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Uma rosa é uma rosa, e nada mais que uma rosa; mas esses quatro pés de cadeira, além de pés de cadeira eram São Miguel e todos os anjos. Quatro ou cinco horas após o início da experiência, quando começavam a cessar os efeitos da deficiência de açúcar no meu cérebro, levaram-me para um pequeno passeio pela cidade, no qual estava incluída uma visita, ao cair da tarde, ao que era modestamente considerado o maior drugstore do mundo. Nos fundos do estabelecimento, entre brinquedos, cartões de felicitações e revistas de histórias em quadrinhos, havia — por estranho que pudesse parecer — toda uma prateleira de livros de arte. Apanhei o primeiro volume ao alcance da mão. Continha obras de Van Gogh, e o quadro que surgiu quando o livro se abriu foi A cadeira — aquele assombroso retrato de uma realidade metafísica que o pintor louco viu, com uma espécie de reverente terror, e buscou reproduzir em sua tela. Mas essa era uma tarefa em que até o poder do gênio revelou-se totalmente impotente. Estava claro que a cadeira vista por Van Gogh era, em essência, a mesma que eu vira. Mas, ainda que incomparavelmente mais real do que aquela que a percepção comum deixa entrever, mesmo assim a cadeira do quadro continuava a ser nada mais que um símbolo do fato, embora extraordinariamente expressivo. O fato fora uma manifesta Peculiaridade; isto era apenas um emblema. Esses emblemas são fontes de conhecimentos seguros sobre a
Natureza das coisas, e tais conhecimentos podem servir para preparar a mente que os aceita para ilações imediatas sobre essa mesma natureza. Mas isso é tudo. Por expressivos que sejam, os símbolos jamais se podem converter nas coisas que representam.
Seria interessante, sob esse aspecto, realizar um estudo das obras de arte que prenderam a atenção dos grandes apreciadores da Peculiaridade. Que tipo de pintura teria Eckhart admirado? Quais quadros e esculturas contribuíram para a experiência religiosa de San Juan de Ia Cruz, de Hakuin, de Huineng ou de William Law? Essas indagações estão além de minhas possibilidades de resposta, mas tenho a convicção de que a maioria dos grandes amantes da Peculiaridade pouco se preocupou com a arte — alguns, recusando-se pura e simplesmente a levá-la em conta; outros, contentando-se com trabalhos que olhos de crítico classificariam como obras de segunda, ou mesmo de décima classe. (Para uma pessoa, cuja mente transfigurada e transfiguradora é capaz de descobrir o Tudo em cada isto, a classificação de uma pintura como sendo de primeira ou de décima categoria, ainda tratando-se de pintura religiosa, será coisa que lhe há de provocar a mais soberana indiferença.) A arte, creio eu, interessa apenas a principiantes, ou então a essas obstinadas mediocridades que decidiram satisfazer-se com a contrafação da Peculiaridade, com símbolos em lugar daquilo que estes significam, com o cardápio elegantemente apresentado em vez da própria refeição.
Devolvi Van Gogh à prateleira e apanhei o volume seguinte. Era um livro sobre Botticelli. Folheei-o. O nascimento de Vênus, que nunca figurou entre minhas telas prediletas; Vênus e Marte, aquela beleza tão apaixonadamente denunciada pelo pobre Ruskin, no ardor de sua enfadonha tragédia sexual; maravilhosamente rica e intricada, seguiu-se a Calúnia de Apeles. Por fim, deparei com um quadro menos conhecido e não muito bom — Judite. Minha atenção foi despertada e eu me quedei embevecido, não pela pálida e neurótica heroína ou por sua serva; não ante a hirsuta cabeça da vítima ou pela paisagem primaveril que formava o fundo do quadro, mas ante a purpúrea seda do corpete pregueado e das longas saias que o vento ondulava.
Aquilo era algo que eu já havia visto, e naquela mesma manhã, entre as flores e os móveis quando, por acaso, olhei para baixo e minha vista se extasiara ao fixar minhas próprias pernas cruzadas. Essas dobras de minhas calças — que labirinto de infinita complexidade simbólica! E a textura da flanela cinzenta — quão rica, profunda e misteriosamente suntuosa era ela! E lá estava isso tudo, de novo, no quadro de Botticelli!
