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Nefilin

Este texto foi lambido por 350 almas esse mês

Num diálogo retirado do capítulo “Serafim” da popular série de TV, Arquivo X, a investigadora do FBI Dana Scully, depois de deparar-se com um serafim, consulta um padre para que lhe esclareça a respeito do que viu:

Dana Scully: Eu vi um homem com roupa negra. Ele tinha 4 faces, não eram humanas.

Padre: (…) É um Serafim um anjo de 4 faces. Uma de anjo, 1 de leão, 1 de águia e uma de touro. Na história o anjo desce do céu e gera 4 filhos em uma, mortal. Os filhos são os Nefelin , os caídos, tem almas de anjos mas não deveriam existir, são deformados atormentados. Então Deus envia o Serafim à Terra para levar de volta as almas dos Nefelin, para evitar que o demônio as reinvindique.

Dana Scully: Como foram levadas?

Padre: Elas foram levadas pelo brilho de sua face. Olhar para um Serafim em toda sua glória é entregar a alma ao céu.

Dana Scully: Acha que foi isso o que vi?

Padre: Não, acho que o que viu foi uma fantasia de sua imaginação. (…) Nephelin é uma história. O texto no qual parece nem é reconhecido pela igreja.

Essa é uma das poucas vezes em que a incrédula agente Scully – e não Fox Mulder – toma a iniciativa em afirmar a existência de algo ainda não provado pela ciência, o que da um destaque maior desse capítulo, em relação ao restante da série. Também em nome de sua fé católica ela deixa que a última das 4 crianças (que possuíam deformações como estrutura óssea para suporte de asas, seis dedos nos pés e nãos, etc.) tenha o mesmo destino das outras, que ao olhar para o serafim morreram com seus olhos queimados. De qualquer forma a lenda dos Nefilin faz parte da antiga mitologia judaica.

O livro da Gênese assinala a união fecunda dos Benei-ha-Elohim ou filhos dos deuses, com as filhas dos homens: Misterioso casamento do qual nasceu a grande raça dos gibborim, ou dos nephilim:

«6. Filhos de Deus e filhas dos homens – Quando os homens começaram a ser numerosos sobre a face da terra, e lhes nasceram filhas, os filhos de Deus viram que as filhas dos homens eram belas e tomaram como mulheres todas as que lhes agradaram. Iahweh disse: “Meu espírito não se responsabilizará indefinidamente pelo homem, pois ele é carne; não viverá mais que cento e vinte anos.” Ora, naquele tempo (e também depois), quando os filhos de Deus se uniam às filhas dos homens e estas lhes davam filhos, os Nefilim habitavam sobre a terra; estes homens famosos foram os heróis dos tempos antigos.»

O episódio dos “filhos de Deus”, que se casaram com as “filhas dos homens”, é de tradição javista. O capítulo 6 é provavelmente um fragmento que se adicionou para fornecer uma motivação moral à história do dilúvio, derivada de versões mesopotâmicas nas quais essa motivação inexiste. Embora no Gênesis não esteja claro que os nefilins fossem maus, assim eles foram considerados nos livros apócrifos da época do Segundo Templo. O livro apocalíptico dos Jubileus conta que os Sentinelas (anjos) vieram para a Terra e depois pecaram, mas que seu príncipe, Samael, teria tido a permissão de Yaveh para atormentar a humanidade. Entretanto, o judaísmo posterior e quase todos os primeiros escritores eclesiásticos viram nesses “filhos de Deus” anjos culpados. Nos Livros de Enoch, esse episódio aparece como tendo sido uma desobediência à Deus. Os últimos compiladores do capítulo 6 provavelmente conheciam a história completa relatada em Enoch, com detalhes sobre os filhos nascidos da união entre anjos e mulheres, “que são chamados espíritos sobre a terra” pois a citação Bíblica foi obviamente influenciada por este livro, do qual temos um fragmento de sua forma mais antiga, em aramaico, o manuscrito de Damasco, descoberto no inverno de 1896-97 numa genizah ou esconderijo secreto de uma comunidade hebraica do Cairo e publicada, pela primeira vez, sob o título de Documento de Damasco, em 1910. O texto completo, em português, aparece no apêndice de “Os Documentos do Mar Morto”, de Burrows, de onde tiramos a citação que se segue:

