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Satanismo e Luciferianismo

A Teoria Setiana do Universo

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por Michael Aquino, Temple of Set

Antes que alguém possa tomar uma decisão inteligente sobre o que fazer com sua existência, é preciso saber o que é essa existência e em que ambiente ela está situada. Muitas das principais religiões e filosofias da história surgiram justamente para lidar com esse problema. Embora algumas das explicações propostas sejam atraentes do ponto de vista estético e/ou emocional e tenham angariado muitos adeptos, isso por si só não torna nenhuma delas verdadeira – apenas populares.

O Temple of Set propõe sua solução após ter considerado e rejeitado as alternativas como falsas, total ou parcialmente. Consideramos nossa posição como a única correta – não porque sejamos intolerantes à concorrência ou à comparação, mas porque não aceitamos a noção de “verdades” coexistentes, porém incompatíveis. Se houver uma falácia evidente ou um fator desconhecido na verdade como a entendemos, então devemos enfrentá-lo e, se possível, corrigi-lo – ou ao menos identificar a falácia ou fator e qualificar a verdade declarada de acordo. Mas dizer “a nossa é apenas uma abordagem, e muitas outras são igualmente boas” é uma evasão de responsabilidade e reduziria o conceito de “verdade” a mero capricho [ou popularidade].

O Universo (com U maiúsculo) é definido como a totalidade da existência, tanto conhecida quanto desconhecida pela humanidade. A maioria das pessoas entende esse termo como a identificação das vastas extensões do espaço e das massas de matéria e energia animadas e inanimadas que o ocupam. O Temple of Set define esse conceito como o universo objetivo (com “u” minúsculo).

A questão da origem do universo objetivo é crucial para as religiões convencionais e para a maioria das filosofias. Existem duas alternativas:

(1) Algo o criou em um momento no tempo, ou
(2) Ele sempre existiu, portanto não foi/é necessário um agente criador.

Como infinitos de qualquer coisa só podem ser concebidos teoricamente – e com grande dificuldade –, a maioria das pessoas tende à alternativa #1. Se essa alternativa for verdadeira, então há mais no Universo do que o universo objetivo. Deve haver também um meio para a existência de uma inteligência Universal – um meio que não é matéria, nem energia, nem espaço vazio. Esse meio, por sua vez, deve se estender infinitamente ao passado; caso contrário, ele também exigiria um criador – um “deus superior” – num ponto anterior no tempo.

Assim, ambas as alternativas requerem, em última análise, que o tempo se estenda para trás infinitamente. Da mesma forma, a existência do universo objetivo exige a extensão do tempo infinitamente para o futuro. O tempo deixa de existir apenas quando aquilo que ele existe para medir – o universo objetivo inteiro – deixa de existir.

As alternativas #1 e #2 são mutuamente exclusivas. Qual delas está correta – e por quê?

Selecionando a #2, os ateus dizem que não há nada além do universo objetivo; eles acreditam que ele é de fato o Universo. Sua justificativa é simples: não veem nenhuma evidência convincente de algo que não seja matéria, energia ou espaço. Portanto, presumem que nada mais existe.

Os agnósticos diferem dos ateus porque, teoricamente, adiam o julgamento, permanecendo abertos à possibilidade de que novos dados possam surgir e resolver a questão de uma forma ou de outra. Em contraste, o ateu acredita que a questão pode ser resolvida adequadamente com o nível atual do conhecimento humano.

Os adeptos de religiões escolhem a alternativa #1. Por uma razão ou outra, acreditam que têm as evidências necessárias. A grande maioria, é claro, não pensou a questão com qualquer grau de precisão. Em vez disso, tomou sua decisão como um ato de fé (confiança não fundamentada e não racional) na sabedoria de outros cujas opiniões consideram confiáveis.

É perda de tempo discutir filosofia com alguém que baseia sua posição em artigos de fé, pois ele não os questionará enquanto se agarrar a eles. Primeiro, ele precisa admitir a possibilidade de que sua fé possa ser desafiada em bases racionais e factuais antes que qualquer diálogo significativo possa ocorrer. A maioria das pessoas que se sentem confortáveis com a fé desde o início reluta em fazer isso. O máximo que se pode fazer em um diálogo com alguém baseado na fé é discutir questões menores com ele, lembrando que ele aceitará ou interpretará a conversa apenas dentro do contexto dessa fé.

Líderes e professores religiosos, partindo do pressuposto de que são pessoas sinceras e inteligentes, ou sentem que têm evidência empírica suficiente da existência de uma ou mais divindades ou, na ausência de tais evidências, admitem que sua posição é um ato irracional de fé.

Talvez o exemplo mais famoso da primeira atitude seja Tomás de Aquino, que tentou provar a existência necessária de Deus por meio da lógica aristotélica. No entanto, como Aquino estava “raciocinando” em direção a uma conclusão dogmaticamente predeterminada, boa parte de sua “lógica” é grosseira e propagandística – falhando, por exemplo, em abordar os aspectos mencionados anteriormente do conceito de tempo. Aquino simplesmente assumiu que o universo objetivo “tinha” de ter sido criado em algum momento; daí a existência anterior de um “criador” (ou seja, Deus) foi “provada”.

Críticos de Aquino, como William de Occam [famoso pela “navalha de Occam”] e Roger Bacon, apontaram as falhas e lacunas da “lógica” de Aquino. Ao mesmo tempo, como europeus inclinados emocionalmente a algum tipo de visão cristã da existência, procuraram uma saída do problema simplesmente aceitando a cosmologia cristã como um ato assumidamente irracional de fé – assim como uma criança, ao descobrir que as “provas” da existência do Papai Noel foram forjadas pelos pais, pode dizer: “Não me importo, acredito nele mesmo assim.”

Uma vez aceita a fé irracional como ponto de partida válido, é claro, a “verdade” segundo qualquer religião torna-se uma função da obediência aos indivíduos ou livros cuja autoridade para definir essa fé é geralmente aceita.

A verdadeira filosofia difere da fé ou da ideologia no sentido de que a filosofia é uma busca desinteressada pela verdade, em que o resultado da busca não está predeterminado pelo dogma.

Embora tenham existido muitas tentativas pós-Aquino de demonstrar logicamente a existência de Deus, todas acabaram sofrendo de uma ou mais das mesmas falácias. A religião atual, tanto cristã quanto não cristã, abandonou de fato esse esforço e reconheceu tacitamente a necessidade da fé não racional. O resultado é uma variedade de religiões que têm substância apenas porque (a) ganharam prestígio por existirem há muito tempo [“Elas existem há séculos, então devem saber do que estão falando!”] e/ou (b) concentram a atenção em ações práticas – como prédios imponentes, cerimônias, caridade, trabalho social etc. – em vez de em seus princípios centrais.

O Temple of Set não se sente confortável com uma posição que, por mais funcionais que sejam seus desdobramentos, é, no fim das contas, fundada sobre areia.

Aspirantes ao Templo vêm até nós porque não aceitam o pressuposto de que a curiosidade racional deva se limitar ao universo objetivo.

Eles também têm confiança na capacidade da inteligência humana superior de ultrapassar as fronteiras do conhecimento científico (ou seja, estritamente do universo objetivo) e alcançar ao menos alguns aspectos do Universo sem ter que recorrer à fantasia irracional ou à fé. Além disso, consideram essa busca importante, até mesmo crucial, pois sentem que a razão última e essencial por trás da existência da humanidade – ou pelo menos de uma certa qualidade única na humanidade – só pode ser encontrada por meio de tal exploração. Rejeitam a postura indecisa do agnóstico como um ato de preguiça mental, sustentando que há informação suficiente disponível para começar – senão concluir de imediato – essa busca.

A Psique

O que é que impulsionou tantos indivíduos curiosos e insatisfeitos ao longo da história a tentar romper os limites perceptivos impostos pela alternativa #2?

