mas há limites! Ora, de há uns tempos a essa parte, o Abade constatara que o seu rebanho de monges tinha tendência para escapar à sua autoridade, e o apaixonado zelo que os jovens frades punham em descobrir e recensear os milagres metera de tal forma a ridículo a Ordem Albertiana de Leibowitz que até no Novo Vaticano já troçavam do facto…
Por isso o Padre Abade estava bem decidido a ser severo: dali para o futuro, qualquer propagador de notícias milagrosas sofreria um castigo. No caso de se tratar de um falso milagre, o responsável pagaria dessa forma o preço da indisciplina e da credulidade; no caso de um milagre autêntico, revelado por verificações ulteriores, pelo contrário, o castigo sofrido constituiria a penitência obrigatória que devem sofrer todos aqueles que beneficiam da dádiva de uma graça.
No momento em que o jovem noviço bateu timidamente à porta, o bom Padre, que chegara ao final das suas reflexões, encontrava-se portanto na disposição que convinha para a circunstância, um estado de espírito realmente feroz, dissimulado sob a mais hipócrita das aparências.
– Entre, meu filho – disse numa voz suave.
– Mandou-me chamar, meu Reverendo Padre? – inquiriu o noviço, e teve um sorriso encantado ao descobrir a sua caixa de metal em cima da mesa do Abade.
– Mandei – respondeu o Padre, que pareceu hesitar um instante. – Mas – prosseguiu – é talvez preferível que, daqui em diante, seja eu que o procure, visto que se tem transformado numa personagem tão célebre?
– Oh!, não, meu Padre! – exclamou Frei Francis, escarlate e meio sufocado.
– Tem dezassete anos, e é visível que não passa de um imbecil.
– Sem dúvida alguma, meu Reverendo.
– Nessas condições, quer dizer-me por que insensato motivo se acha digno de entrar para as Ordens?
– Não tenho absolutamente nenhum motivo, ó meu venerável mestre. Não passo de um miserável pecador cujo orgulho não tem perdão.
– E ainda aumentas os teus pecados – rugiu o Abade -, supondo o teu orgulho tão grande que é imperdoável!
– É verdade, meu Padre. Não passo de um verme.
O Abade teve um sorriso glacial e recuperou a sua calma vigilante.
– Está então disposto a desdizer-se – continuou – e a renegar todas as divagações que proferiu sob o efeito da febre a propósito de um anjo que lhe teria aparecido e lhe teria confiado este. . . (designou com um gesto desdenhoso a caixa de metal). . . esta miserável pacotilha?
Frei Francis teve um sobressalto e fechou receosamente os olhos.
– Eu. . . receio muito não o poder fazer, ó meu mestre disse num sopro.
– O quê?!
– Não posso negar o que os meus olhos viram, meu Reverendo Padre.
– Sabe o castigo que o espera?
– Sei. meu Padre.
– Muito bem. Prepare-se portanto para o receber.
Com um suspiro resignado, o noviço arregaçou a longa túnica até à cintura e inclinou-se sobre a mesa. Tirando então da gaveta uma sólida vara de nogueira, o bom Padre vergastou-lhe dez vezes seguidas o traseiro. (Após cada golpe, o noviço pronunciava com submissão o Deo gratias! merecido pela lição de humildade que dessa forma lhe era concedida).
– E agora – perguntou o Abade, recompondo as mangas -, está disposto a desdizer-se?
– Meu Padre, não posso fazê-lo.
Voltando-lhe bruscamente as costas, o padre ficou por momentos silencioso.
– Muito bem – disse por fim numa voz mordaz. – Seja como o deseja. Mas não conte tomar ordens solenes este ano,
ao mesmo tempo que os outros.
Banhado em lágrimas, Frei Francis regressou à sua cela. Os outros noviços receberiam o trajo monacal, ao passo que ele, pelo contrário, teria de esperar ainda um ano e passar outra Quaresma no deserto, no meio dos lobos, em busca de uma vocação que no íntimo sabia que lhe fora amplamente concedida. . .
No decorrer das semanas que se seguiram, o desgraçado teve pelo menos a consolação de constatar que o Abade não tivera inteiramente razão ao classificar o conteúdo da caixa de metal de “desprezível pacotilha”. Aquelas relíquias arqueológicas era evidente que tinham despertado vivo interesse entre os Frades que dedicavam muito tempo à sua limpeza e arrumação; esforçavam-se, igualmente, por restaurar os documentos escritos e por lhes decifrar o sentido. Corria mesmo o boato, na comunidade, de que Frei Francis descobrira realmente as verdadeiras relíquias do Bem-Aventurado Leibowitz – particularmente sob a forma do documento, ou azul, que tinha o seu nome e sobre o qual se viam ainda algumas manchas acastanhadas. (Sangue de Leibowitz, talvez? O Padre Abade era de opinião que se tratava de sumo de maçã). Em todo o caso, o documento tinha a data do Ano da Graça de 1956, o que parecia provar que era contemporâneo do venerando fundador da Ordem.