«III – E, agora, ouvi-me, meus filhos, que eu descerrarei os vossos olhos para que possais escolher aquilo que Ele ama e desprezar tudo aquilo que odeia, para poderdes caminhar perfeitamente em todos os Seus caminhos e não errardes seguindo impulsos culposos ou deitando olhares de fornicação. Porque muitos foram os que se desviaram e homens fortes e valorosos aí escorregaram, tanto outrora como hoje. Caminhando com a rebelião nos corações, caíram os próprios guardas dos céus, a tal chegados porque não observavam os mandamentos de Deus, tendo caído também os seus filhos, cuja estatura atingia também a altura dos cedros e cujos corpos se assemelhavam a montanhas. Todo o ser vivo que se encontrava em terra firme, caiu, sim, e morreu, e foram como se não tivessem sido, porque procediam conforme a sua vontade e não observavam os mandamentos do seu Criador, de maneira que a cólera de Deus se inflamou contra eles.

IV – assim se perderam os filhos de Noé e as suas tribos e assim foram aniquilados.»

Ainda nos textos de Qumram, do século II a.C., vamos encontrar outro documento antigo, o pergaminho de Lameque, contando uma história semelhante. Como o rolo só se conservou em fragmentos, faltam agora no texto frases e sentenças inteiras. O que restou, entretanto, é suficiente singular para ser relatado. Diz ele, que certo dia Lameque, pai de Noé, voltando para casa de uma viagem de mais de nove meses, foi surpreendido pela presença de um menino pequenino que, por seu aspecto físico externo em absoluto não se enquadraria na família. Lameque levantou pesadas acusações contra sua mulher Bat-Enosh e afirmou que aquela criança não se originara dele. Bat-Enosh se defendeu, jurando por tudo que lhe era sagrado que o sêmem só poderia ser dele, do pai Lameque, pois na ausência do marido ela não teve o menor contato com nenhum soldado, nem de um estranho nem de um dos “filhos do céu”. E ela implorou:

«Ó meu senhor… juro… esse sêmem proveio de ti, de ti proveio a concepção, de ti a plantação do fruto que não é de um forasteiro, nem de um guarda, tampouco de um filho do céu…»

Não obstante, Lameque não acreditou nas juras de sua mulher e, desassossegado até o fundo de sua alma, partiu para pedir conselho a seu pai Matusalém, a quem relatou o caso familiar que tanto o deprimia. Matusalém ouviu, meditou e como não chegou a tirar conclusão alguma, por sua vez, pôs-se a caminho para consultar o sábio Enoque. Aquele assunto de família estava causando tal alvoroço que o velho enfrentou os incômodos de uma longa viagem a fim de por a limpo a origem do garoto. Enoque ouviu o relato de Matusalém, contando como, de um céu cem nuvens, de repente caiu um menino, de aspecto físico externo menos parecido com o dos mortais comuns, e mais semelhante a um filho de pai celeste, cujos olhos, cabelos, pele, em nada se enquadrava na família.

O sábio Enoque escutou o relato e mandou o velho Matusalém de volta, com a notícia alarmante de que um grande juízo punitivo sobreviria, atingindo a Terra e a humanidade; toda a “carne” seria aniquilada, por ser suja e perversa. No entanto, falou Enoque, ele, Matusalém, deveria ordenar ao seu filho Lameque que ficasse com o menino e lhe desse o nome de Noé, pois o pequeno Noé teria sido escolhido para ser o progenitor daqueles que sobreviveriam ao grande juízo universal. Matusalém viajou de volta, informou seu filho sobre tudo o que estaria para vir e Lameque finalmente aceitou a criança como sua.