Os seres humanos civilizados usam roupas e, pois, não pode haver quadro, seja ele retrato, narrativa mitológica ou histórica, onde não haja representação de dobras de tecido. Mas, embora podendo caber-lhe o mérito da origem, jamais poderemos atribuir ao hábito do vestuário o exuberante tratamento que a roupagem vem merecendo como tema principal em todas as artes plásticas. É evidente que os artistas sempre lhe conferiram um valor intrínseco (ou, quiçá mais propriamente, sempre se aperceberam do valor que ela representava para eles). Quem pinta ou esculpe roupagens está pintando ou esculpindo formas que, em última instância, não possuem simbolismo intrínseco — formas não condicionadas que os artistas, mesmo os mais fervorosos adeptos do naturalismo, deixam entregues a si mesmas. No comum das Madonas ou dos Apóstolos, os elementos estritamente humanos, inteiramente simbólicos, constituem cerca de dez por cento da obra. O restante é formado por um sem-número de variações coloridas do inexaurível tema de linhos e lãs amarfanhados. E esses nove décimos não-simbólicos de uma Madona ou um Apóstolo podem ser tão importantes, qualitativamente, quanto o são em quantidade. Não raro, são eles que dão o tom do conjunto da obra de arte, que estabelecem a nota mestra dentro da qual o tema está sendo executado, que exprimem a disposição de espírito, o temperamento, a atitude do artista diante da vida. A serenidade estóica se revela por superfícies suaves, pelas amplas dobras das roupagens de Piero. Esmagado entre realidade e vontade, entre cinismo e idealismo, Bernini ajusta a verossimilhança quase caricatural das faces que modela com vastas abstrações de pano que são a corporificação, em pedra ou bronze, dos eternos lugares-comuns da retórica — o heroísmo, a santidade, a sublimidade a que a humanidade perpetuamente aspira, quase sempre em vão. E há ainda as saias e os mantos perturbadoramente viscerais de El Greco; as dobras vivas, retorcidas quais chamas, em que Cosimo Tura envolvia seus personagens. No primeiro, a espiritualidade tradicional se dilui em anônimo anelo fisiológico; debate-se, no segundo, um sentimento torturado ante a reserva e a hostilidade características deste mundo. Examinemos, agora, as obras de Watteau; seus homens e suas mulheres empenham-se em lutas, aprontam-se para bailes, embarcam, em relvas de veludo e sob vetustas árvores, para a Citera dos sonhos de todos os amantes; a imensa melancolia que os envolve, bem como a pungente sensibilidade de seu criador, encontram expressão, não nas ações, atitudes ou semblantes dos personagens, mas no relevo e na textura de suas saias de tafetá, de seus mantos e gibões de cetim. Não há nelas nem uma polegada sequer de superfícies suaves; tudo é um emaranhado de sedas em incontáveis e minúsculas pregas e rugas em incessante modulação — reflexo de uma incerteza interior reproduzida com a perfeita segurança de uma mão de mestre — de tom para tom, de uma cor indefinível para outra. Na vida, “o homem põe e Deus dispõe”. Nas artes plásticas, quem propõe é o assunto; mas quem dispõe é, em última instância, o temperamento do artista, e em primeira — ao menos em retratos, pintura histórica e descritiva — as roupagens e tapeçarias criadas pelo pincel ou pelo buril. Esses dois elementos podem fazer com que uma festa galante nos faça vir lágrimas aos olhos; que uma crucificação tenha uma tal serenidade que nos alegre a alma; que uma cena de suplício seja quase que intoleravelmente lúbrica; que o retrato de um prodígio de insensatez feminina (penso, neste instante, no incomparável Mme. Moitessier, de Ingres) possa exprimir a mais austera, a mais inflexível intelectualidade.
Mas isto não é tudo. As roupagens, percebo-o agora, são muito mais que simples artifícios para a introdução de formas desprovidas de simbolismo nas pinturas e esculturas naturalistas. O que nós outros só vemos sob a influência da mescalina pode, a qualquer tempo, ser visto pelo artista, graças a sua constituição congênita. Sua percepção não está limitada ao que é biológica ou socialmente útil. Algo do saber inerente à Onisciência flui através da válvula redutora do cérebro e do ego e atinge sua consciência. Isso lhe dá um conhecimento do valor intrínseco de tudo o que existe. Tanto para o artista como para quem ingere mescalina, o tecido é um hieróglifo vivo que representa, de certo modo singularmente expressivo, os insondáveis mistérios da existência. Ainda mais que a cadeira, embora talvez menos que aquelas flores absolutamente preternaturais, as dobras de minhas calças de flanela cinzenta estavam impregnadas de existência. Não sei dizer a que deviam elas sua privilegiada situação. Seria porque as formas assumidas pelas dobras dos tecidos são tão esquisitas e dramáticas que atraem nosso olhar e, assim, produzem esse milagre de pura existência sobre a atenção? Quem poderá dize-lo? Mas importa menos a razão para a experiência do que esta em si mesma. De olhos fitos nas saias de Judite, no maior drugstore do mundo, fiquei sabendo que Botticelli — e não somente ele como também muitos outros — havia contemplado as roupagens e tapeçarias com os mesmos olhos transfigurados e transfiguradores que eu possuía naquela manhã. Eles haviam visto o Istigkeit, a Totalidade e o Infinito das dobras de um tecido e haviam empregado ao máximo seu talento para representá-las na tela ou no mármore. É evidente que não poderiam, de forma alguma, triunfar, pois o esplendor e a maravilha da existência pura pertencem a uma ordem superior ao poder de expressão, mesmo da arte mais sublime. Mas, nas saias de Judite, pude ver claramente aquilo que, fosse eu um pintor de gênio, teria feito com minhas velhas calças de flanela cinzenta. Não seria muito — sabe-o o céu — em comparação com a realidade, mas bastaria para deliciar gerações e gerações de amantes da arte, para fazê-los compreender, um pouco que fosse, o verdadeiro valor daquilo que, em nossa patética imbecilidade, chamamos simples coisas e desprezamos em troca da televisão.