Aliás sabia-se muito pouco a respeito do Bem-Aventurado Leibowitz; a sua história perdia-se na bruma do passado, que ainda mais obscurecia a lenda. Afirmava-se simplesmente que Deus, para pôr à prova o género humano, ordenara aos sábios de outrora entre os quais figurava o Bem-Aventurado Leibowitz – que aperfeiçoassem certas armas diabólicas, graças às quais o Homem, no espaço de algumas semanas, conseguira destruir o essencial da civilização, suprimindo ao mesmo tempo grande número dos seus semelhantes. Dera-se então o Dilúvio de Chamas, seguido da peste e de flagelos diversos, e finalmente da loucura colectiva que viria a conduzir à Idade da Simplificação. No decurso desta última época, os derradeiros representantes da humanidade, invadidos por um furor vingativo, cortaram às postas todos os politiqueiros, técnicos e homens de ciência; além disso, queimaram todas as obras e documentos que teriam permitido enveredar novamente pelas vias da destruição científica. Naquele tempo perseguiram com um ódio sem precedentes todos os escritos, todos os homens cultos – a tal ponto que a palavra “papalvo” acabara por ser sinónimo de cidadão honesto, íntegro e virtuoso.
Para escapar à legítima cólera dos papalvos sobreviventes, muitos sábios e eruditos tentaram refugiar-se no seio da Nossa Madre Igreja. De facto Ela acolheu-os, cobriu-os com trajos monacais e esforçou-se por os subtrair às perseguições da populaça. Aliás este processo nem sempre resultou, pois alguns mosteiros foram invadidos, os arquivos e os textos sagrados lançados à fogueira, enquanto os que ali se tinham refugiado eram enforcados. No que se refere a Leibowitz, encontrara asilo entre os Cistercienses. Tendo tomado ordens, tornou-se padre e, ao fim de doze anos, foi-lhe concedida autorização para fundar uma nova ordem monástica, a dos “Albertianos”, assim chamada em memória de Alberto o Grande, professor do famoso São Tomás de Aquino e padroeiro de todos os cientistas. A congregação recentemente criada devia dedicar-se à protecção da cultura, tanto sagrada como profana, e os seus membros teriam como obrigação principal transmitir às gerações seguintes os raros livros e documentos que tinham escapado à destruição e que os obrigavam a manter escondidos. Finalmente certos papalvos reconheceram em Leibowitz um antigo sábio e condenaram-no à forca. No entanto, a Ordem que fundara nem por isso deixou de funcionar e os seus membros, logo que foi novamente dada autorização de possuir documentos escritos, puderam mesmo dedicar-se a transcrever de memória numerosas obras do passado. Mas sendo a memória desses analistas forçosamente limitada (aliás, eram poucos os que possuíam cultura suficiente para compreender as ciências físicas), os frades copistas consagravam a maior parte dos seus esforços aos textos sagrados assim como às obras referentes às belas-letras ou às questões sociais. Por esse motivo, de todo o imenso repertório de conhecimentos humanos apenas sobreviveu uma insignificante colecção de pequenos tratados manuscritos.
Após seis séculos de obscurantismo, os monges continuavam a estudar e a recopiar a sua pobre colheita. Aguardavam… Evidentemente, a maior parte dos textos que tinham salvado não lhes serviam para nada – mantendo-se, alguns deles, rigorosamente incompreensíveis para os monges. Mas, para aqueles bons religiosos, bastava saber que eram senhores do Conhecimento: saberiam salvá-lo e transmiti-lo, como exigia o seu dever – e isto, mesmo que o obscurantismo universal viesse a durar dez mil anos…
Frei Francis Gérard de L’Utah voltou para o deserto no ano seguinte e ali fez, solitariamente, o seu jejum. Mais uma vez regressou ao mosteiro fraco e emagrecido, e novamente foi convocado pelo Padre Abade, que lhe perguntou se estava finalmente decidido a renegar as suas extravagantes declarações.
“Não posso, meu Padre – repetiu ele -, não posso negar o que vi com os meus próprios olhos”.
E o Abade, uma vez mais, o castigou; uma vez mais, também, adiou para uma data ulterior a sua entrada nas ordens…
No entanto, os documentos contidos na caixa de metal tinham sido confiados a um seminário, para estudo, depois de tirada uma cópia. Mas Frei Francis continuava a ser um simples noviço, um noviço que ainda sonhava com o magnífico santuário que um dia seria edificado no local da sua descoberta. . .
“Diabólica teimosia!, explodia o Abade. Se o peregrino de que aquele idiota se obstina a falar se dirigia, como diz, para a nossa abadia, como seria possível que nunca o tivéssemos visto?… Um peregrino com tanga de juta, hã?!”
No entanto, essa história da tanga de juta não deixava de inquietar o bom do Padre. De facto, segundo a tradição, o Bem -Aventurado Leibowitz, na altura do enforcamento, levara um saco de juta na cabeça, à guisa de capuz.
*
Frei Francis manteve-se noviço durante sete anos e viveu no deserto sete Quaresmas sucessivas. Com esse regímen tornou-se mestre na arte de imitar o uivo dos lobos e aconteceu várias vezes, por questão de brincadeira, arrastar a matilha de feras até aos muros da abadia, por noites sem Lua… Durante o dia contentava-se em trabalhar nas cozinhas e esfregar as lajes do mosteiro, ao mesmo tempo que continuava a estudar autores antigos.
Um belo dia chegou à abadia um enviado do seminário montado num burro, portador de uma notícia muito agradável.
“Está provado, anunciou ele, que os documentos encontrados perto daqui pertencem realmente à data indicada e, especialmente, que o azul se relaciona de certa maneira com a carreira do vosso bem-aventurado fundador. Enviaram-no ao Novo Vaticano, que o estudará mais profundamente.
– Nesse caso – perguntou o Abade -, poder-se-ia tratar, no fim de contas, de uma autêntica relíquia de Leibowitz?