A resposta não está nos argumentos frágeis e tolos da religião convencional, mas sim no fenômeno real e observável da própria humanidade. Percebemos algo em nosso próprio estado de ser que não parece explicável em termos do universo objetivo. Não nos satisfazemos com a ideia de que podemos ser explicados ou definidos apenas em termos de equações eletroquímicas, mesmo que sejam muito elaboradas. Sentimos que há, dentro de nós, algo mais – algo único em cada ser e, em última instância, mais essencial do que nossa substância física objetiva.

Identificado pela primeira vez como ba pelos antigos egípcios, tornou-se a psyche dos gregos e, eventualmente, a “alma” na linguagem moderna. Do Webster’s International Dictionary:

ba: A alma viva, imortal, eterna e, em última instância, divina na crença religiosa egípcia, representada como um pássaro com cabeça humana e que se acreditava deixar o corpo na morte e retornar eventualmente para revivificá-lo, se este fosse preservado.

alma: (1) A essência ou substância imaterial, princípio animador ou causa atuante da vida ou da vida individual. (2a) O princípio psíquico ou espiritual em geral, compartilhado ou incorporado em seres humanos individuais ou em todos os seres dotados de natureza racional e espiritual. (2b) A natureza psíquica ou espiritual do universo relacionada ao mundo físico como a alma humana ao corpo humano…

Note-se a conexão presumida ou postulada entre a alma humana e o Universo. Essa conexão também foi referida pelo termo logos. Novamente, do Webster’s:

logos: (1) Razão ou a manifestação da razão, concebida na filosofia grega antiga como constituindo o princípio controlador no universo: (a) Um princípio de movimento e regulação no universo juntamente com um elemento no homem por meio do qual, segundo Heráclito, esse princípio é percebido. (b) Um princípio gerador ou governante cósmico, segundo os estóicos, que é imanente e ativo em toda a realidade e que permeia toda a realidade. (c) Um princípio que, segundo Filon, é intermediário entre a realidade divina/última e o mundo sensível…

Ateus e agnósticos – incluindo subespécies como positivistas lógicos, materialistas, humanistas etc. – sentem-se desconfortáveis com as conotações religiosas do termo “alma”. Eles geralmente se referem ao mesmo fenômeno como “eu”, “ego”, “mente” ou “consciência”. No Temple of Set, todos esses termos são usados mais ou menos de forma intercambiável, com distinções feitas caso a caso, quando necessário.

Essencial à noção de alma é a sensação de que ela é de alguma forma estranha ao corpo físico – como um passageiro dentro de um veículo, por assim dizer. É o “você essencial” que, por meio da maquinaria de seu cérebro físico, move seus braços e pernas, vê com seus olhos, ouve com seus ouvidos e interage de outras formas com o universo objetivo. Se você perde 20% do seu corpo em um acidente, no entanto, não perde 20% de sua alma.

Seria ela simplesmente um subproduto estranho do funcionamento natural do cérebro – uma ilusão ou delírio causado incidentalmente pelas interações da energia eletroquímica? É verdade que, quando há danos no cérebro, a consciência se fragmenta. Isso também acontece quando o cérebro se priva [por meio do sono] ou é privado [por privação sensorial] do contato com o universo objetivo.

Muitos esforços para provar que a alma não é uma mera função do cérebro material centraram-se em ideias como reencarnação, PES, experiências fora do corpo (“viagens astrais”), assombrações e semelhantes. A ideia é demonstrar que a consciência pode existir – e de fato existe – separada do cérebro físico. Esses esforços variam dos sérios e sofisticados ao ridículo.

O medo da morte motiva muitos desses esforços e colore seus resultados; buscamos a garantia de que nosso ser não desaparecerá com a morte e a decomposição do nosso corpo físico. Mas a busca também pode ser motivada por uma curiosidade honesta, e esse é o raison d’être do Temple of Set.

A chave que aplicamos a esse problema é o que Eric Hoffer chamou de “a não naturalidade da natureza humana”.  A alma ou o self não se comporta como se fosse apenas a “soma total” das capacidades sensoriais e manipulativas do cérebro, combinando e recombinando informações recebidas como se fosse um computador eletrônico “orgânico”. Ela tem um senso de identidade, um senso de unicidade, um senso de distância e diferenciação em relação a tudo o mais que existe. Possui características que são algo mais que instintivas e algo menos que lógicas; essas são chamadas de “emoções”.

Mais significativo ainda, talvez, são as prerrogativas e disposições criativas da alma. Não pensamos apenas para sobreviver ou reagir a estímulos externos, apesar do que propõe B.F. Skinner. Pensamos de forma criativa, espontânea, abstrata e estética. Concebemos, projetamos e construímos conceitos, argumentos, processos e objetos não naturais. E somos capazes de distinguir entre o natural e o não natural – algo que seria logicamente impossível se a própria consciência não pudesse estender-se além do natural.

Para demonstrar essa capacidade a si mesmo, considere algo tão simples quanto uma faixa de Möbius. Sua consciência se revolta diante de um fenômeno que ela percebe como “contra as leis”. Na verdade, os vários fenômenos de Möbius não são “contra as leis”; existe todo um campo da matemática – a topologia – dedicado às propriedades das configurações geométricas submetidas a diversas transformações. Mas aqui não é o fenômeno em si que importa, e sim sua reação a ele. A repulsa que você sente é uma manifestação de algo dentro de você que possui o poder de ver a ordem do universo objetivo de fora dele.

O filósofo Immanuel Kant abordou esse poder da alma de um ângulo um pouco diferente. Ele o chamou de a capacidade humana de atribuir significado aos fenômenos naturais – de reconhecer, apreciar, definir, categorizar, hierarquizar e, de outras maneiras, determinar a importância, relevância e significado de um evento ou objeto na natureza. “Os objetos da experiência”, disse ele, “nunca são dados em si mesmos, mas apenas na experiência, e não existem fora dela.”

Schopenhauer foi um passo além, sustentando que a vontade individual é a fonte da própria causalidade, da qual espaço, substância e tempo são meras derivações.

Friedrich Nietzsche discutiu esse poder em termos da capacidade do intelecto superior de construir horizontes por si mesmo além da mera recombinação do conhecido. Platão definiu essa qualidade suprarracional da mente como nóesis e sustentou que ela era capaz de perceber os princípios eternos e transcendentes de toda existência, além mesmo do raciocínio mais rigoroso (diánoia): as Formas ou Princípios Primeiros.

Esse poder da alma é, portanto, ao mesmo tempo apreensivo [alcançando além dos limites do universo objetivo] e criativo [permitindo gerar significado, iniciar a existência]. Esse aspecto criativo pode ser chamado de universo subjetivo para distingui-lo do universo objetivo.

O universo subjetivo e o universo objetivo contêm elementos mutuamente incompatíveis de definição, mas também se fundem um no outro. Por exemplo, usamos o universo subjetivo para atribuir significado ao universo objetivo, e regularmente dependemos do nosso conhecimento dos fenômenos no universo objetivo para nos fornecer “blocos de construção” para criar objetos no subjetivo. [Muitas “criaturas de fantasia”, por exemplo, podem ser decompostas em “partes” de animais naturais.]

A capacidade de qualquer intelecto de gerar e operar o universo subjetivo não é automática [além do nível da imaginação comum]. Ela deve ser deliberadamente aprendida e exercitada. A experiência de tal perspectiva e poder pode ser estimulante e empolgante; mais frequentemente – para aqueles despreparados para a sensação e psicologicamente incapazes de aceitá-la – ela tem sido assustadora.

O ser humano não gosta da ideia de que ele não se encaixa total e completamente no esquema natural das coisas. Assim, buscou um aliado em um “Deus” personalizado que o criou como um projeto natural exclusivo [por exemplo, o homem pré-“queda” no Jardim do Éden]. Inventou códigos religiosos e sociais que lhe dão um senso de conformidade com a ordem natural do universo objetivo. Construiu catedrais e monumentos para reforçar e reafirmar esse senso, e até fez com que seu corpo morto fosse enterrado com rituais que comemoram sua inclusão nessa ordem. Esses próprios atos, ironicamente, revelam seu temor secreto de que seu eu consciente – sua alma – não pertença a ela.