— É assim que precisamos ver — fiquei dizendo enquanto olhava para minhas calças ou relanceava os olhos pelos livros recamados de jóias nas estantes e pelos pés de minha cadeira infinitamente mais que vangoghiana. — É assim que precisamos ver as coisas — tal como elas são! — E ainda havia reparos a fazer. Pois se alguém visse sempre as coisas sob esse aspecto, jamais desejaria fazer algo diferente. Haveria apenas de olhar, de ser tão-somente a sublime Desindividualização da flor, do livro, da cadeira, das calças. Isso bastaria. Mas, nesse caso, e as outras pessoas? E as relações humanas? No registro da conversação daquela manhã, encontrei, a cada passo, a repetição da pergunta: “Que me diz das relações humanas?”. Como poderia alguém conciliar essa infinita bênção de ver as coisas, tal como elas devem ser vistas, com os deveres temporais de agir como se deve agir e sentir como é mister que se sinta? — É preciso que sejamos capazes — respondi eu — de considerar estas calças infinitamente importantes, e os seres humanos ainda mais infinitamente importantes. — É preciso! mas na prática isso me pareceu impossível. Essa participação no manifesto esplendor das coisas não deixava lugar, por assim dizer, para as preocupações comuns, necessárias, com a vida humana e, acima de tudo, para as preocupações com os indivíduos. Pois as pessoas possuem individualidade e (ao menos sob um aspecto) naquele momento eu não era eu mesmo, a um só tempo percebendo e sendo a Desindividualização das coisas ao meu redor. Para essa Desindividualização recém-nascida, o comportamento, a aparência, o próprio raciocínio do indivíduo que ela momentaneamente deixara de ser, assim como os dos outros indivíduos — seus companheiros de até então —, se não lhe eram desagradáveis (pois a aversão não figurava entre as categorias em termos das quais eu raciocinava), estavam, no entanto, bastante longe de suas cogitações. Compelido pelo pesquisador a analisar e relatar o que estava fazendo (e como desejaria ser deixado a sós com a Eternidade em uma flor, com o Infinito em quatro pés de cadeira e com o Absoluto nas pregas de urnas calças de flanela!), verifiquei que estava, deliberadamente, evitando os olhares daqueles que me faziam companhia naquela sala; que, intencionalmente, procurava não tomar conhecimento de sua presença. E, no entanto, um deles era minha esposa, e o outro, um homem que eu considerava e de quem muito gostava. Mas ambos pertenciam a um mundo do qual, naquela ocasião, a mescalina me havia tirado — o mundo dos personalismos, da dimensão tempo, dos julgamentos morais e das considerações utilitárias; o mundo — e era esse aspecto da vida humana que, acima de tudo, mais desejava esquecer — o mundo da auto-afirmação, da convicção, da supervalorização da palavra e das noções idolatra-mente cultuadas.
Nesse ponto da experiência passaram-me às mãos uma grande produção em cores do conhecidíssimo auto-retrato de Cézanne, o busto de um homem cuja cabeça estava coberta por um grande chapéu de palha; rosado, de lábios corados, ostentando opulentas suíças negras e dono de olhos escuros e inamistosos. É uma obra excelente; mas não era como obra de arte que eu a encarava, naquele instante. Pois a cabeça imediatamente adquiriu relevo e ganhou vida sob a forma de um homenzinho que lembrava um duende, olhando através de uma janela que era a página diante de mim. Comecei a rir. E, quando me perguntaram a razão, disse, e continuei repetindo:
— Que pretensão! Quem pensa ele que é? — Essa exclamação, eu não a endereçava a Cézanne, em particular, mas a toda a espécie humana. Quem pensavam eles todos que eram?