Mas o mensageiro, pouco disposto a comprometer-se, limitou-se a arquear as sobrancelhas.
– Diz-se que Leibowitz era viúvo, quando da sua ordenação – murmurou.
– Evidentemente, se fosse possível descobrir o nome da sua defunta esposa. . .
Foi então a vez do Abade, ao lembrar-se da pequena nota onde figurava um nome de mulher, de erguer também as sobrancelhas. . .
Pouco depois mandou chamar Frei Francis.
– Meu filho – declarou-lhe num tom positivamente radiante -, creio chegada para si a altura de poder finalmente tomar ordens solenes. Que me seja permitido felicitá-lo pela paciência e firmeza de opiniões de que não tem cessado de nos dar provas. Evidentemente, nunca mais falaremos do seu… hum… encontro com um hum! – caminhante do deserto. meu filho, é um bom papalvo, e pode ajoelhar-se se deseja que o abençoe.
Frei Francis soltou um profundo suspiro e perdeu os sentidos, fulminado pela emoção. O Padre abençoou-o, depois reanimou-o e permitiu que pronunciasse os seus votos perpétuos: pobreza, castidade, obediência – e observância da regra.
Pouco tempo depois, o novo professor da Ordem Albertiana dos Frades de Leibowitz foi afectado à sala dos copistas, sob a vigilância de um velho monge chamado Horner, e começou a ornamentar conscienciosamente as páginas de um tratado de álgebra com belas iluminuras representando ramos de oliveira e querubins bochechudos.
– Se assim o deseja – participou-lhe o velho Horner na sua voz cansada -, pode dedicar cinco horas por semana a qualquer ocupação à vossa escolha, sob reserva de aprovação, evidentemente. Caso contrário, utilizará essas horas de labor acultativo
copiando a Summa Theological, assim como os fragmentos da Enciclopédia Britânnica que nos vieram parar às mãos.
Depois de ter reflectido no assunto, o jovem monge perguntou :
– Ser-me-ia permitido consagrar essas horas a fazer uma bela cópia do documento de Leibowitz?
– Não sei, meu filho – replicou Frei Horner franzindo o sobrolho. – Trata-se de um assunto a respeito do qual o nosso excelente Padre se mostra um pouco irritado, como sabe… Enfim, concluiu perante as súplicas do jovem copista, acedo apesar de tudo a dar-lhe o meu consentimento, pois é um trabalho que não lhe tomará muito tempo.
Frei Francis arranjou portanto o mais belo pergaminho que pôde encontrar e passou longas semanas a raspar e polir a pele com uma pedra lisa, até que conseguiu dar-lhe uma resplandecente brancura de neve. Depois consagrou outras semanas a estudar as cópias do precioso documento, até que decorou todo o traçado, todo o misterioso emaranhado de linhas geométricas e de símbolos incompreensíveis. Por fim, sentiu-se capaz de reproduzir de olhos fechados a espantosa complexidade do documento. Então, ainda passou várias semanas a revistar a biblioteca do mosteiro em busca de documentos que lhe permitissem fazer uma ideia, mesmo vaga, do significado do plano.
Frei Jeris, um jovem monge que também trabalhava na sala dos copistas e troçara muitas vezes dele e das suas milagrosas aparições no deserto, surpreendeu-o entregue a essa tarefa.
– Posso perguntar-lhe – disse inclinando-se-lhe por cima do ombro – o significado da menção “Mecanismo de Controlo Transitorial para Elemento 6-B”?
– É evidentemente o nome do objecto que o esquema representa – replicou Frei Francis num tom um pouco seco -, pois Frei Jeris apenas lera em voz alta o título do documento.
– Sem dúvida. . . Mas então o que representa esse esquema?
– Mas… o mecanismo de controlo transitorial de um elemento 6-B, evidentemente!
Frei Jeris soltou uma gargalhada, e o jovem copista sentiu-se corar.
– Suponho – continuou que o esquema representa na realidade qualquer conceito abstracto. Na minha opinião, este Mecanismo de Controlo Transitorial devia ser uma abstracção transcendental.
– E em que categoria de conhecimento classificaria a vossa abstracção? – perguntou Jeris, sempre sarcástico.
– Bom, vejamos… – Frei Francis hesitou um momento, depois continuou: – tendo em conta os trabalhos que o Bem-Aventurado Leibowitz realizava antes de se dedicar à religião, parece-me que o conceito de que aqui se trata se referia a essa arte hoje esquecida e a que outrora se chamava electrónica.
– De facto, essa palavra figura nos textos escritos que nos foram transmitidos. Mas o que é que significa exactamente?
– Os textos também no-lo dizem: o objectivo da electrónica era a utilização do Electrão, que um dos manuscritos em nosso poder, infelizmente em fragmentos, nos define como uma porsão do Nada Negativamente Carregada[3].
A sua subtileza impressiona-me – extasiou-se Jeris.Posso ainda perguntar-lhe o que é a negação do nada?
Frei Francis, cada vez mais corado, embasbacou.
– A torsão negativa do nada – prosseguiu o impiedoso Jeris – deve apesar de tudo ir dar a qualquer coisa de positivo. Portanto, Frei Francis, suponho que acabará por nos criar essa qualquer coisa, se nisso empenhar todos os seus esforços. Graças a si, não há dúvida de que acabaremos por possuir esse famoso Electrão. Mas que faremos então dele? Onde o meteremos?