Quando aquela parte de si que pertence – seu cérebro e corpo físicos – se separa de sua consciência e permanece apenas como um componente do universo objetivo [pela morte física], ele teme que sua consciência, ao contrário de sua “carcaça” física, não obedeça à lei de conservação da matéria e da energia do universo objetivo. Ele teme que, em vez disso, ela deixe de existir.

Enquanto teme a morte da autoconsciência, ironicamente, o homem também buscou puni-la por sua existência. Ele a mitologizou como demônios ou, na tradição judaico-cristã ocidental, como o próprio Diabo.  Tentou expulsá-la da mente por meio de coerção psicológica , assim como por castigos físicos que variam do simples jejum às torturas da Inquisição. E, é claro, mais recentemente, tentou fingir que ela não existe – que qualquer atividade da alma que não esteja em harmonia com o universo objetivo é simplesmente doença: loucura e enfermidade mental.

Ainda assim, a alma persiste. Sobreviveu a todas as tentativas de destruí-la, distorcê-la, disfarçá-la ou sublimá-la – pois nenhuma dessas tentativas jamais conseguiu tocá-la de fato. No máximo, conseguiram danificar apenas o meio físico de sua expressão.

A Imortalidade da Psique
Talvez a contribuição mais importante da Igreja de Satã original (1966–1975 EC) tenha sido o foco e a glorificação da psique, mesmo que sua ambição inicial fosse minimizar esse conceito em favor da mera gratificação carnal.

À medida que nós, satanistas, explorávamos as implicações das declarações iniciais e dramáticas de Anton LaVey na Bíblia Satânica, tornou-se gradualmente evidente que qualquer foco em si mesmo pressupõe a separação desse “si” de todo o resto. Descobre-se que a carne é composta de substâncias naturais, e que a maioria de nossos processos de pensamento em níveis mais baixos – o que Platão classificaria como pístis e eikasía – são, de modo semelhante, pouco mais que respostas condicionadas a estímulos externos. À medida que o satanista prosseguia em sua busca pelo “algo que fosse exclusivamente seu”, era forçado a uma introspecção cada vez mais complexa, resultando, por fim, em uma crise filosófica e metafísica que só seria resolvida na filosofia mais precisa do Temple of Set.

No Templo, a psique tornou-se o foco assumido da busca iniciática do setiano. A mente lógica e o corpo carnal não foram desprezados, mas vistos como dispositivos interpretativos e comunicativos – tanto entre a psique e sua existência no universo material quanto entre diversas psiques (isto é, entre Iniciados individuais).

Subsequentemente, isso levou a psique iniciada a confrontar as implicações de uma existência radicalmente distinta da material. A existência da psique como algo não produto de forças naturais – criada e energizada por Set – exige a compreensão de seu futuro além da interface finita com o mundo material/natural.

Historicamente, a questão da psique foi gradualmente simplificada ao debate “só esta vida” (this-life-only, SEV) versus “vida após a morte” (VAM). À medida que esse debate avançava por muitas eras e mitologias, essas duas alternativas tenderam a tornar-se mutuamente exclusivas.

Os defensores da SEV negaram com paixão que algo da “vida presente” possa continuar após a destruição da carcaça carnal, embora não tenham prova positiva da extinção simultânea da psique. Como não conseguem mais detectar sua presença por meio de suas interfaces carnais com a existência material (os cinco sentidos), presumem que ela não mais exista. Quando desafiados sobre essa extrapolação da lógica, respondem que o ônus da prova cabe ao desafiante… provar que a psique pós-morte existe estabelecendo um canal de comunicação material/de cinco sentidos com ela.

A maioria dos esforços públicos para fazer exatamente isso tem sido, previsivelmente, no melhor dos casos, ridícula, e no pior, fraudulenta: sessões espíritas, fantasias de reencarnação e bobagens de “mestres ascensionados”. Os materialistas sentiram-se seguros ridicularizando tais artifícios, e não se pode culpá-los inteiramente por alegar que sua posição foi assim validada por omissão. Por critérios científicos e lógicos estritos, no entanto, ela não foi.

No outro extremo estão os defensores da VAM. Estes enfrentaram o interessante problema de tentar construir um argumento convincente e atrativo para algo cuja existência não podem demonstrar a nenhum dos cinco sentidos. Em vez de encarar esse desafio diretamente [como o Temple of Set o faz], preferiram o caminho mais fácil e venderam seu produto atacando a concorrência da SEV. Apresentaram “esta vida” apenas como um teste de obediência, no qual o indivíduo seria julgado no ponto de transição para a VAM – a qual consideravam muito mais importante por ser eterna.

Como os humanos não iniciados temem o desconhecido e preferem estar seguros a se arrepender, os comerciantes da VAM puderam usar o medo e as ameaças como dispositivos de propaganda eficazes. Embora estejam, em efeito, “vendendo um produto totalmente indetectável e não verificável” pelo maior preço que o cliente pode conceber pagar (uma abstenção vitalícia de vários prazeres), eles foram geralmente bem-sucedidos – como atesta o domínio ininterrupto das religiões VAM, do osirianismo ao cristianismo, sobre a maior parte da humanidade em toda a sua história registrada.

Dentro da tradição cultural ocidental, raramente se percebe que suas duas religiões principais – o Cristianismo e o Judaísmo – estão, na verdade, em extremos opostos nesse assunto. O Cristianismo, em todas as suas muitas formas, sustenta a VAM como justificativa para a abstenção nesta vida. Já o Judaísmo insiste na SEV e rejeita completamente qualquer justificação para o comportamento humano que não seja baseada nas instruções diretas de YHVH aos humanos vivos.

Comenta Arthur Schopenhauer em Parega #I, 13:

A religião judaica propriamente dita, como descrita e ensinada no Gênesis e em todos os livros históricos até o fim das Crônicas, é a mais grosseira de todas as religiões porque é a única que não tem uma teoria de imortalidade – nem mesmo um traço disso. Todo rei, herói ou profeta é sepultado, quando morre, junto aos seus pais, e ponto final; nenhum sinal de qualquer existência após a morte; de fato, como se intencionalmente, todo pensamento nesse sentido parece ter sido removido.

Schopenhauer está apenas parcialmente certo. Os antigos hebreus não faziam distinção entre as almas humanas e a força animadora comum a todos os animais (nephesh). Embora se pensasse que parte dessa força animadora sobrevivia à destruição do corpo, ela era vista com terror supersticioso e referida de forma ambígua pelos termos elohim e rephaim. Por volta do século II a.C., a doutrina hebraica passou a incluir a revivificação do corpo material, mas os teólogos hebreus nunca estenderam esse princípio ao conceito pitagórico-platônico de uma psique sobrevivente de forma independente.

Não surpreendentemente, os primeiros cristãos continuaram essa tradição judaica da revivificação corpórea, utilizando o termo grego psykhē para significar algo muito semelhante ao nephesh hebraico. Em Mateus 10:28, onde a alma é mencionada como distinta do corpo, sua reunião póstuma é logo sugerida. O exemplo mais conclusivo dessa doutrina, claro, é a própria ressurreição material de Jesus [como em Lucas 24:36–43]; mas, à época de Paulo, o repúdio que os gregos mais sofisticados tinham por essa “animação de cadáveres” (anastasis nekron) levou o apóstolo a modificar os ensinamentos cristãos na direção do pitagorismo.

Paulo estava ciente – e presumivelmente buscava superar – o desafio representado pelo cristianismo gnóstico e hermético, uma fusão do cristianismo básico com vários mistérios egípcios e helênicos.

Em I Coríntios 15:35 e II Coríntios 5:1–2, Paulo oferece uma mistura de ideias hebraicas e pitagóricas, segundo a qual a alma póstuma recebe um “corpo espiritual” (sōma pneumatikon) que, no entanto, ainda requer uma forma corporal. Apesar dos esforços de Paulo, o cristianismo nunca conseguiu romper com a noção de reanimação do cadáver original, o que ao menos tem servido de matéria-prima para produtores de filmes de terror.