A Biblioteca de Enoch:

O “Livro de Enoch” é um texto apócrifo escrito por volta de 200 a.C. [Os livros apócrifos judaicos circulavam entre os judeus durante os séculos imediatamente anteriores e posteriores ao início da era cristã. Os mais importante de todos estes era os Livros de Enoch.]

Na verdade, o Livro de Enoch era uma coletânea de diversas obras literárias, que apareciam todas sob o nome de Enoch mas que teriam sido escritas por diferentes autores. Tudo indica que o livro era bastante conhecido até o século XVIII, mas não sabemos quantos deles existem. O livro das Similitudes (ou segredos) de Enoch menciona um total de 360 livros. Uma verdadeira biblioteca cuja existência dificilmente poderá algum dia ser comprovada. Sabemos que com certeza existem três: O Enoque I ou Enoque Etíope; o Enoque Eslavo ou Livro dos Segredos de Enoque e o Enoque Hebreu. Há uma vaga referência a um Enoque IV, feita numa epístola a Barnabás, datada do século II da nossa Era. [Talvez queira-se considerar também o pergaminho de Lameque como uma seqüência das histórias contadas pelo patriarca Enoch]. Infelizmente, esses textos ficaram perdidos durante séculos, só sendo redescobertos em épocas recentes, a maior parte em fragmentos.

Alguns fragmentos do Livro de Enoque, já conhecido, mas escrito em aramaico, foram descobertos nas célebres grutas de Quamram, no Mar Morto [ver o Manuscrito de Damasco]. Por isso há quem especule a existência de uma versão original mais antiga, escrita em hebraico. Uma outra versão conhecida como Os Segredos de Enoch ou II Enoch, foi descoberta na Rússia, em um texto eslavo, e traduzida para o inglês no século XIX; Esta foi provavelmente escrita no Egito no princípio da era cristã e fala da viagem de Enoch através das diferentes cortes do Paraíso.

Uma de sua versões foi encontrada na Abissínia. Havia sido escrita no idioma etíope, por isso ficou conhecido como Enoch Etíope ou I Enoch. O Enoque Etíope é conhecido de forma completa na Europa desde 1773, quando o explorador inglês James Bruce trouxe três cópias, que foram rapidamente difundidas; mas a primeira publicação de excertos do texto etíope de Enoque, o qual, é o único integral remanescente, só ocorreu em 1800. A primeira tradução completa foi publicada por Richard Laurence em Oxford no ano de 1821, gerando novos debates em torno da velha questão: Se os “filhos de Deus” que tiveram relações sexual com mulheres eram de fato anjos. O estudo filológico mostrou que estes originais foram escritos por volta do ano 400 da nossa Era e em grego. A queda dos anjos é contada no texto da seguinte forma:

VI – 1. Quando outrora aumentou o número dos filhos dos homens, nasceram-lhes filhas bonitas e amoráveis. Os Anjos, filhos do céu, ao verem-nas, desejaram-nas e disseram entre si: “Vamos tomar mulheres dentre as filhas dos homens e gerar filhos!” 2. Disse-lhes então o seu chefe Semjaza: “Eu receio não queiras realizar isso, deixando-me no dever de pagar sozinho o castigo de um grande pecado”. Eles responderam-lhe em coro: “Nós todos estamos dispostos a fazer um juramento, comprometendo-nos a uma maldição comum mas não abrir mão do plano, e sim executa-lo”. 3. Então eles juraram conjuntamente, obrigando-se a maldições que a todos atingiram. Eram ao todo duzentos os que, nos dias de Jared, haviam descido sobre o cume do monte Hermon. Chamaram-no Hermon porque sobre ele juraram e se comprometeram a maldições comuns. 4. Assim se chamavam os seus chefes: Semjaza, o superior de todoseles, Arakiba, Rameel, Kokabiel, Tamiel, Ramiel, Danel, Ezekeel, Narakijal, Azael, Armaros, Batarel, Ananel, Sakeil, Samsapeel, Satarel, Turel, Jomjael e Sariel. Eram esses os chefes de cada grupo de dez.