— Isso me faz lembrar Arnold Bennett nos Dolomitas — disse eu, repentinamente, recordando uma cena que um instantâneo feliz imortalizara, cerca de quatro ou cinco anos antes de sua morte, quando tateava através de uma trilha gelada em Cortina d’Ampezzo. Ao seu redor, a neve virgem; ao fundo, a atração irresistível dos rubros despenhadeiros. E lá estava o caro, afável e infeliz Arnold Bennett, exagerando, conscientemente, o papel de seu personagem favorito, corporificando-o ele mesmo. Lá vinha ele, vagarosamente, sob o brilhante sol dos Apeninos, os polegares metidos na cava do colete amarelo que se avolumava, um pouco mais abaixo, na curva graciosa de uma janela estilo Regência — a cabeça jogada para trás, como que tentando vencer uma crise de gagueira, sob a cerúlea abóbada celeste. Já não me lembro de quais tenham realmente sido suas palavras; mas seu porte, seu ar e sua atitude pareciam proclamar: “Sou tão bom quanto essas montanhas do inferno!”. E, de fato, sob certos aspectos, ele lhes era infinitamente superior; mas — e ele bem o sabia — não o era pela forma segundo a qual seu personagem predileto, no reino da ficção, gostava de ser.
Feliz ou infelizmente (dependendo do significado que se der à palavra) todos nós exageramos ao viver o papel de nosso personagem favorito. E o fato quase infinitamente improvável de se tratar de Cézanne, de pouco lhe valia. Pois o renomado pintor, com seu pequeno conduto para a Onisciência a burlar a ação da válvula redutora formada pelo cérebro e o filtro do ego, era também, e tão-somente, um duende de grandes suíças e olhar inamistoso.
Para descansar, voltei às pregas de minhas calças.
— E assim que precisamos ver as coisas — tornei a repetir. E bem que poderia ter acrescentado: “Isto é o tipo de coisa que precisa ser vista”. Coisas sem pretensões, satisfeitas com serem apenas elas mesmas, conformadas com suas peculiaridades, não agindo de per si, não tentando, loucamente, isolar-se do Dharma-Corpóreo, em diabólico desafio à graça de Deus.
— O que mais se aproximaria disso — disse eu — seria um Vermeer.
Sim, um Vermeer. Pois esse misterioso artista foi triplamente bem aquinhoado — com a visão que identifica o Dharma-Corpóreo com a sebe ao fundo do jardim; com o talento para reproduzir, com a máxima fidelidade, essa visão, dentro das limitações impostas pela capacidade humana; com a prudência para se ater, em suas pinturas, aos aspectos da realidade mais suscetíveis de serem reproduzidos. Pois, embora Vermeer representasse seres humanos, sempre foi um pintor de naturezas-mortas. Cézanne, que dizia a seus modelos femininos que se esforçassem por parecer-se com maçãs, buscava pintar seus retratos dentro do mesmo espírito. Mas suas raparigas com ar-de-maçã associam-se mais às idéias de Platão que ao Dharma-Corpóreo na sebe. Elas são a Eternidade e o Infinito, não em areia ou por flores, mas pelas abstrações de alguma espécie de alta geometria. Vermeer jamais pediu a seus modelos que buscassem parecer-se com maçãs. Ao contrário, insistia em que fossem o mais femininas possível mas sempre abstendo-se de se comportarem com infantilidade. Poderiam sentar-se ou ficar de pé, mas não deveriam apresentar-se com risos zombeteiros ou com arrogância, jamais deveriam rezar ou suspirar por amores ausentes, tagarelar, olhar com inveja os filhos de outras mulheres, namorar, amar, odiar ou trabalhar. Se fizessem quaisquer dessas coisas iriam, indubitavelmente, mostrar-se mais intensamente elas mesmas; mas deixariam, por essa mesma razão, de apresentar sua sublime e essencial Despersonalização. É de Blake a opinião de que as portas da percepção de Vermeer estavam apenas parcialmente limpas. Um único painel atingira uma transparência quase perfeita; o resto da porta continuava enlameado. A Despersonalização essencial pode ser perfeitamente percebida em coisas e em criaturas vivas, no divisor entre o bem e o mal. No homem, só podemos vislumbrá-la quando ele está em repouso, com a mente desanuviada, o corpo estático. Nessas circunstâncias, Vermeer pôde ver a Peculiaridade em toda a sua celestial beleza — pôde vê-la e, até certo ponto, representá-la em sutil e suntuosa natureza-morta. Vermeer é, indubitavelmente, o maior pintor de seres humanos no estilo natureza-morta. Mas houve também outros contemporâneos de Vermeer na França, tais como os irmãos Lê Nain. Eles pretendiam, creio eu, dedicar-se à pintura descritiva; mas, o que em verdade produziram, foi uma série de retratos, tipo natureza-morta, nos quais sua aguda percepção do infinito valor de todas as coisas está presente, não como nos de Vermeer, por um sutil enriquecimento das cores e texturas, mas por uma intensificação das luzes, uma obsessiva distinção das formas, dentro de uma tonalidade austera e quase que monocromática. De nossos dias é Vuillard, o pintor inexcedível, com suas esplêndidas e inesquecíveis pinturas do Dharma-Corpóreo sob a forma de um quarto de dormir burguês; do Absoluto consumindo-se em chamas no seio da família de um comerciante à hora do chá, em um jardim suburbano.