Em cima do altar-mor, talvez?
– Não faço a menor ideia – replicou Francis, que começava a enervar-se -; e também ignoro o que era um Electrão, assim como a utilidade que poderia ter. Tenho apenas a profunda convicção de que deve ter existido, numa determinada época, e é tudo.
Soltando um riso trocista, Jeris o iconoclasta deixou-o e regressou ao seu trabalho. Esse incidente entristecera Frei Francis, sem no entanto o afastar do projecto que acalentava. Assim que assimilou as informações que a biblioteca do Mosteiro lhe podia fornecer sobre a arte perdida em que Leibowitz se celebrizara, esboçou alguns anteprojectos do plano que queria reproduzir sobre o pergaminho. O próprio esquema, visto que não conseguia penetrar-lhe o significado, seria reproduzido com todo o cuidado, tal como se apresentava no documento original. Para isso empregaria tinta preta; em contrapartida, utilizaria tintas de cor e caracteres de fantasia altamente decorativos para reproduzir os números e as legendas do plano. Decidiu igualmente quebrar a austera e geométrica monotonia da sua reprodução ornamentando-a com pombas e querubins, parras verdejantes, frutos dourados e aves multicolores – até mesmo de uma artificiosa serpente. Ao alto da obra desenharia uma representação simbólica da Santíssima Trindade, e em baixo, para fazer simetria, um desenho da cota de malha que servia de emblema à Ordem. O Mecanismo de Controlo Transitorial do Bem-Aventurado Leibowitz estaria desta forma dignificado como convinha e a sua mensagem dirigir-se-ia tanto aos olhos como ao espírito.
Assim que terminou o esboço preliminar, submeteu-o timidamente à opinião de Frei Horner.
– Apercebo-me – disse o velho monge com certo ar de remorso – de que este trabalho o ocupará muito mais tempo[5]; do que pensei… Mas pouco importa: continue. O desenho é belo, realmente muito belo.
– Obrigado, meu irmão.
Frei Horner teve um piscar de olhos para o jovem religioso:
– Disseram-me – murmurou em tom de confidência que decidiram activar as formalidades necessárias para a canonização do Bem-Aventurado Leibowitz. Portanto, é provável que actualmente o nosso bondoso Padre se sinta muito menos inquieto com aquilo que sabemos.
Evidentemente, todos estavam ao corrente dessa importante notícia. A beatificação de Leibowitz há muito que era um facto consumado, mas as últimas formalidades que fariam dele um santo podiam exigir ainda um bom número de anos. Além disso, havia sempre a recear que o Advogado do Diabo descobrisse qualquer motivo que tornasse impossível a Canonização projectada. Ao fim de vários meses, Frei Francis começou finalmente a trabalhar sobre o seu belo pergaminho, traçando amorosamente os finos arabescos, as volutas complicadas e as elegantes iluminuras, realçadas por folhas douradas. Era um trabalho de grande fôlego que ele empreendera, um trabalho que exigia vários anos para ser levado a bom fim. Os olhos do copista, como é natural, foram submetidos a uma rude prova e por vezes viu-se obrigado a interromper o seu labor durante longas semanas, com receio de que um descuido motivado pela fadiga fosse estragar todo conjunto. Todavia, pouco a pouco, a obra criava forma, e apresentava uma beleza tão grandiosa que todos os monges da abadia se empenhavam em a contemplar com admiração. Apenas o céptico Frei Jeris continuava a criticar.
“Pergunto a mim próprio, dizia ele, porque não emprega o tempo num trabalho útil.”
Quanto a ele, era nesse género de trabalhos que ocupava o seu tempo, visto que fabricava abatjours de pergaminho ornamentado para as candeias de azeite da capela.
Entretanto, o velho Frei Horner adoeceu e começou a enfraquecer rapidamente. Nos primeiros dias do Advento, os seus irmãos cantaram em sua intenção a Missa dos Defuntos e confiaram-lhe os despojos à terra original. O Abade escolheu Frei Jeris para suceder ao defunto na vigilância dos copistas e o invejoso imediatamente aproveitou o facto para ordenar a Frei Francis que abandonasse a sua obra-prima. Já era tempo, disse-lhe, de acabar com aquelas infantilidades; agora era altura[6] de fabricar abatjours. Frei Francis colocou em lugar seguro o fruto das suas vigílias e obedeceu sem recalcitrar. Enquanto pintava os seus abatjours, consolava-se pensando que todos somos mortais… Um dia, sem dúvida, a alma de Frei Jeris iria juntar-se no Paraíso à alma de Frei Horner, pois no fim de contas a sala dos copistas nunca fora mais do que a antecâmara da Vida Eterna. Então, se essa fosse a vontade de Deus, ser-lhe-ia permitido continuar a obra-prima interrompida. . .
No entanto, a divina Providência encarregou-se do caso muito antes da morte de Frei Jeris. Logo no Verão seguinte apresentou-se à porta do mosteiro um bispo que cavalgava montado numa mula, acompanhado por um numeroso séquito de dignitários eclesiásticos. O Novo Vaticano, anunciou, encarregara-o de ser o advogado da canonização de Leibowitz e vinha recolher junto do Padre Abade todas as informações susceptíveis de o auxiliar na sua missão; em particular, desejava esclarecimentos a respeito de uma aparição terrestre do Bem-Aventurado, com que fora agraciado um certo Frei Francis Gerard de L’Utah.