VII – 1. Todos os demais que estavam com eles tomaram mulheres, e cada um escolheu uma para si. Então começaram a freqüentá-las e a profanar-se com elas. E eles ensinavam-lhes bruxarias, exorcismos e feitiços, e familiarizavam-nas com ervas e raizes. 2. Entrementes elas engravidaram e deram à luz a gigantes de 3.000 côvados de altura. Estes consumiram todas as provisões de alimentos dos demais homens. E quando as pessoas nada mais tinham para dar-lhes os gigantes voltaram-se contra elas e começaram a devorá-las. 3. Também começaram a atacar os pássaros, os animais selvagens, os repteis e os peixes, rasgando com os dentes as suas carnes e bebendo o seu sangue. Então a terra chamou contra os monstros.

VIII – 1. Azazel ensinou aos homens a confecção de espadas, facas escudos e armaduras, abrindo os seus olhos para os metais e para a maneira de trabalha-los. Vieram depois os braceletes, os adornos diversos, o uso dos cosméticos, o embelezamento das pálpebras, toda sorte de pedras preciosas e a arte das tintas. 2. Eassim grassava uma grande impiedade; eles promoviam a prostituição, conduziam aos exessos e eram corruptos em todos os sentidos. Semjaza ensinava os esconjuros e as poções de feitiços, Armaros a dissipação dos esconjuros, Barakijal a astrologia, Kokabel a ciência das constelações, Ezekeel a observação das nuve3ns, Arakiel os sinais da terra, Samsiel os sinais do sol e Sariel as fases da lua. 3. Quando os homens se sentiram prestes a serem aniquilados levantaram um grande clamor, e seus gritos chegaram ao céu.

IX – 1. Então Michael, Uriel, Raphael e Gabriel olharam do alto do céu e viram a quantidade de sangue derramado sobre a terra e todas as desgraças que sobrevieram (…) 2. Então eles falaram ao Senhor dos mundos: “(…) 4. Tu vês o que foi perpetrado por Azazel, como ele ensinou sobre a terra toda espécie de transgressões, revelando os segredos eternos do céu, forçando os homens ao seu conhecimento; assim procedeu Semjaza, a quem conferiste o comando sobre os seus subalternos. 5. “Eles procuraram as filhas dos homens sobre a terra, deitaram-se com elas e tornaram-se impuros; familiarizaram-nas com toda sorte de pecados. As mulheres pariram gigantes e, em conseqüência, toda a terra encheu-se de sangue e de calamidades.” 6. “Agora clamam as almas dos que morreram, e o seu lamento chega às portas do céu. Os seus clamores se levantam ao alto, e em face de toda a impiedade que se espalhou sobre a terra não podem cessar os seus queixumes.” 7. “E Tu sabes de tudo, antes mesmo que aconteça. Tu vês tudo isso e consentes. Não nos dizes o que devemos fazer.”