Ce qui fait que 1’ancien handagiste reme
Lê comptoir dont lê faste alléchait lês passants
C’est son jardin d’Auteuil, ou veufs de tout encens,
Lês Zinnias ont l’air d’être
en tôle vemie*
*[O que faz com que o antigo lojista despreze/ O faustoso balcão que atraía os
fregueses/ É seu jardim de Auteuil onde, à lisonja imunes,/As zínias lembram flores de
lata envernizada.]
Para Laurent Taillade, o espetáculo era simplesmente obsceno. Mas, se o antigo comerciante de material ortopédico se houvesse sentado suficientemente imóvel, Vuillard teria visto nele, tão-somente, o Dharma-Corpóreo; teria pintado, entre as zínias, o tanque dos peixinhos dourados, a torre mourisca e as lanternas chinesas da vila — um recanto do Éden ao romper do outono.
E, entretanto, minha pergunta continuava sem resposta. Como conciliar essa percepção aguçada com uma justa preocupação pelas relações humanas, com os deveres e as tarefas inadiáveis, para não mencionar a caridade e a piedade atuantes? A velha disputa entre ativos e contemplativos estava sendo renovada — e renovada, creio eu, com uma violência sem precedentes. Pois, até aquela manhã, eu só conhecera a contemplação sob suas formas mais humildes e encontradiças — a divagação do pensamento; a arrebatada abstração na poesia, na pintura ou na música; a paciente espera pela inspiração, sem a qual mesmo o mais prosaico escritor não pode pretender realizar coisa alguma; como vislumbres acidentais da natureza “de algo muito mais profundamente interligado”, no dizer de Wordsworth; como o silêncio sistemático que leva, por vezes, à noção de um “obscuro saber”. Mas, desta feita, conheci a contemplação em sua pujança. Em sua pujança, sim, mas não em toda a sua plenitude. Pois, quando esta é atingida, a estrada que leva a Maria inclui a de Marta[3] e eleva a contemplação, por assim dizer, a seu mais alto poder. A mescalina nos abre o acesso a Maria, mas fecha a porta que leva a Marta. Ela nos permite chegar à contemplação, mas a uma contemplação que é incompatível com a ação e até mesmo com a vontade de agir, com a própria idéia de ação. Nos intervalos entre suas revelações, quem toma mescalina é capaz de sentir que, embora de certo modo tudo tenha a sublimidade que devera ter, por outro lado há nisso qualquer coisa de errado. Seu problema é, essencialmente, o mesmo com que se defronta o eremita, o arfoat[4] e, em outro plano, o paisagista e o pintor de retratos inanimados. A mescalina jamais poderá resolver tal problema; servirá apenas para situá-lo, em termos obscuros, para aqueles aos quais ele jamais se apresentou. Sua solução plena e definitiva só poderá ser encontrada por quem esteja preparado para reforçar a verdadeira Weltanschauung[5] por meio do comportamento adequado e de uma vigilância constante, natural e apropriada. Ao eremita se opõe o contemplativo-ativo, o santo, o homem que, na frase de Eckhart, está pronto a descer do sétimo céu para levar de beber a seu irmão doente. Ao arhat, refugiando-se do mundo exterior em um Nirvana inteiramente transcendental, opõe-se o Bodhisattva[7], para quem a Peculiaridade e o mundo das contingências são uma mesma coisa, e para cuja piedade sem limites, a cada uma dessas contingências correspondem outras tantas portunidades, não só para meditações transfi-guradoras, como também para praticar a caridade mais objetiva. E, no universo da arte, a Vermeer e aos outros pintores de retratos inanimados, aos mestres do paisagismo chinês e japonês, a Constable e a Turner, a Sisley, Seurat e Cézanne, opõe-se a arte integral de Rembrandt. Esses são nomes célebres, inacessíveis eminências. Pelo que me toca, nessa memorável jornada de maio pude tão-somente ser grato a uma experiência que me revelou, mais claramente do que eu jamais pudera discernir, a verdadeira natureza do desafio e o cunho inteiramente emancipador da resposta.