O enviado do Novo Vaticano foi calorosamente acolhido, como é da praxe. Instalaram-no nos aposentos reservados aos prelados de passagem e puseram-lhe às ordens seis jovens noviços atentos a satisfazer os seus mínimos desejos. Abriram em sua honra as melhores garrafas, assaram-se as mais delicadas aves e chegaram ao ponto de se preocupar com as suas distrações, arranjando-lhe, todas as noites, vários violinistas e uma companhia inteira de palhaços.
Havia três dias que o bispo ali estava quando o bom Padre Abade fez comparecer diante dele Frei Francis.
– Monsenhor Di Simone deseja vê-lo – disse-lhe. Se tiver a infelicidade de dar livre curso à sua imaginação, atiraremos
a sua carcaça aos lobos e os seus ossos serão sepultados em terra que não seja sagrada… Agora, meu filho, vá em paz:
Monsenhor está à sua espera.
Frei Francis não tinha a menor necessidade da advertência do bom Padre para refrear a língua. Desde o longínquo dia em que a febre o tornara loquaz, depois da primeira Quaresma passada no deserto, evitara falar fosse a quem fosse no encontro
com o peregrino. Mas perturbava-o ver que as maiores autoridades eclesiásticas se interessavam bruscamente por esse mesmo peregrino, por isso o coração batia-lhe com força quando se apresentou diante do bispo.
Aliás o seu pavor revelou-se sem o menor fundamento. O prelado era um velho muito paternal, que parecia interessar-se acima de tudo pela carreira do fradinho.
– E agora – disse-lhe ele, após alguns momentos de amena conversa -, fale-me do encontro que teve com o vosso Bem-Aventurado fundador.
– Oh, Monsenhor! Eu nunca disse que se tratava do Bem-Aventurado Leibo. . .
– Claro, meu filho, claro… Aliás, trouxe-lhe um auto dessa aparição. Foi elaborado segundo informações recolhidas nas melhores fontes. Peço-lhe apenas para o ler. Após o que me confirmará a exactidão do mesmo, ou, se for necessário, corrigi-lo-á. Bem entendido, este documento baseia-se apenas no que se diz. Na realidade, só o Frei Francis nos pode dizer o que na verdade se passou. Peço-lhe portanto para o ler muito atentamente.
Frei Francis pegou no espesso maço de papéis que o prelado lhe estendia e começou a ler a descrição oficial com uma apreensão cada vez maior, que não tardou em degenerar num verdadeiro pavor.
– Muda de expressão, meu filho – notou o bispo. – Terá constatado algum erro?
– Mas. . . mas. . . não foi assim. . . não foi nada assim que as coisas se passaram! – exclamou o desgraçado monge, aterrado. – Só o vi uma vez e ele limitou-se a perguntar-me o caminho para a abadia. Depois bateu com o bordão sobre a pedra debaixo da qual descobri as relíquias. . . – Se estou a compreender bem, não houve então coro celestial?
– Oh, não!
– Nem auréola em redor da sua cabeça, nem tapete de rosas desenrolando-se sob os seus passos à medida que ele
avançava?
– Perante Deus que me observa, Monsenhor, afirmo que nada disso aconteceu!
– Bom, bom – disse o bispo suspirando. – Bem sei que as histórias que os viajantes narram contêm sempre uma grande dose de exagero. . .
Como parecia desiludido, Frei Francis apressou-se a pedir desculpas, mas o advogado do futuro santo acalmou-o com um gesto:
– Não tem importância, meu filho – assegurou-lhe. – Não nos faltam milagres, devidamente controlados, graças a Deus!.. Em todo o caso os papéis que descobristes tiveram pelo menos uma utilidade, visto que nos permitiram descobrir o nome da esposa do vosso venerável fundador, a qual morreu, como sabe, antes de ele se dedicar à religião.
– Realmente, Monsenhor?
– Sim. Chamava-se Emília.
Manifestamente muito desapontado com a descrição que o jovem monge lhe fizera do encontro com o peregrino, Monsenhor Di Simone nem por isso deixou de passar cinco dias inteiros no local onde Francis descobrira a caixa de metal. Acompanhava-o uma corte de noviços, agitando pás e enxadas… Depois de terem cavado muito fundo, o bispo regressou à abadia, na noite do quinto dia, com um rico espólio de diversas relíquias, entre as quais uma velha caixa de alumínio que continha ainda alguns vestígios de uma massa ressequida que talvez tivesse sido outrora, “choucroute”.
Antes de deixar a abadia, visitou a sala dos copistas e quis ver a reprodução que Frei Francis tinha feito do célebre papel azul de Leibowitz. O monge, ao mesmo tempo que protestava dizendo tratar-se de coisa sem importância, exibia-o com mão
trémula.
“Abre!, exclamou o bispo (pelo menos foi o que julgaram ouvir). É preciso terminar este trabalho, meu filho, é preciso!”
Sorridente, o monge procurou o olhar de Frei Jeris. Mas o outro apressou-se a voltar a cabeça… No dia seguinte, Frei Francis metia novamente mãos à obra, com grande reforço de penas de pato, folhas douradas e variados pincéis.