Como os seres humanos estão acostumados a considerar o judaísmo e o cristianismo como variações ligeiras de um único tema (monoteísmo com a humanidade como escrava ou mascote), esse abismo real entre os dois sistemas de crença geralmente passou despercebido, deixando cristãos e judeus algo confusos quanto ao motivo de não se darem muito bem entre si. Tendem a se perseguir mutuamente por todo tipo de razão estúpida, século após século – quando não estão temporariamente distraídos por cruzadas contra os “infiéis” muçulmanos ou campanhas de extermínio contra “pagãos” astecas e incas.

O antissemitismo grosseiro da Alemanha nazista é notório, mas o que não é tão conhecido é que suas raízes podem ser encontradas em um comentário muito mais sutil sobre Schopenhauer – feito por Dietrich Eckart e Alfred Rosenberg. Em 1919, Eckart escreveu:

Agora é evidente que um povo que nega completamente a existência da vida após a morte deve limitar todos os seus pensamentos e esforços ao mundo presente, à existência terrena; não tem outra escolha. Mas um povo só pode crescer com tal ênfase em assuntos mundanos se lhe faltar fundamentalmente qualquer necessidade de imortalidade, o que por sua vez só é possível se não houver nenhum traço de sentimento em seu caráter básico pelo eterno na humanidade. Onde quer que a alma se manifeste, por mais tenuemente que seja, segue-se necessariamente um senso de imortalidade. O indivíduo nem sempre está conscientemente ciente disso; de fato, há muitos que se recusam a compreendê-lo – que são tão ignorantes sobre o conceito de imortalidade que o denunciam habitualmente, mesmo enquanto suas ações altruístas mostram claramente que cada um deles sente a alma e, portanto, a eternidade dentro de si.

Embora o Cristianismo paulino tenha tentado apropriar-se do conceito pitagórico/platônico da “alma distinta dentro do corpo e, por fim, libertada dele”, a nova religião mostrou-se incapaz de sustentar esse conceito sem recorrer ao veículo conceitual do corpo. Representações artísticas cristãs do Paraíso pós-morte são invariavelmente estéreis e tediosas, enquanto as aventuras das almas perversas no Inferno são, geralmente, fantasias distorcidas e tortuosas caricaturando os prazeres mais desejáveis negados nesta vida. Vale lembrar que a promessa final de Cristo em sua Segunda Vinda era reunir todas as almas com seus corpos anteriores, para que voltassem a desfrutar de suas carcaças originais.

O conceito cristão de “Satanás”, sendo um espantalho grosseiro de tudo o que o Cristianismo desaprovava, acabou ficando tão “confuso ao contrário” quanto o próprio Cristianismo. Isso fica claro na Bíblia Satânica de Anton LaVey, onde se diz que Satanás representa o deleite pela vida carnal e o repúdio ao julgamento pós-morte. Como Anton plagiou de Might is Right, de Ragnar Redbeard:

A vida é o grande deleite – a morte, a grande abstenção. Portanto, aproveite ao máximo a vida – aqui e agora! Não existe Céu de glória radiante nem Inferno onde os pecadores assam. Aqui e agora é nosso dia de tormento! Aqui e agora é nosso dia de alegria!

Visto sob esse prisma, o satanismo inicial da Church of Satan era, na prática, uma forma de Judaísmo com um YHVH que deixava você fazer o que quisesse, em vez de um que era um sádico vingativo. No entanto, ambos os sistemas – o “bonzinho” (satânico) e o “cruel” (judaico) – chegavam a um impasse diante da morte. [Anton explicava as muitas decorações memento mori de sua casa como lembretes de que a morte está sempre por perto, e que, portanto, os satanistas deveriam tirar o máximo proveito da vida enquanto pudessem.]

No entanto, em outro trecho da Bíblia Satânica, Anton fez uma afirmação que, embora largamente negligenciada durante a existência da Church of Satan, é uma das mais cruciais de toda a sua filosofia:

Se uma pessoa foi vital durante toda a sua vida e lutou até o fim por sua existência terrena, é esse ego que se recusará a morrer, mesmo após a expiração da carne que o abrigava… É essa vitalidade que permitirá ao satanista espiar por trás da cortina da escuridão e da morte e permanecer atrelado à Terra.

Aqui, o conceito de vida de Anton ainda era o SEV comum ao Judaísmo e ao seu satanismo original. Ao desejar viver em vez de morrer, ele só conseguia conceber a imortalidade em termos de uma extensão da SEV pela força da vontade. Comparava isso à recusa de uma criança em ir dormir quando algo excitante ainda está acontecendo; nesse sentido, era uma negação de que pudesse haver qualquer tipo de vida para a psique além da “vida terrena”. “Ir para a cama” não era mover-se para outro modo de existência, mas simplesmente deixar de existir. O satanismo original de Anton combinava, assim, um “YHVH amigável” (Satanás) com a promessa de existência material eterna para a psique – desde que esta conseguisse projetar a força e a coesão de vontade necessárias para tal existência.

Como discuto extensamente em minha história da Church of Satan, Anton LaVey jamais conseguiu resolver o dilema da existência real de Satanás: ele era real ou apenas simbólico? Se fosse real, isso pareceria abrir a porta para todo o conceito cristão do universo. Se, por outro lado, fosse meramente simbólico, então não existia de fato como uma força autoconsciente e volitiva capaz de realizar os desejos ritualísticos e mágicos dos satanistas, ou sequer de se importar com a existência da Church of Satan. Nesse caso, a magia se reduziria a mero teatro, e a própria Igreja seria nada mais que um clube para psicodramas sombrios.

O Temple of Set resolveu esse dilema em 1975 EC ao afirmar a existência real de “Satanás” (como Set – a entidade original pré-judaico-cristã), ao mesmo tempo que retirava completamente o conceito de sua existência do cabo de guerra judaico-cristão.

A essência da psique, declarou Set no Livro da Manifestação Noturna (Book of Coming Forth by Night), é tal que sua existência não depende do material, nem está aprisionada nele para fins de testes ou tarefas. Pelo contrário, o corpo físico fornece um veículo através do qual a psique pode tornar-se consciente de si mesma e, então, alcançar os limites da sua existência consciente. [Esse processo é o que o Templo define pelo termo hieroglífico Xeper.] “Esta vida” pode ser comparada a um trampolim ou plataforma de lançamento rumo à autoconsciência e estado de Ser definitivos da psique.

Quanto a Set, ele não impõe sua vontade sobre os humanos na SEV nem os julga na VAM. Em vez disso, é compreendido como a fonte do potencial para Xeper em cada animal humano. Reconhecer esse potencial e tomar medidas para desenvolvê-lo (o que queremos dizer por “iniciação”) não é prerrogativa de Set – caso contrário, sua própria psique simplesmente substituiria a de cada ser autoconsciente.

Ao conceituar a existência da psique em um ambiente não físico, reflitamos primeiro sobre a sabedoria da antiga China. O Segredo da Flor de Ouro (T’ai I Chin Hua Tsung Chih)  é o principal texto filosófico – originado na tradição oral – da religião do Elixir Dourado da Vida (Chin Tan Chiao), que se desenvolveu durante a Dinastia T’ang, no século VIII EC. Seu fundador reputado é o filósofo taoísta Lu Yen, discípulo do Mestre Yin-hsi (para quem se acredita que Lao Tsé escreveu o famoso Tao Te Ching).

Richard Wilhelm (tradutor da edição em inglês) resume o argumento da Flor de Ouro da seguinte forma:

O Tao indivisível, o Grande Um, dá origem a dois princípios opostos da realidade: Trevas e Luz, yin e yang. Inicialmente são vistos apenas como forças da natureza externas ao homem. Posteriormente, derivam-se delas as polaridades sexuais e outras.

Do yin vem K’un, o princípio feminino receptivo; do yang vem Ch’ien, o princípio masculino criativo. Do yin vem ming (vida); do yang, hsing (essência).

Cada indivíduo contém uma mônada central que, no momento da concepção, divide-se em vida e essência (ming e hsing). Estes dois são princípios superindividuais e podem ser relacionados, respectivamente, a eros e logos.