Seja-me permitido acrescentar, antes de abandonar este assunto, que não há forma de contemplação, mesmo a mais passiva, que não possua seu conteúdo ético. No mínimo a metade de toda a moral é negativa, e consiste em evitar o erro. O pai-nosso contém menos de cinqüenta palavras, e seis delas são dedicadas a pedir a Deus que não nos deixe cair em tentação. O contemplativo-passivo deixa de fazer muitas coisas que teria de realizar; mas para se dispor a uma tal atitude, ele precisa abster-se de praticar uma série de ações que não deveriam ser levadas a efeito. O mal, acentuou Pascal, seria muito diminuído se os homens aprendessem a permanecer serenamente em seus aposentos. Mas o contemplativo cuja percepção haja sido esclarecida não precisará permanecer encerrado em seus aposentos. Poderá sair para seus afazeres, tão perfeitamente satisfeito em contemplar e em ser uma parte da divina Ordem das Coisas, que nunca ver-se-á tentado a entregar-se ao que Traherme chamou de “impuros Artifícios do mundo”. Quando nos sentimos como se fôssemos os únicos herdeiros do universo, quando “o mar corre em nossas veias […] e as estrelas são nossas jóias”, quando todas as coisas parecem infinitas e sagradas, que motivos poderemos ter para a cobiça ou a soberba, para a fome de poder ou para as formas mais doentias de prazer? Os contemplativos não são propensos a se tornarem jogadores, alcoviteiros ou ébrios; como regra, não pregam a intolerância nem promovem guerras; não são levados ao roubo, à fraude ou à opressão dos fracos. E, a essas grandes virtudes negativas, podemos ainda acrescentar outra que, embora difícil de definir, não só é importante como também positiva. O arhat e o contemplativo sereno podem não praticar a contemplação em sua plenitude, mas mesmo assim nos poderão proporcionar informações esclarecedoras sobre outra e transcendente região da mente. E, se praticarem-na com elevação, tornar-se-ão os condutos através dos quais poderá advir uma certa influência benéfica, dessa região ignota, para um mundo de personalidades atormentadas, em constante agonia por falta desse auxílio.
Enquanto isso, eu me voltara, a pedido de meu interlocutor, do retrato de Cézanne para o que se passava em minha mente ao cerrar os olhos. E o que pude então observar foi curiosamente decepcionante: meu campo de visão estava repleto de estruturas de cores vivas, em constante mutação, que pareciam feitas de plástico ou de folha esmaltada.
— Vulgar — comentei. — Ordinário. Como os objetos de uma loja americana.
Todas essas quinquilharias existiam em um universo acanhado, atulhado.
— E como se alguém estivesse, debaixo do convés, em um navio — exclamei. — Uma loja americana flutuante.
E, à medida que eu a observava, tornou-se bem patente que essa loja americana flutuante estava, de certa forma, relacionada com as pretensões humanas. Esse interior sufocante de loja barata embarcada era meu próprio ego; esses vistosos mobiles vulgares, de lata e de matéria plástica, eram minhas contribuições pessoais para o universo.
Achei a lição salutar, embora não deixasse de ser constrangedor que ela me tivesse sido ministrada nesse momento e sob tal forma. De modo geral, quem toma mescalina descobre um mundo interior tão claramente definido, tão axiomaticamente infinito e sagrado quanto aquele mundo exterior transfigurado que eu havia visto de olhos abertos. A princípio, minha própria experiência fora diferente. A mescalina me proporcionara, temporariamente, o poder de ter visões de olhos cerrados; mas não pudera — ou, ao menos naquela ocasião, não o fez — revelar-me uma visão interior remotamente comparável às minhas flores, à cadeira ou às calças de flanela “lá de fora”. O que ela me permitira perceber, interiormente, não fora o Dharma-Corpóreo por intermédio de imagens, e sim minha própria mente; não um padrão de Peculiaridade, mas um conjunto de símbolos — em outras palavras, um substituto caseiro dessa Peculiaridade.
Os indivíduos de imaginação fértil são, em sua maioria, transformados em visionários pela mescalina. Alguns deles — e seu número talvez seja bem maior do que geralmente se admite — não necessitam de transformação; são permanentemente visionários.
A espécie mental a que Blake pertencia acha-se razoavelmente bem distribuída, mesmo nas sociedades urbano-industriais da atualidade. A singularidade do artista-poeta não consiste no fato de, para citar seu Descriptive Catalogue, haver ele realmente visto “aquelas maravilhosas entidades que a Sagrada Escritura denominava Querubins”. Não reside em que “estes maravilhosos entes, surgidos em minhas visões, tivessem, alguns deles, cem pés de altura […] todos repletos de mitológico e recôndito significado”. Está apenas em sua habilidade para traduzir, por palavras ou (com um pouco menos de êxito) com traços e cores, ao menos certos aspectos de uma experiência algo incomum. O visionário desprovido de talento pode se aperceber de uma realidade interior não menos assombrosa, bela e valiosa que o mundo observado por Blake; mas faltar-Ihe-á por completo habilidade para exprimir, por meio de símbolos plásticos ou literários, aquilo que viu.