*
… Continuava ocupado naquela tarefa quando se apresentou no convento uma nova delegação vinda do Vaticano. Desta vez tratava-se de um grupo numeroso, incluindo mesmo guardas armados para impedir os ataques dos salteadores de estrada. À cabeça, orgulhosamente montado numa mula preta, pavoneava-se um prelado com a cabeça ornamentada com pequeninos chifres e a boca com longos colmilhos acerados (foi, pelo menos, o que mais tarde afirmaram vários noviços). Apresentou-se como o Advocatus Diaboli, encarregado de se opor por todos os meios à canonização de Leibowitz, e explicou que vinha à abadia para investigar sobre certos boatos absurdos, postos a circular por fradinhos histéricos, e cujo rumor chegara aos ouvidos das autoridades supremas do Novo Vaticano. Bastava olhar para aquele emissário para imediatamente ver que não era pessoa que se deixasse enganar.
O Abade acolheu-o delicadamente e ofereceu-lhe um pequeno leito todo de ferro, numa cela exposta ao sul, pedindo desculpa por não o poder alojar nos aposentos de honra, provisoriamente inabitáveis por uma questão de higiene. Este novo hóspede contentou-se, para o seu serviço, com as pessoas do seu séquito e, no refeitório, partilhou das refeições habituais dos monges: ervas cozidas e caldo de raízes.
– Disseram-me que está sujeito a crises nervosas, com perda de sensibilidade – disse ele a Frei Francis quando o monge compareceu na sua frente. – Quantos loucos ou epilépticos houve nos seus ascendentes ou parentes?
– Nenhum, Excelência.
– Não me chame Excelência! – rugiu o dignitário.E fique sabendo que não terei a menor dificuldade em fazer-lhe
dizer toda a verdade.
Falava do assunto como de uma intervenção cirúrgica das mais banais e era visível que achava que deveria ter sido feita
há muitos anos.
– Não ignora – continuou – que existem processos para envelhecer artificialmente os documentos, não é verdade?
Frei Francis ignorava-o.
– Sabe igualmente que a mulher de Leibowitz se chamava Emília e que Ema não é de forma nenhuma o diminutivo desse
nome?
Francis também não tinha grandes conhecimentos a respeito do assunto. Lembrava-se simplesmente que os pais, na sua infância, empregavam por vezes certos diminutivos um pouco ao acaso… “E depois, pensou, se o Bem-Aventurado Leibowitzabençoado
seja ele! – decidiu chamar Ema à mulher, estou certo de que sabia o que fazia…”
O enviado do Novo Vaticano começou então a dar-lhe uma lição de semântica com tamanha impetuosidade que o pobrezinho do frade julgou que ia enlouquecer. No final dessa tumultuosa sessão já nem sequer sabia se alguma vez encontrara ou não um peregrino.
Antes da partida, o Advogado do Diabo quis também ver a cópia iluminada que Francis fizera e o pobre apresentou-lha com a morte na alma. O prelado, a princípio, pareceu atrapalhado; depois engoliu em seco e fez um esforço para dizer qualquer coisa.
– É evidente que não lhe falta imaginação. Mas, quanto a isso, creio que já todos o sabiam aqui.
Os chifres do emissário tinham encurtado vários centímetros e ele partiu nessa mesma noite para o Novo Vaticano.
*
. . . E os anos passaram, acrescentando algumas rugas aos rostos juvenis, alguns cabelos brancos às têmporas dos monges. No mosteiro a vida corria como de costume, e os monges continuavam absorvidos nas suas cópias, como antigamente. Frei Jeris, um belo dia, resolveu construir uma prensa para imprimir. Quando o abade lhe perguntou o motivo só soube responder:
– Para aumentar a produção.
– Ah, sim? – disse o Padre. – E para que pensa que poderiam servir as suas papeladas, num mundo em que se é tão feliz por não saber ler? Talvez as possa vender aos camponeses para acenderem o lume, não acha?
Mortificado, Frei Jeris encolheu tristemente os ombros e os copistas do mosteiro continuaram a trabalhar com penas de pato. . .
Numa manhã de Primavera, um pouco antes da Quaresma, apresentou-se no mosteiro um novo mensageiro trazendo uma boa, excelente notícia: os documentos reunidos para a canonização de Leibowitz já estavam completos, o Sacro Colégio não tardaria a reunir-se e o fundador da Ordem dos Albertianos em breve figuraria entre os santos do calendário.
Enquanto toda a confraria se regozijava, o Padre Abade muito velho, actualmente, e bastante gagá – mandou chamar Frei Francis.
– Sua Santidade exige a sua presença por ocasião das festas que se vão realizar para a Canonização de Isaac Edward Leibowitz – cuspinhou ele. – Prepare-se para partir.
E acrescentou num tom resmungão:
– Se deseja desmaiar, vá fazê-lo para longe daqui!
*
A viagem do jovem monge até ao Novo Vaticano exigiria pelo menos três meses – talvez mesmo mais: tudo dependia da distância que pudesse percorrer antes que os inevitáveis salteadores de estrada o privassem do seu burro.
Partiu só e sem armas, munido apenas de uma gamela de mendigo. Apertava contra o coração a cópia iluminada do plano de Leibowitz e pedia a Deus, enquanto avançava, que não lho roubassem. . . É verdade que os ladrões eram pessoas ignorantes e não saberiam que destino lhe dar. . . Por precaução, apesar de tudo, o monge ostentava um pedaço de tecido negro sobre o olho direito. Os camponeses eram supersticiosos, de facto, e a simples ameaça de “mau olhado” bastava por vezes para os pôr
em fuga.