Na existência corporal pessoal do indivíduo, eles são representados por outras duas polaridades: a alma p’o (ou anima) e a alma hun (ou animus). Durante toda a vida do indivíduo, essas duas estão em conflito, cada uma buscando a supremacia.

Na morte, elas se separam e seguem caminhos distintos. A anima desce à Terra como kuei, um ser espectral. A animus ascende e torna-se shen, um espírito revelador ou deus. Shen pode, com o tempo, retornar ao Tao.

Se as forças da vida fluem para baixo – isto é, sem impedimento rumo ao mundo exterior –, a anima triunfa sobre a animus; nenhum “corpo espiritual” ou “Flor de Ouro” se desenvolve, e, na morte, o ego se perde.

Se, contudo, as forças da vida são conservadas e feitas “subir”, a animus triunfa e o ego persiste após a morte, atingindo o estado de shen.

Essa iluminação não estava limitada ao Oriente. Também foi alcançada pelos iniciados do mundo ocidental. Como tão cuidadosamente ilustrado em Her-Bak, esse era um dos segredos centrais dos antigos sacerdócios egípcios:

O que é a vida? É uma forma da presença divina. É o poder, imanente nas coisas criadas, de transformar-se através de sucessivas destruições de forma até que o espírito ou força ativadora do fluxo vital original seja libertado. Esse poder reside na própria natureza das coisas.

A destruição sucessiva de formas, as metamorfoses, pelo fogo divino com renascimento de formas novas e vivas é uma expressão da consciência. O objetivo espiritual de toda vida humana é atingir um estado de consciência independente das circunstâncias corporais.

O que acabo de dizer refere-se ao espírito vivente concedido ao homem já vivificado, como todo ser vivo, por uma alma rudimentar, que faz desse homem uma criatura superior ao reino dos homens-animais. Aquele que reconhece o sentido divino da vida sabe que o conhecimento tem apenas um objetivo: atingir as etapas sucessivas que o libertem do perecível.

Pois as coisas morrem apenas em seu corpo; o espírito, a Palavra divina, retorna à sua fonte e não morre. Infeliz é o Ka que não recupera sua alma.

Essa sabedoria egípcia sobreviveu à destruição da antiga Khem na forma da doutrina pitagórica/platônica da transmigração da psique, evidenciada pela anamnesis (lembrança inata):

SÓCRATES: Aqueles que contam isso são sacerdotes e sacerdotisas que se dedicam a explicar as funções que executam. Píndaro também fala disso, assim como muitos outros poetas divinamente inspirados. O que dizem é o seguinte – veja se você acha que estão dizendo a verdade.

Dizem que a alma do homem é imortal. Em um momento ela chega a um fim – o que se chama morte – e em outro nasce novamente, mas nunca é finalmente exterminada. Por isso, o homem deve viver todos os seus dias da forma mais justa possível.

Pois àqueles de quem Perséfone recebe absolvição da antiga culpa, no nono ano ela devolve suas almas à luz do Sol.
Desses surgem nobres reis e os rápidos na força, os maiores em sabedoria,
E pelo resto dos tempos são chamados de heróis e santificados pelos homens.

Assim, a alma, sendo imortal e tendo nascido muitas vezes, e tendo visto todas as coisas tanto aqui quanto no outro mundo, aprendeu tudo o que existe.

Portanto, não devemos nos surpreender se ela pode relembrar o conhecimento da virtude ou qualquer outra coisa que, como vemos, ela já possuía. Toda a natureza é afim, e a alma aprendeu tudo; assim, quando um homem recorda uma única peça de conhecimento – “aprende”, na linguagem comum – não há razão para que não descubra o restante, se mantiver o ânimo e não se cansar da busca, pois buscar e aprender são, na verdade, nada além de recordar. – Platão, Mênon

Quando a maioria das pessoas pensa em “imortalidade”, imagina uma simples continuação de suas percepções e impressões conscientes imediatas. Ou seja, os “reforços” momento a momento que todos experimentamos diariamente e que – por serem “não-eu” – formam continuamente uma espécie de parede de sustentação que cerca (e, assim, “define”) aquela sensação amorfa que costumamos chamar de “eu”.

É esse “eu” que a maioria teme perder no evento da morte corporal. Simplesmente não sabe de que outra forma poderia perceber sua própria existência. Ao remover os “golpes” de reforço vindos do universo material externo, teme-se que a “sensação amorfa” evapore no nada – como ao entrar em anestesia geral (que também, embora temporariamente, “remove todos os estímulos”).

O Iniciado é desafiado a encontrar, nas palavras do Dr. Raghavan Iyer:

… não o eu ilusório ou falso ego que meramente reage a estímulos externos. Ao contrário, há aquele Olho da Sabedoria em cada pessoa que, no sono profundo, está plenamente desperto e que possui uma consciência translúcida de si mesmo como luz pura e primordial.

Isso é realizado por meio do pensamento reflexivo e não reativo. Assim, o indivíduo torna-se consciente de seu eu autêntico (psique, alma); e ao ativá-lo como o locus de sua consciência, passa a observar os fenômenos a partir dessa mesma profundidade. Em outras palavras, o eu superficial observa a partir de seu nível e enxerga os eventos naturais – como prazer ou dor física, céu azul, telefones tocando, tempo definido por relógios e calendários, e assim por diante. Já o eu essencial ou verdadeiro existe como um neter e, ao olhar para fora, vê um universo não das obras de outros neteru, mas desses próprios neteru. Uma “máquina” vê outras “máquinas”; um “criador/operador” vê outros “criadores/operadores”.

A anamnesis, ou “conhecimento rememorado”, experimentada pelo escravo no Mênon, talvez seja mais precisamente descrita como a mente superficial estendendo-se até a mente essencial em busca de fragmentos de sua sabedoria imortal e eterna. Mas isso é semelhante a alcançar uma brasa em uma fogueira acesa. É desconfortável fazê-lo, e o resultado só pode ser mantido por um breve momento sem causar mais desconforto.

O eu superficial, que por meio dos “golpes” materiais constantemente se tranquiliza de que é o único eu, é abalado pela exposição à sua falsidade, à sua nulidade. Ele recua diante de tais “encontros próximos”, descartando-os como “ilusões”, “fantasias”, “imaginação” etc., e apressa-se em reconstruir sua fortaleza de “paredes” feitas de sensações materiais. [O medo sentido pelo eu superficial diante de ameaças à sua autenticidade resulta, entre outras coisas, na agressividade do neoeticismo. É um axioma dos neocéticos que o eu superficial do estímulo/resposta é – e deve ser – o único eu.]

A imortalidade do eu é. Sua capacidade de alinhar sua consciência com seu neter, em vez de com seu eu superficial, animal, ilusório, é Xeper.

Essas antigas chaves iniciáticas da imortalidade foram energicamente atacadas e suprimidas pelo Cristianismo, pois essa religião cruel percebeu corretamente que o medo da morte era uma das armas mais poderosas para escravizar a humanidade. Era essencial que a morte fosse ensinada como algo horrível e definitivo, do qual a única fuga seria a rendição a Cristo – que, na prática, significava rendição às igrejas cristãs.

Aquelas áreas da Europa não cristianizadas, que escaparam ao menos temporariamente da dominação dessa propaganda paralisante, continuaram a preservar a verdade. Em For Freedom Destined , o Dr. Franz Winkler observa:

Nos tempos antigos, os segredos da verdadeira natureza humana, e das forças que determinam seu destino, eram contemplados nas grandes universidades-templos do paganismo espalhadas por todo o mundo civilizado.

Embora os homens estivessem plenamente cientes do papel importante que a hereditariedade exerce na formação do organismo fisiológico e psicológico de um ser humano, não acreditavam que o núcleo mais íntimo do ser fosse o produto de forças meramente biológicas.

Esse núcleo interior, chamado pelos gregos de enteléquia ou daimon do homem, era creditado com qualidades únicas do indivíduo, distintas das características do corpo que habitava. O conceito de enteléquia correspondia, de modo aproximado, ao conceito judaico-cristão de uma alma imortal.