Conclui-se perfeitamente, à luz dos documentos e rituais religiosos, bem como dos monumentos da poesia e das artes plásticas que chegaram até nós, que, na maioria das épocas e dos lugares, os homens têm atribuído maior importância a suas visões interiores que às coisas objetivas que conhecem. Têm julgado que o que vêem, quando de olhos cerrados, possui maior importância espiritual que o visto à luz do dia. Qual a razão para isso? A familiaridade gera indiferença, e o problema da sobrevivência é de uma premência que vai da tediosa rotina à tortura. É para o mundo exterior que abrimos os olhos todas as manhãs, é nele que, de bom ou de mau grado, temos de procurar viver. No mundo interior não há trabalho nem monotonia. Visitamo-lo apenas em sonhos e devaneios, e sua singularidade é tal que nunca encontramos o mesmo mundo em duas ocasiões sucessivas. Que há, pois, de espantoso em preferirem os seres humanos, via de regra, olhar para dentro de si mesmos, em sua busca do sublime? Isso, de fato, sucede como regra geral, mas não necessariamente: não somente em sua religião, como também em sua arte, os taoístas e os budistas Zen procuravam ir além de suas visões, ao encontro e através do Vazio, até as “dez mil coisas” da realidade objetiva. Graças a sua doutrina da Palavra tornada carne, poderiam os cristãos, desde o início, adotar uma atitude semelhante com relação ao universo que os circundava. Mas, em razão da doutrina do Pecado Original, viram-se em grande dificuldade para fazê-lo. Há apenas trezentos anos, uma expressão de completa fuga ao mundo, e mesmo de sua condenação, era não só ortodoxa como compreensível: “Nada há na Natureza que mereça a nossa admiração, a não ser a encarnação de Cristo”. No século XVII, essa frase de Lallemant parecia ter sentido. Hoje, encontramos nela a aura da demência.
Na China, a ascensão do paisagismo à categoria de arte importante ocorreu há um milênio; no Japão, há uns seis séculos; na Europa, há uns trezentos anos. A identificação da Divindade com a sebe foi obra desses mestres zen, que consorciaram o naturalismo taoísta com o transcendentalismo budista. Foi, pois, apenas no Extremo Oriente que os paisagistas, conscientemente, encararam sua arte como obra religiosa. No Ocidente, a pintura religiosa consistia em representar personagens sacros e ilustrar textos sagrados. Os paisagistas tinham-se na conta de secularistas. Hoje reconhecemos em Seurat um dos supremos mestres do que pode ser denominado o paisagismo místico. E, não obstante, esse homem que era capaz, mais do que outro qualquer, de representar o Impar em sua pluralidade, ficou indignado quando alguém lhe elogiou a poesia de suas obras. “Limito-me a aplicar o Sistema”, protestou ele.
Em outras palavras, ele se considerava um praticante do pointillisme[7] e nada mais. Passagem semelhante conta-se de Constable: Blake, já no fim de sua vida, conheceu-o em Hampstead e examinou alguns de seus esboços. A despeito de seu desprezo pela arte naturalista, o velho visionário soube dar-lhe o devido valor, embora pensasse tratar-se de obra de Rubens. — “Isto não é desenho”, exclamou ele, “isto é inspiração!” Ao que Constable lhe teria retrucado, de modo bem característico: “Fi-lo para que fosse desenho”. Ambos estavam certos. Aquilo era desenho, preciso e fiel, mas ao mesmo tempo era inspiração — inspiração no mínimo tão elevada quanto a de Blake. Os pinheiros na Urze foram realmente identificados com a Divindade. O esboço era uma reprodução, necessariamente imperfeita, mas assim mesmo profundamente impressionante, do que uma percepção sem peias revelara aos olhos abertos de um grande pintor. De uma contemplação segundo os moldes de Wordsworth e Whitman, identificando a Divindade com a sebe, e das visões introspectivas, tais como as de Blake, das “maravilhosas entidades”, os poetas contemporâneos recuaram para uma investigação do que é pessoal, como oposto ao mais do que pessoal, subconsciente, e para uma reprodução, em termos altamente abstratos, não dos fatos reais, objetivos, mas de meras noções científicas e teológicas. Coisa algo semelhante ocorreu no campo da pintura. Nela verificamos uma fuga generalizada da paisagem — forma predominante dessa arte no século XIX. Essa fuga não se deu para aquele sublime Princípio interior — ao qual se achavam ligadas, em sua maioria, as escolas tradicionais do passado —, para aquele Mundo Modelo, onde os homens têm sempre ao seu dispor estas duas matérias-primas: mito e religião. Não; o que houve foi uma fuga para o Princípio exterior, para o subconsciente individual, para um mundo intelectual mais esquálido e ainda mais estreitamente fechado que o da personalidade consciente. Essas quinquilharias de lata e de plástico, de cores berrantes, onde eu as havia visto antes? Em qualquer galeria de arte onde se exibam as últimas criações da arte não-representativa.