Após dois meses e alguns dias de viagem, Frei Francis encontrou o seu gatuno, num atalho da montanha ladeado por espesso mato, longe de qualquer habitação. Era um homem baixo, mas visivelmente sólido como um boi. As pernas afastadas, os braços vigorosos cruzados sobre o peito, estava parado a meio do atalho, à espera do monge, que ia lentamente ao seu encontro, no passo vagaroso da sua montada… Parecia estar só e como arma apenas tinha uma faca que nem sequer retirou do cinto. O encontro causou grande desapontamento ao monge: de facto, no íntimo do seu coração, não cessara de acreditar que, ao longo do caminho, encontraria o peregrino de outrora.
– Alto! – ordenou o ladrão.
O burro parou por sua livre vontade. Frei Francis ergueu o capuz para mostrar a pala preta e dela aproximou lentamente a mão, como se se preparasse para revelar qualquer espectáculo horrível, dissimulado sob o tecido. Mas o homem, atirando a cabeça para trás, soltou um riso sinistro e verdadeiramente satânico. O monge apressou-se a murmurar um exorcismo, com o qual o ladrão não pareceu impressionado.
– Há muitos anos que isso não pega – disse ele.Vamos, salta para o chão, e depressa!
Frei Francis encolheu os ombros, sorriu e desceu da montada sem protestar.
– Desejo-lhe muito boa tarde, senhor! – disse num tom amável. – Pode ficar com o burro, a caminhada far-me-á bem.
E já se afastava, quando o ladrão lhe barrou o caminho.
– Espera! Despe-te todo, e mostra-me o que há dentro desse embrulho!
O monge mostrou-lhe a gamela, com um pequeno gesto de escusa, mas o outro começou a rir cada vez mais.
– O truque da pobreza. . . também já mo empregaram!afirmou ele à sua vítima em tom sarcástico -, mas o último pedinte que mandei parar tinha meio heklo de ouro na bota. . . Vamos, despe-te depressa!
Depois de o monge ter cumprido a ordem, o homem revistou-lhe as roupas, nada encontrou e voltou a entregar-lhas.
– Agora – continuou -, vejamos esse embrulho.
– É apenas um documento, senhor – protestou o frade -, um documento sem valor a não ser para o proprietário.
– Abre o embrulho, já te disse!
Frei Francis obedeceu sem uma palavra e as iluminuras do pergaminho em breve brilharam sob os raios solares. O gatuno deu um assobio admirativo.
– Bonito! A minha mulher é que vai ficar contente por poder pregar isto na parede da cabana!
A estas palavras, o pobre monge sentiu o coração parar e começou a murmurar uma silenciosa oração: “Se tu mo enviaste para me pôr à prova, ó Senhor”, suplicou com fervor, “dá-me pelo menos a coragem de morrer como um homem, pois se está escrito que ele mo vai roubar, só o poderá tirar ao cadáver do seu indigno servo!”
– Embrulha-me o objecto! – ordenou de súbito o ladrão, cuja decisão estava tomada.
– Por quem é, senhor – gemeu Frei Francis -; não quer decerto privar um pobre homem de um trabalho em que empenhou a vida inteira. . . Passei quinze anos a iluminar este manuscrito e. . .
– O quê? – interrompeu o gatuno. – Foste tu próprio que o fizeste?
E começou a rir soltando berros.
– Não compreendo, senhor – retorquiu o monge, corando ligeiramente -, o que possa haver de divertido nisso. . .
– Quinze anos! – disse-lhe o homem entre dois acessos de hilaridade, quinze anos! E por que motivo, és capaz de me
dizer? Por um pedaço de papel! Quinze anos… Ah!
Pegando com ambas as mãos na folha iluminada preparou-se para a rasgar. Então Frei Francis deixou-se cair de joelhos a meio do atalho.
– Maria Santíssima! – exclamou. – Suplico-o, senhor, por amor de Deus!
O ladrão pareceu um pouco lisonjeado; atirando o pergaminho ao chão, perguntou em tom sarcástico:
Estarias pronto a bater-te para defender o teu pedaço de papel.
– Se o deseja, senhor! Farei tudo o que quiser!
Ambos se puseram em guarda. O monge benzeu-se precipitadamente invocando o Céu, recordando-se que a luta fora outrora um desporto autorizado pela divindade – depois lançou-se ao combate. . . três segundos depois jazia sobre as pedras pontiagudas que lhe martirizavam a espinha, meio sufocado por uma pequena montanha de músculos rijos.
– E pronto! – disse modestamente o ladrão, que se ergueu e pegou no pergaminho.
Mas o monge arrastava-se de joelhos, com as mãos postas, ensurdecendo-o com súplicas desesperadas.
– Credo! – escarneceu o ladrão. – Eras capaz de me beijar as botas, se eu to pedisse, para que te devolvesse a estampa!
Como única resposta, Frei Francis agarrou-o de um salto e começou a beijar com fervor as botas do vencedor.
Era demais, mesmo para um refinado patife. Com uma praga, o gatuno atirou o manuscrito ao chão, saltou para cima do burro e desapareceu… Francis imediatamente caiu sobre o manuscrito e agarrou-o. Depois começou a saltitar atrás do homem pedindo em sua intenção todas as bênçãos do Céu e agradecendo ao Senhor ter criado malandrins tão desinteressados. . .
No entanto, assim que o ladrão e o burro desapareceram atrás das árvores, o monge perguntou a si próprio, com certa tristeza, por que motivo, de facto, consagrara quinze anos da sua vida àquele bocado de pergaminho. . . As palavras do gatuno ainda lhe soavam aos ouvidos: “E por que motivo, és capaz de me dizer?… Sim, porquê, de facto, por que razão?”