A maioria das crenças pagãs sustentava que a enteléquia humana nem começa nem termina com a vida na Terra. A “mortalidade” do homem referia-se apenas ao fato de que sua autoconsciência cessava com a morte do corpo. Os deuses imortais diferiam do homem mortal pela continuidade de sua consciência.

Como as ideias antigas sobre o mistério do nascimento não podem ser separadas das filosofias pagãs sobre a existência suprassensível da alma, certos conceitos geralmente aceitos na era pré-cristã merecem ser mencionados.

Segundo a teologia pagã, a consciência após a morte poderia atingir um de três níveis. O primeiro era o destino do homem comum: onírico, com quase completa ausência de memória e de identificação com o eu, chamado de Hades pelos gregos e Hel na mitologia germânica.

O segundo nível era acessível ao verdadeiro herói – aquele cujos atos de coragem e criatividade o distinguiam dos mortais comuns. Os gregos chamavam esse estado de Campos Elísios; os germânicos, Valhala.

O terceiro nível era alcançado por aqueles capazes de voar além dos limites estreitos da consciência terrena e, assim, trazer novos impulsos ao mundo. Ainda vivos em um corpo mortal, sua consciência já havia assumido status divino. Suas almas, após a morte, segundo a linguagem da mitologia, eram elevadas às estrelas.

A conquista da imortalidade do Ba ou psique é uma técnica que o indivíduo precisa “aprender”? Deve-se apressar para isso, com medo de que o corpo expire antes que o “truque” seja dominado? Muito pelo contrário. Como enfatiza o sábio em Her-Bak, essa imortalidade é inata em todos os seres conscientes. Você já a possui, pela simples evidência da consciência que lhe permite ler e compreender estas palavras.

Não é algo que o Temple of Set “conceda” a você; é algo que as igrejas convencionais tentaram ludibriá-lo a perder e que a ciência materialista negou, simplesmente porque se trata de um aspecto da existência que transcende a ciência – e, portanto, não está sujeito à “prova científica”.

Mais uma vez, das palavras de Winkler:

A aparência da vida como algo “sem sentido” provém basicamente do conceito materialista que o homem tem de si mesmo. Se sua natureza mais íntima fosse meramente biológica, a satisfação plena dos apetites e a aquisição de riquezas bastariam para a felicidade. Como isso não acontece, uma atmosfera de desesperança envolve nossa geração – especialmente nossa juventude.

Em uma sociedade afluente, onde todas as saídas materiais para tal frustração já se mostraram insuficientes, drogas, perversões e os estímulos do crime têm sido agora utilizados como meios desesperados de escapar do tédio intolerável.

Esforços bem-intencionados das autoridades para conter a onda de delinquência juvenil e vício em drogas terão, portanto, resultados escassos até que a seguinte verdade simples seja plenamente aceita por pais e educadores:

A felicidade, o amor e a compaixão são faculdades espirituais que, durante séculos de negligência e incompreensão, atrofiaram-se e enfraqueceram. A menos que sejam cuidadas e restauradas à saúde, o homem acabará por desesperar-se da vida e, eventualmente, a descartará em um suicídio em massa por destruição nuclear.

Mas como podemos cuidar daquilo que não compreendemos mais? A ciência moderna, admirável em suas conquistas no plano material, revelou-se ineficaz na compreensão de valores intangíveis. Essa limitação, embora livremente admitida por um pequeno número de cientistas verdadeiramente criativos, parece escapar ao intelectual médio.

E o fracasso em reconhecer essa limitação contribui para a ilusão de que a ciência natural, em sua forma atual, pode julgar a verdade religiosa ou espiritual.

Agravando ainda mais o dilema do homem moderno está o fato de que sua ilusão materialista sobre si mesmo não apenas o priva de sabedoria e felicidade, como também atua como modelo, segundo o qual ele tende a remodelar sua própria natureza. Consequentemente, surgem cada vez mais personalidades que pensam e agem virtualmente como robôs.

Não conhecem felicidade e não têm percepção de moralidade objetiva.

Tornamo-nos sábios na análise do mundo material, ampliamos o alcance de nossa percepção até o espaço sideral e até o mundo dentro do átomo.

Mas a experiência interior objetiva praticamente desapareceu por completo – e nos deixou tateando no escuro em busca da verdadeira imagem de nós mesmos.

É função do Temple of Set, como antes foi dos antigos sacerdócios egípcios, da Irmandade Pitagórica e da Academia Platônica, inspirar seus Iniciados a despertar para esse conhecimento que está latente em sua consciência e que precisa apenas ser reconhecido como tal. Winkler aponta com razão que, quanto mais iniciado se torna o indivíduo, mais ele pode experimentar essas prerrogativas de Xeper.

Mas isso é uma questão de perspectiva e proporção, não da qualidade da imortalidade em si. É extremamente fácil perceber a “vida” apenas como o funcionamento ativo do corpo material. Essa atitude cultiva uma doença da psique muito pior do que qualquer enfermidade física. Ela o insensibiliza à imortalidade inerente ao Dom de Set e o torna presa de todos aqueles que, no mundo profano, buscam controlar sua vida por meio de ameaças contra seu corpo.

O Príncipe das Trevas

Assim, a alma não natural – o “reflexo” personalizado e subjetivo do “Diabo” – já provou sua existência repetidamente, sob diversos contextos e aparências. Mas e quanto à Forma por trás de todas essas manifestações particularizadas – uma fonte criadora ou Princípio Primeiro cuja essência é compartilhada por todas as almas não naturais? E quanto à existência real de um “Diabo” único?

Durante sua existência entre 1966 e 1975 EC, a Church of Satan encarava sua própria mitologia com uma mistura de fervor emocional e incerteza intelectual. A Igreja surgiu não como resultado de uma necessidade filosoficamente deduzida, mas como um gesto espontâneo de exasperação e desprezo pela falsidade e hipocrisia da moralidade social e religiosa convencional. Era, assim, uma “declaração” – uma luva jogada ao chão – não contra a moralidade em si, mas contra a petulância humana em anunciar metas e padrões para si mesma que não tinha nem a capacidade nem a intenção de alcançar. Satanás, como o acusador e rebelde, era o símbolo inevitável dessa declaração.

Tendo rejeitado as opções convencionais, no entanto, a Igreja se viu na posição de ter que construir uma abordagem alternativa à moralidade. O resultado foi uma mistura imprecisa de hedonismo pessoal com uma atitude cínica e hobbesiana em relação ao restante da sociedade. Aqueles capazes de alcançar estilos de vida autoindulgentes – os satanistas – deveriam fazê-lo sem culpa; as pessoas comuns deveriam ser exploradas friamente, de acordo com seus comportamentos e padrões de pensamento conservadores e sem imaginação. [Cf. a doutrina da “escravidão natural” de Aristóteles.]

Quanto ao próprio Satanás, a Igreja começou explorando amplamente o glamour sinistro do Diabo, tanto em seus rituais iniciais quanto em sua cobertura na mídia. Na Bíblia Satânica , Anton LaVey propôs uma identificação simples do Diabo com todas e quaisquer formas de indulgência prazerosa. Junto com o deboche e a desconstrução do dogma religioso convencional, essa identificação constitui o tema principal do “Livro de Satanás (de autoria de Ragnar Redbeard)” e do “Livro de Lúcifer (de autoria de LaVey)”.

Mas então a Bíblia Satânica torna-se estranhamente vaga. Satanás em si nunca é realmente definido, a não ser como alegoria, termo semântico e/ou símbolo do eu criativo e subjetivo. Na página #62, afirma-se que “a maioria dos satanistas [acha que Satanás] representa apenas uma força da natureza – os poderes das trevas”. Em seguida, sugere-se que esses “poderes das trevas” são simplesmente forças naturais que nem a religião nem a ciência identificaram ou tentaram empregar. A Bíblia Satânica defende o uso dessas forças para a Indulgência – e é aí que a discussão sobre Satanás para. O leitor é então desviado do rumo, pois a linguagem dos rituais seguintes reconduz o Diabo a uma ou mais de suas molduras antropomórficas tradicionais.