Naquele momento, alguém acabava de ligar um fonógrafo e de pôr um disco no prato. Ouvi com prazer a música; mas nada há que se equipare à visão apocalíptica que tive das flores e de minhas calças. Poderia um músico, prodigamente aquinhoado pela Natureza, ouvir as revelações que, para mim, foram exclusivamente visuais? Seria interessante fazer essa experiência. Entretanto, embora não transfigurada, embora mantendo a qualidade e a intensidade normais, a música contribuiu, e não pouco, para a compreensão do que se passara comigo e dos problemas mais amplos que esses acontecimentos suscitaram.
A música instrumental, por estranho que pareça, deixou-me bastante indiferente. O Concerto para piano em dó-menor, de Mozart, foi interrompido após o primeiro movimento e substituído por um disco de madrigais de Gesualdo.
— Essas vozes — disse eu com prazer —, essas vozes são uma espécie de ponte que nos permite regressar ao mundo dos homens.
E como ponte continuaram, mesmo quando cantando as composições mais povoadas de variações cromáticas dentre as obras do príncipe louco. A música prosseguiu através das frases irregulares ; dos madrigais, jamais batendo na mesma tecla em dois compassos l consecutivos. Em Gesualdo — aquele personagem fantástico de um melodrama de Webster — a desintegração psicológica exagerara, levara aos limites extremos uma tendência inerente à música modal, em contraposição à inteiramente tonai. Daí suas obras darem a impressão de terem sido escritas pelo último Schoenberg.
— E no entanto — senti-me forçado a dizer, enquanto ouvia esses estranhos produtos de uma psicose da Contra-Reforma atuando sobre um estilo de arte do fim da Era Medieval —, e, no entanto, pouco importa que ela seja toda em pedaços. O conjunto é caótico, mas cada fragmento, de per si, é ordenado, é a representação de uma Ordem Superior. Essa Ordem Superior sobrepuja a própria desintegração. Sente-se a unidade até nos fragmentos. Talvez ela seja mais sensível do que em uma obra inteiramente coerente. Ao menos, não seremos levados a um sentimento de falsa segurança por qualquer impulso meramente humano e artificial. Temos de confiar em nossa percepção direta, de natureza fundamental. Portanto, até certo ponto, a desintegração pode ter suas vantagens. Mas é fora de dúvida que ela é perigosa; terrivelmente perigosa. Suponhamos que não mais possamos voltar, fugir ao caos…
Dos madrigais de Gesualdo pulamos, num salto de três séculos, para Alban Berg e sua “Suite Lírica”.
— Isto — avisei antecipadamente — será o inferno.
Mas, quando a música começou, verifiquei que me enganara. Na verdade, a melodia parecia até alegre. Vindo do fundo do meu subconsciente, o enlevo se multiplicava pelos outros tantos tons da orquestra; contudo, o que realmente me impressionou foi a incongruência essencial entre uma desintegração psicológica talvez ainda mais completa que a de Gesualdo e os prodigiosos recursos, tanto em talento como em técnica, empregados em sua expressão.
— Não parece que ele está triste consigo mesmo? — comentei com zombeteiro desagrado. E logo depois: — Katzenmusik!, douta Katzenmusik![8] — Finalmente, após mais uns poucos minutos de tortura: — Quem se
importa com quais sejam seus sentimentos? Por que não pode ele dedicar-se a qualquer outra coisa?
Como crítica de uma obra indubitavelmente notável, ela era injusta e parcial, mas não creio que fosse despropositada. Cito-a, não só pelo valor que possa ter, como também por ter sido assim que, em um estado de pura contemplação, reagi ante a “Suite Lírica”.
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3. Marta e Maria, irmãs de Lázaro, citadas no Novo Testamento, Evangelho de São Lucas. Nas alegorias cristãs, Marta simboliza a vida ativa; Maria, a contemplativa.
4. Arfoat – monge budista que atingiu a luz; santo budista.
5. Weltanschauung (“visão do mundo”) é uma concepção filosófica do universo como decorrência do rumo dos acontecimentos no mundo como um todo.
6. Bodhisattva – santo budista; aquele que, seguindo as pegadas do Buda, deverá, em encarnação futura, tornar-se também um Buda.
7. Técnica de pintura da escola neo-impressionista, fundada por Seurat, na qual as tintas são aplicadas sobre fundo branco, em pequenos pontos, seguindo um rigoroso sistema.
8. Literalmente, “música de gatos”; expressão alemã empregada para definir uma música desagradável.
por Aldous Huxley
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