X – 1. Então o Altíssimo, o Santo, o Grande, tomou a palavra e enviou Uriel ao filho de Lamech, com a ordem seguinte: “Dize-lhe, em meu nome: ‘Esconde-te’, e anuncia-lhe o fim próximo! Pois o mundo inteiro será destruído; um dilúvio cobrirá toda a terra e aniquilará tudo o que sobre ela existe.” 2. “Comunica-lhe que ele poderá salvar-se, e que seus descendentes serão mantidos por todas as gerações do mundo!” 3. E a Raphael disse o senhor: “Amarra Azazel de mãos e pés e lança-o nas trevas! Cava um buraco no deserto de Dudael e atira-o ao fundo! Deposita pedras ásperas e pontiagudas por baixo dele e cobre-o de escuridão! Deixa-o permanecer lá para sempre e veda-lhe o rosto, para que não veja a luz!” 4. “No dia do grande Juízo ele deverá ser arremessado ao tremendal de fogo! Purifica a terra, corrompida pelos Anjos, e anuncia-lhe a Salvação, para que terminem seus sofrimentos e não se percam todos os filhos dos homens, em virtude das coisas secretas que os Guardiões revelaram e ensinaram aos seus filhos! Toda a terra está corrompida por causa das obras transmitidas por Azazel. A ele atribui todos os pecados!” 5. E a Gabriel disse o Senhor: “Levanta a guerra entre os bastardos, os monstros, os filhos das prostitutas e extirpa-os do meio dos homens, juntamente com todos os filhos dos Guardiões! Instiga-os uns contra os outros, para que na batalha se eliminem mutuamente! Não se prolongue por mais tempo a sua vida! Nenhum rogo dos pais em favor dos seus filhos deverás ser atendido; eles esperam ter vida para sempre, e que cada um viva quinhentos anos.” 6. A Michael disse o Senhor: “Vai e põe a ferros Semjaza e os seus sequazes, que se misturam com as mulheres e com elas se contaminaram de todas as suas impurezas!” 7. “Quando os seus filhos se tiverem eliminado mutuamente, e quando os pais tiverem presenciado o extermínio dos seus amados filhos, amarra-os por sete gerações nos vales da terra, até o dia do seu julgamento, até o dia do juízo final!” 8. “Nesse dia, eles serão atirados ao abismo de fogo, na reclusão e no tormento, onde ficarão encerrados para todo o sempre. E todo aquele que for sentenciado à condenação eterna seja juntado a eles, e seja com eles mantido em correntes, até o fim de todas as gerações.” 9. “Extermina os espíritos de todos os monstros, juntamente com todos os filhos dos Guardiões, porque eles maltrataram os homens! Purga a terra de todo ato de violência! Toda obra má deve ser eliminada! Que floresça a árvore da Verdade e da Justiça. (…)”

VII – 1. Enoch (…) havia estado junto dos Guardiões e transcorreu os seus dias na companhia dos Santos. 2. (…) Então os [Santos] Guardiões me chamaram, a mim Enoch, o Escriba, e disseram-me: “Enoch, tu, o Escriba da Justiça, vai e anuncia aos Guardiões do céu que perderam as alturas do paraíso e os lugares santos e eternos, que se corromperam com mulheres à moda dos homens, que se casaram com elas, produzindo assim grande desgraça sobre a terra; anuncia-lhes: ‘Não encontrareis nem paz nem perdão’. Da mesma forma como se alegram com seus filhos, presenciarão também o massacre dos seus queridos, e suspirarão com a desgraça. Eles suplicarão sem cessar, mas não obterão nem clemência nem paz!”

Alguns estudiosos tem certeza de que esse livro foi escrito originalmente em hebraico, outros julgam que a língua original foi o aramaico e outros tantos acreditam que algumas partes foram escritas em hebraico e outras em aramaico. A primeira parte do Enoch etíope (caps. 1-36) tem uma importância imensa, pois remonta provavelmente a c. 300 a.C. e aos primeiros livros da Bíblia. Uma das fontes antigas usadas pelos últimos revisores do Gênesis era semelhante a fonte utilizada mais integralmente em I Enoch.