O paradoxo do satanismo convencional era que o Diabo era entendido como uma força da natureza, sendo assim derivado e, em última análise, dependente de “Deus” de alguma forma. Ele pode fazer muito barulho, mas, na análise final, é parte da mesma maquinaria totalizante do Universo/Deus; até mesmo sua “rebelião” é parte do esquema universal divino. Os satanistas, portanto, podem até jogar um bom jogo – mas, no fim, o baralho está viciado contra eles. Eles não podem vencer.

A Church of Satan evitou esse paradoxo pela técnica simples de se recusar a confrontá-lo diretamente. Prevalecia uma atmosfera de ateísmo psicodramático. Satanás era cerimonialmente invocado com grande fervor, mas, em ambientes não cerimoniais, mesmo os satanistas mais convictos hesitavam em adotar uma posição clara sobre sua realidade. Se se referiam à sua existência, faziam-no de forma vaga, cautelosa e hipotética.

Essa atitude prevalecia em todos os níveis e ramos da Igreja. Mesmo Anton LaVey, ao falar do Diabo, recorria frequentemente a eufemismos como “o Homem lá de Baixo” ou falava de maneira mais críptica em “forças”, “vibrações”, “ângulos” e “atmosferas”.

Além do paradoxo do “baralho viciado”, havia um segundo motivo para essa relutância em lidar com a questão da existência do Diabo: o reconhecimento tácito de que o ateísmo é, em última análise, insustentável. Em todo o universo objetivo, existe uma aderência rígida a princípios de comportamento físico e natural; podemos chamar isso de “ordem” ou “consistência”. É por causa dessa consistência que conseguimos prever eventos nas ciências físicas, químicas, biológicas e matemáticas. Os cientistas chamam esses padrões preditivos de “leis”.

[Há uma escola filosófica chamada idealismo subjetivo ou voluntarista, que tenta definir a natureza como uma mera criação da mente, uma objetivação da vontade (Fichte, Schopenhauer), mas os idealistas subjetivos não conseguiram provar que o universo objetivo é de fato uma construção mental – pelas mesmas razões que desafiam a suposição de que ele não possui existência objetiva independente da percepção. Como seu predecessor Descartes, acabam por assumir que é preciso aceitar a evidência dos sentidos como confiável e, até certo ponto, impessoal.]

Recordando o fracasso de Tomás de Aquino em demonstrar a existência de Deus pela lógica – e a consequente recaída do Cristianismo em um sistema baseado na fé – os pensadores racionais da era do Iluminismo abordaram essa “ordem” do universo objetivo de duas maneiras significativas:

Primeiro, há o panteísmo (às vezes chamado de idealismo monista), cujo defensor mais notável foi o filósofo holandês Baruch Spinoza (1632–1677). De acordo com o panteísmo, Deus e o Universo são uma e a mesma substância; tudo que existe ou ocorre é um aspecto de Deus. Sendo inseparável e não independente do Universo, Deus não possui qualidades pessoais.
[Nota do Tradutor: Não se deve supor que Spinoza tenha pretendido isso como um “ataque” a Deus nos moldes de Nietzsche. A atitude recomendada por Spinoza para os seres humanos era o que ele chamava de “amor intelectual a Deus” – uma apreciação generalizada da natureza.]

A percepção de um sistema de ordem ou consistência “imposto” ao longo de todo o universo objetivo, no entanto, levou alguns filósofos a induzir a existência necessária de algo externo e superior a esse universo. Conceitualmente, o universo objetivo não pode “regular” ou “ordenar” a si mesmo. Assim surgiu outra escola de pensamento – o deísmo – cujo defensor mais conhecido foi Gottfried Wilhelm Leibniz (1646–1716), de Leipzig. Os deístas diferiam dos panteístas por postularem um Deus superior e independente, mas que, após criar o cosmos e suas leis, se abstém de interferir com eles. Esse Deus jamais intercede nos assuntos ou destinos humanos, esteja ou não interessado neles.

A Church of Satan adotou uma postura essencialmente deísta em relação à cosmologia: “Deus” provavelmente existe, mas como não se envolve com os assuntos humanos, não há razão para buscar sua aprovação. No entanto, ao abrir a porta para a existência de “Deus”, abre-se essa mesma porta para a existência de outra entidade inteligente, distinta do universo objetivo. Assim, o Diabo pode existir, teoricamente. Existe alguma evidência de que ele de fato exista?

Os filósofos do Iluminismo assumiram que a humanidade era compatível com, e portanto incluída na, ordem do universo objetivo. O comportamento humano era apenas mais uma ciência a ser explorada e dominada. [Não por acaso, o Iluminismo viu o nascimento das teorias do “contrato social” de governo, baseadas em especulações sobre a “ordem natural” da sociedade humana.] Mas, embora tais abordagens do contrato social tenham desfrutado de algum sucesso nos séculos seguintes, de modo algum demonstraram incorporar o poder criativo individual e a força da vontade.

No final do século XX, a maioria dos grandes experimentos sociais de contrato, quando não fracassados, havia se transformado em uma espécie de maquiavelismo tecnológico no qual o impulso individual, a liderança e a sorte determinavam o presente e o futuro.

Confrontamos, portanto, um cenário em que a natureza é cada vez mais exposta como uma máquina consistente e interconectada – e em que o intelecto humano se revela cada vez mais como algo que desafia todas as tentativas de ser relegado a uma função dessa máquina. A humanidade exibe um potencial de perspectiva intelectual externa e de criação voluntária que contrasta fortemente com tudo o mais que se conhece sobre este Universo.

Considere a imensa lacuna intelectual entre a humanidade e qualquer outra espécie do planeta. Basta entrar em uma grande biblioteca para sentir a dimensão desse abismo. Muito se fala sobre a inteligência relativamente alta de chimpanzés, golfinhos etc.; ainda assim, os mais inteligentes entre eles não chegam nem perto do mais primitivo exemplar do homo sapiens. Além disso, dizem os fisiologistas, mesmo os mais elevados níveis de inteligência humana foram alcançados usando apenas de 10 a 20% do potencial de raciocínio do cérebro humano. Como – e por que – a humanidade adquiriu esse potencial de inteligência tão desproporcional?

Embora os antropólogos consigam mapear os estágios da evolução humana pré-histórica até os limites dos dados disponíveis, permanecem incapazes de explicar por que todo esse fenômeno deveria ter ocorrido. O melhor que podem oferecer, repetidamente nos livros didáticos, é a ideia de que “o homem desenvolveu alta inteligência porque precisava dela para sobreviver”. Segundo essa teoria, os proto-humanos careciam de velocidade, força, dentes e garras de combate e outros atributos físicos essenciais à sobrevivência. Os mutantes com maior inteligência tendiam a sobreviver pela astúcia, sustentando seus descendentes, enquanto os grupos menos inteligentes desapareciam. Esse processo, repetido por cerca de cinco milhões de anos, teria resultado no homo sapiens – o protótipo do Cro-Magnon, Neandertal e Homem Moderno.

A brecha de escape dessa teoria é o fator tempo: cinco milhões de anos é tempo suficiente para que quase qualquer coisa evolua para quase qualquer outra. Além disso, o antropólogo argumentará que todo o processo de desenvolvimento dos primatas pode ser rastreado até origens cerca de cinquenta milhões de anos atrás. Portanto, a condição do Homem Moderno não seria tão surpreendente se não tivesse ocorrido “da noite para o dia”.

Tudo bem, mas existem pelo menos dois problemas com essa proposição…

O primeiro problema é que o proto-homem era apenas uma entre muitas espécies animais lutando pela sobrevivência ao longo dos milênios. Se o cérebro humano pôde evoluir por processos de seleção natural, por que os cérebros de outras criaturas não evoluíram de forma semelhante – ao menos um pouco? O fato é que os cérebros das demais criaturas permaneceram praticamente do mesmo tamanho, enquanto o do homem “evoluiu”. Isso é inconsistente, e vale lembrar que a marca registrada do universo objetivo – e a prova de Deus segundo os deístas – é justamente sua consistência. Pela lei das probabilidades – que se aplica à seleção natural como a qualquer outra coisa – deveria ter havido ao menos alguma outra espécie evoluindo intelectualmente até um nível parcialmente humano. Não houve.