Frei Francis retomou o caminho, a pé, muito meditativo, a cabeça inclinada debaixo do capuz. . . Em certo momento veio-lhe mesmo a ideia de atirar o documento para o meio do mato e ali o deixar, à chuva. . . Mas o Padre Abade aprovara a sua decisão de o entregar às autoridades do Novo Vaticano, à maneira de presente. O monge reflectiu que não podia lá chegar de mãos vazias, e continuou, tranquilamente, o seu caminho.
*
Chegara o momento. Perdido na imensa e majestosa basílica, Frei Francis abismava-se com a prestigiosa magia das cores e dos sons. Depois de invocarem o Espírito infalível, símbolo de toda a perfeição, ergueu-se um bispo – era Monsenhor Di Simone, reconheceu o monge, o advogado do santo – e adjurou S. Pedro a pronunciar-se, por intermédio de S.S. Leão XXII, ordenando ao mesmo tempo a toda a assistência que prestasse atenção às palavras solenes que iam ser pronunciadas.
Nessa altura, o Papa ergueu-se calmamente e proclamou que Isaac Edward Leibowitz seria de futuro um santo. Estava consumado. Dali em diante o obscuro técnico de outrora fazia parte da falange celestial. Frei Francis imediatamente dirigiu uma prece ao seu novo amo, enquanto o coro entoava o Te Deum.
Caminhando num passo vivo, o Sumo Pontífice, um momento depois, surgiu tão bruscamente na sala de audiência onde o fradinho aguardava que a surpresa cortou o fôlego a Frei Francis, privando-o um instante da palavra. Ajoelhou-se à pressa para beijar o anel do Pescador e receber a bênção, depois ergueu-se desajeitadamente, atrapalhado com o belo pergaminho iluminado que mantinha atrás das costas. Compreendendo o motivo da sua perturbação, o Papa teve um sorriso.
– O nosso filho trouxe-nos um presente? – perguntou.
O monge rouquejou, meneou estupidamente a cabeça e estendeu finalmente o manuscrito, que o vigário de Cristo fixou muito demoradamente sem nada dizer, com o rosto perfeitamente impassível.
– Não tem importância – balbuciou Frei Francis, que sentia a sua perturbação aumentar à medida que o silêncio do Pontífice se prolongava -, é apenas uma pobre coisa, um miserável presente… Chego a ter vergonha de ter passado tanto tempo a…
Calou-se de súbito, sufocado pela emoção.
Mas o Papa parecia não o ter ouvido.
– Compreende o significado do simbolismo empregado por Santo Isaac? – perguntou ele ao monge, enquanto examinava curiosamente o traçado do plano.
Como resposta, Frei Francis apenas pôde abanar negativamente a cabeça.
– Seja qual for o significado… – começou o Papa, mas interrompeu-se de súbito e começou bruscamente a falar de outra coisa. Se tinham dado ao monge a honra de assim o receber, explicou-lhe, não era porque as autoridades eclesiásticas, oficialmente, tivessem qualquer opinião a respeito do peregrino que um monge tinha visto. . . Frei Francis fora tratado daquela maneira porque o queriam recompensar por ter descoberto importantes documentos e santas relíquias. Assim tinham sido classificadas as suas descobertas, sem que aliás entrassem em linha de conta as circunstâncias que as rodearam. . .
E o monge começou a balbuciar agradecimentos, enquanto o Sumo Pontífice novamente se perdia na contemplação dos esquemas tão belamente iluminados.
– Seja qual for o significado – disse ele por fim -, este fragmento de saber, de momento morto, recuperará vida qualquer
dia.
Sorridente, teve um piscar de olhos em direcção ao monge.
– E conservá-lo-emos sob vigilância até esse dia – concluiu.
Só então Frei Francis reparou que a sotaina branca do Papa tinha um buraco e que todas as suas vestimentas estavam bastante velhas. O tapete da sala de audiência também se apresentava muito usado aqui e além e o estuque do tecto caía aos bocados.
Mas havia livros sobre as prateleiras que cobriam as paredes, livros enriquecidos por admiráveis iluminuras, livros que tratavam de coisas incompreensíveis, livros pacientemente recopiados por homens cuja tarefa não consistia em compreender, mas em salvaguardar. E aqueles livros aguardavam que chegasse a sua hora.
– Adeus, filho bem-amado.
O humilde guardião da chama do saber partiu novamente a pé em direcção da sua longínqua abadia… Quando se aproximou da região frequentada pelo gatuno sentiu-se estremecer de alegria. Se por acaso o ladrão estivesse de folga, naquele dia, o fradinho sentia-se disposto a sentar-se e aguardar o seu regresso. Pois sabia, desta vez, que resposta dar à sua pergunta.
1 Guisado regional francês, que consiste em couve, fiambre e salsichas (N. da T.)
2 Sistema francês análogo ao Totobola. (N. da T.)
3 Definição exacta (dada pelo Pr. Léon Brillouin, depois retomada por Robert Andrews Mullikan, prémio Nobel). De facto é incompreensível, caso não se possua o contexto, isto é, toda a complexa estrutura da nossa física.
4 Evidentemente que se deve tratar de A Suma Teológica, de São Tomás de Aquino.
Alimente sua alma com mais:
Conheça as vantagens de se juntar à Morte Súbita inc.