A queda dos anjos vista pelos cristãos:

A tradição da queda dos anjos estava espalhada e existia na época do nascimento do cristianismo no Egito. Ainda hoje persiste na Síria, no Egito e na Etiópia, onde existem igrejas cristãs muito diferentes das nossas. Atualmente, a Igreja Cristã da Etiópia, ou Igreja Copta, mantém o Livro de Enoque em sua Bíblia, como documento oficial. Entre demais cristãos atuais é considerado apócrifo, o que não é de estranhar. Os primeiros padres da Igreja, e os principais pensadores cristãos dos três primeiros séculos conheciam Enoch. Também a Bíblia não era a que conhecemos. Até o século IV, Enoch fazia parte do ainda mal definido cânone. Familiar aos judeus e primeiros cristãos, Enoch foi um texto sagrado autêntico para Judas, Clemente, Barnabé, Tertuliano e outros primeiros padres (embora Jerônimo e Orígenes fizessem ressalvas). A influência desse livro foi tamanha que ele chegou citado até mesmo por críticos pagãos, como Celso, que estudou as Escrituras.

Como já visto anteriormente, na mais antiga tradição judaico-cristã, o pecado dos Anjos-caídos foi a luxúria e não o orgulho. Os Nefilins foram criação da união sexual entre anjos lúbricos e mulheres. Essa interpretação influente apresentada por muitos dos primeiros padres da Igreja é uma razão para Enoch ter sido posteriormente excluído do cânone. Eis o que os primeiros padres escreveram: Justino, martirizado em Roma em 165 d.C., explicou que alguns anjos violaram a ordem apropriada das coisas, cederam a impulsos sexuais e tiveram relações com mulheres, cujos filhos agora chamamos de demônios. [26] Esses demônios são a causa de assassinatos, adultérios e todos os outros males. Atenágoras, outro apologista cristão grego, escreveu (em 177) que o Diabo foi criado por Deus exatamente como Ele criara os demais anjos. O homem possui o livre-arbítrio para escolher entre bem e mal, e o mesmo vale para os anjos. O homem possui o livre-arbítrio para escolher entre bem e mal, e o mesmo vale para os anjos. Mas no passado alguns anjos sentiram desejo por virgens, tornaram-se escravos da carne, tiveram relações sexuais com elas e nasceram-lhes filhos que eram gigantes. Junto com as almas desses gigantes, os anjos que caíram do Céu assombram o ar e a terra; são os demônios que vagam pelo mundo. [27] Clemente de Alexandria, outro apologista importante, foi um pensador flexível e sutil na virada do século II. Condenado no século IX como herege pelo patriarca ilegalmente consagrado Fócio, Clemente foi eliminado do martirológio romano. Ele supôs que as verdades da filosofia grega haviam sido roubadas pelos gregos dos hebreus. Tanto os textos gregos como os hebreus misturam verdade e erro, sendo o Diabo a origem da confusão. Em última análise, argumentou clemente, todas as verdades da filosofia provêm dos anjos caídos; essa idéia deriva de Enoch. Um dos mais extraordinários apologistas cristãos foi o grande polemista Tertuliano (155-220 d.C.) Como a maioria dos criativos primeiros padres, Tertuliano converteu-se na meia-idade. “Pode alguém ser mais douto, mais perspicaz do que Tertuliano?”, perguntou Jerônimo. Muitos termos “técnicos” cristãos usados hoje em latim foram cunhados por Tertuliano; pecado original, vitium originis, é um exemplo. Nada do que ele escreveu é inexpressivo, e a maior parte de seus textos conserva uma influência considerável. Esse vigoroso líder da Igreja norte-africana juntou-se aos montanistas, um rígido grupo de ascetas que acreditava na revelação progressiva, ensinamento condenado pela Igreja. Tertuliano, como Clemente, acreditava que os anjos celestes que tinham mantido relações sexuais com as filhas dos homens, tal como descrito em Enoch, revelaram muitas artes secretas, inclusive o mistério do kohl. Em prosa evocativa, Tertuliano serve-se de uma sentença de Enoch (cap. 8) e a expande para explicar que os anjos caídos ensinaram às mulheres:

«A radiância de pedras preciosas que com que se ornam colares em cores várias, os braceletes de ouro que envolvem seus braços, as preparações coloridas que se usam para tingir lã, e o pó negro […] para realçar a beleza de seus olhos.»