O segundo problema surge da aplicação de uma das teorias fundamentais da seleção natural darwinista: a de que a natureza sempre escolhe o caminho mais fácil – que a seleção favorece a adaptação menos complexa em detrimento de alternativas mais complicadas. Em tempos de escassez, por exemplo, sobrevivem as girafas de pescoço mais longo, capazes de alcançar alimento mais alto. Não surgem girafas de pescoço curto com asas. Primeiro deve ocorrer acidentalmente uma modificação física relativamente simples na espécie; depois, a seleção elimina os que não a possuem. É assim que a evolução realmente funciona.

Mas não há explicação, dentro das leis da seleção natural, para a evolução do cérebro humano. Os fatores biofísicos de um cérebro sofisticado são excessivamente complexos. Um proto-homem tentando adaptar-se a ambientes hostis por meio de modificações cerebrais teria morrido muito antes que qualquer pressão ambiental pudesse provocar mudanças fisiológicas significativas naquele órgão – se é que tal coisa seria sequer possível. No caso do proto-homem, a seleção natural teria favorecido praticamente qualquer outra adaptação que não o cérebro. Ele teria se tornado mais forte, mais peludo, mais resistente, mais agressivo e mais rápido. Segundo a lógica da seleção natural, você e eu deveríamos ser gorilas.

Mas não somos gorilas. Aliás, à medida que nossa inteligência tornou a vida progressivamente mais fácil, tornamo-nos fisicamente mais fracos e vulneráveis. Somos mais saudáveis e vivemos mais apenas porque nossa inteligência nos permitiu produzir medicamentos para combater doenças e padrões alimentares que maximizam nossa saúde e crescimento. Controlamos ambientes contra os elementos e desenvolvemos armas para nos defender de outras criaturas. Remova nossa inteligência anormal e a humanidade se extinguiria ou seria exterminada em poucas gerações.

Por causa de nosso cérebro, portanto, a evolução natural do restante do corpo [que normalmente operaria em favor de uma fisiologia mais robusta e resistente a doenças] acabou funcionando ao contrário. Novamente, isso é inconsistente.

Existe ainda um corolário para esse segundo problema: a seleção natural, quando ocorre, não “compensa em excesso”. Se condições ambientais permitem que todas as girafas de pescoço de um metro sobrevivam, não há razão para a espécie evoluir para pescoços de doze metros. Se o cérebro humano fosse o produto da seleção natural, por que possuiria uma inteligência maior do que a necessária para elevar o homem a uma cultura da Idade da Pedra? Mais ainda: por que teria a capacidade de ser dez vezes mais inteligente do que é hoje?

Se a inteligência elevada do ser humano é uma violação das leis do universo objetivo, como ela ocorreu? Existem duas explicações possíveis: acaso ou causa deliberada. Se assumirmos causa acidental, então o acidente teria de representar uma violação grave da lei e, além disso, teria de se sustentar por vários milênios. E, se houve esse acidente, as leis da probabilidade exigiriam que outros semelhantes ocorressem em menor grau [e em maior número]. Em todas as manifestações da vida e da evolução que conhecemos, não temos notícia de nenhum outro acidente do tipo. O domínio da lei natural sobre tudo o mais, exceto nós mesmos, parece total e inescapável. Restamos, então, com a segunda explicação: causa deliberada.

Durante a Era de Satanás (1966–1975 EC), uma certa “memória racial” de alguma mudança pré-histórica no curso natural da evolução humana parecia manifestar-se com força. A mais espetacular e explícita ilustração disso foi o filme 2001: Uma Odisseia no Espaço, variação de Arthur C. Clarke sobre o tema de seu romance anterior O Fim da Infância.

Em 2001, a inteligência do proto-homem é artificialmente ampliada por um monólito retangular. Em O Fim da Infância, a mesma operação é realizada por uma criatura extraterrestre com aparência idêntica à representação tradicional do Diabo. Presumivelmente, o espetáculo de uma tribo de homens-macacos reunidos ao redor de Satanás teria sido um pouco chocante demais para o público; daí o uso do monólito mais abstrato no filme. Curiosamente, o símbolo monolítico de Satanás não provocou nenhuma crítica negativa por parte dos espectadores – religiosos ou não. Uma vez removidos os mitos religiosos, a “queda” do homem é vista como sua ascensão.

Tal manipulação no estilo de 2001 na evolução intelectual humana teria que ter ocorrido em nível genético, e presumivelmente ao longo de um período prolongado, para que fosse sustentada pela reprodução natural. Estamos, portanto, diante de um processo sutil, não de um evento repentino e dramático [como a mordida na maçã por Adão e Eva ou o fogo oferecido por Prometeu].

Não possuímos conhecimento suficiente de genética ou da fisiologia cerebral para estimar como tal manipulação poderia ter acontecido. O fato de que ela realmente ocorreu é indicado apenas – mas de forma inescapável – pela presença do fait accompli.

As teorias dos “antigos astronautas” de Erich von Däniken e outros podem ser descartadas sumariamente. O corpo humano exibe uma constituição orgânica completamente compatível com a das demais espécies terrestres, e astronautas alienígenas não poderiam ter ensinado nada a um proto-homem cuja inteligência ainda não tivesse sido previamente desenvolvida a um nível elevado. Há muitas curiosidades genuínas da antiguidade que sugerem que a inteligência avançada da humanidade já se manifestava muito antes das civilizações registradas do Egito, Suméria, China etc.  Mas, apesar dos esforços mirabolantes para interpretar brinquedos antigos ou murais mesoamericanos como “naves espaciais”, a evidência de astronautas alienígenas na Terra permanece notavelmente ausente.
[Nota do Tradutor: O autor ironiza ao sugerir que, talvez, uma nave tenha parado aqui para um piquenique e a humanidade tenha evoluído a partir do lixo deixado para trás.]

A incapacidade da humanidade de detectar o autor de nosso “experimento de inteligência superior” não deve ser considerada evidência de que ele não existe, mas apenas de que ainda não foi localizado. Além disso, pode-se acrescentar: a humanidade tampouco tem feito grande esforço para procurá-lo. Em vez disso, perdeu-se primeiro na busca fantasiosa do criacionismo religioso, depois na busca igualmente estéril da seleção natural (quando aplicada ao cérebro). No entanto, ele existe; a evidência conclusiva existe. Para citar Pogo, personagem de Walt Kelly: “Nós é que somos ele.”
[Nota do Tradutor: Em inglês: “We have met the enemy, and he is us.” – frase famosa em tom satírico, aqui reinterpretada.]

Esse é o atual nível de desenvolvimento da cosmologia do Temple of Set dentro dos parâmetros do universo objetivo.

Para resumir: sabemos que há evidência da existência de uma entidade inteligente distinta do universo objetivo e, portanto, incidentalmente – senão deliberadamente – em conflito com suas leis. Por qualquer que seja sua razão, essa entidade instilou na humanidade o potencial de usufruir da mesma perspectiva externa, além da inteligência para fazê-lo com propósito criativo e deliberado.

Alguns humanos percebem esse potencial e se encantam com ele; chamamo-los de os Eleitos. A maioria, no entanto, não pensa com precisão e rigor o suficiente para detectá-lo em si mesma; ou, se o faz, teme esse potencial e tenta sublimá-lo, reprimi-lo ou destruí-lo. Por isso, têm representado nosso Estranho Misterioso como o Diabo.

Nós o conhecemos por seu nome mais antigo: Set.

O Temple of Set é, portanto, uma associação dos Eleitos para honrar Set, exaltar seu Dom em nós mesmos e exercê-lo com a máxima sabedoria possível. Como Set é uma entidade metafísica, fora do universo objetivo, ele pode ser descrito como um “deus”, no sentido em que a sociedade convencional emprega esse termo. Nesse sentido, o Temple of Set é uma religião – não uma baseada em fé irracional, mas uma cujos princípios centrais derivam do exercício do Dom evidente de seu neter.

Os Universos Objetivo e Subjetivo


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