Tertuliano fez inúmeras referências a Enoque. Em sua célebre Apologia, por exemplo, ele interpreta o Gênesis à luz de Enoch. Interpretaram o texto ao pé da letra e julgaram que o pecado do Diabo foi o desejo sexual. Apesar de tudo, no século V santo Agostinho afirmou, confiante: “Não há dúvida quanto ao fato de esses ‘anjos’ serem homens, e não, como crêem alguns, criaturas diferentes de homens”. Em nossa época, assim como na de santo Agostinho, quando as pessoas dizem “não há dúvida”, geralmente há… Santo Agostinho argumenta que os “filhos de Deus” eram anjos apenas no espírito, por isso se permitiram a perda da graça. Antes da queda, essas pessoas potencialmente superiores tiveram filhos não em conseqüência de seu arrebatamento sexual, mas com o intuito de “povoar de cidadão a cidade de Deus”:

«Seja como for, eu nem sonharia em crer que foram os santos anjos de Deus a sofrer tal queda no presente caso […] e não é preciso apelar para os textos que se apresentam sob o nome de Henoch e contêm as fábulas sobre gigantes [nem] a alguns textos sob os nomes de vários profetas e apóstolos que são divulgados por hereges.»

Enoch tornou-se um instrumento de hereges. Mas o que santo Agostinho não nos diz – e que de fato apenas estudos recentes revelaram – é que algumas seções desse livro, nos quais se mencionam gigantes, haviam sido “apropriadas” ou “tomadas antecipadamente” pelos mesmos maniqueístas que haviam ensinado santo Agostinho e a quem este depois repudiou. Bastou que santo Agostinho estigmatizasse esse livro como herético para que ele ficasse eficazmente enterrado por um milênio.

Mas o problema não estava inteiramente resolvido. Havia ainda um fragmento da queda dos anjos no Gênese que desde então passou a ser considerado pelos exegetas, como de difícil compreenção. As questões perturbadoras levantadas pelos leitores eram evidentes… Que grandes atrativos poderia ter o próprio paraíso se um expressivo grupo de 200 anjos preferiu deixa-lo – conscientes de que sem dúvida sofreriam uma horrível punição futura – só para fazer sexo com fêmeas humanas? O espírito racionalista dos teólogos que elaboraram as versões definitivas da Bíblia não podiam admitir algo assim. Era necessário dar uma explicação simples e compreensível, adequada ao povo… Por isso, a partir do século IV, em função de uma noção mais espiritual da natureza angélica, a literatura patrística começou a ver os “filhos de Deus” como a linhagem piedosa de Set, (que são espiritualmente os filhos de Deus) e as “filhas dos homens” como a descendência depravada de Caim. Também, posteriormente, os autores judeus interpretaram os “filhos de Deus” como filhos de príncipes e nobres. Assim, tanto os autores judeus como os cristãos evitaram o significado obvio: Que alguma barreira entre os filhos de Deus e os filhos dos homens foi rompida, não por orgulho ou inveja, mas por desejo sexual…

Entretanto, a queda dos anjos não é o único tema tratado nestes livros, muitos conceitos cristãos tem sua primeira ocorrência em Enoque, particularmente o do Filho do Homem que se torna O Eleito e atua como juiz escatológico. O Juízo Final – um desdobramento de Mateus (25,31-3), que inclui a separação de bodes e ovelhas e o julgamento por Deus – parece derivar das Similitudes de Enoch. O abismo de Fogo, um reino infernal governado por Satanail e os anjos rebeldes, aparece primeiro em II Enoch. Apesar de sua comprovada influência, e de Enoch ter sido considerado um texto sagrado por teólogos importantes durante centenas de anos, quando o cânone foi definido com rigor, os teólogos responsáveis pela definição julgaram inaceitáveis algumas seções de Enoch, de modo que este foi deixado de fora.

Por Shirley Massapust


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