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por Claudio Siqueira
Heretic despontou como um bom filme de terror. A questão é que é um bom filme, embora não de terror. O Morte Súbita vem mostrar porque esse suspense é superestimado.
Heretic foi muito bem avaliado por fãs e críticos do gênero e este mesmo que vos escreve ficou curioso ao ver seu trailer na pré-estreia de A Substância. Ao ler as críticas positivas, a vontade de assistir aumentou. A A24, responsável por petardos como Hereditário, Midsommar, e O Farol novamente não errou a mão… ou quase.
A trama girando em torno de duas evangélicas da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias que caem nas garras de um suposto necromante é no mínimo divertida e isso já está proposto no trailer. Hugh Grant é perfeito quando se trata de interpretar um canalha e está tão bom (ou mau) quanto o personagem interpretado por Dennis Quaid em A Substância.
A cena inicial das duas conversando sobre pornografia num banco escrito “Tamanho é documento” é pândega e ilustrativa como convém a qualquer cena inicial de filme. As missionárias Barnes e Paxton estão lado a lado, sendo Barnes uma moça de cabelos preto e trajando vestes pretas enquanto Paxton é loira de roupas claras. As sephiroth Binah e Chochmah estão ali muito bem representadas e vemos isso adiante do filme, tanto por suas personalidades quanto expressões.
Para aqueles que não sabem ou não são versados na Cabalá*, Chochmah e Binah são, respectivamente, a segunda e a terceira sephiroth da Árvore da Vida (sugestiva alcunha da Cabalá, seja ela hermética ou judaica). Sephirah é o termo no singular enquanto o supracitado “Sephiroth”, o plural. Chochmah encima o pilar da direita, branco, o Pilar da Misericórdia, enquanto Binah encima o pilar da esquerda, preto, o Pilar da Severidade.
*Me reservo o direito de escrever “Cabalá” em oxítona, como é pronunciada em seu significado etimológico “Recebimento”
Binah é associada a Saturno, cuja cor é o preto, o que é demonstrado pela cor das roupas, do cabelo e o temperamento de Barnes. Sendo seu sobrenome algo como “Guerreira”, isso nos dá mais uma pista, já que Saturno é o regente de Capricórnio, onde Marte, o planeta da guerra, é exaltado. Chochmah é associada a Netuno, o planeta regente de Peixes e tanto ele quanto o signo são associados à fé, principalmente cristã, já que esta é uma das religiões concernentes à Era de Peixes, ao Aeon de Osíris, thelemicamente falando.
Paxton é um sobrenome que aglutina os termos Paecc (paz) e Tun (town), um “lugar pacato”, sugerindo o lugar de origem da moça, enquanto Barnes sugere algo como guerreiro, também do inglês arcaico. Ambas revelam suas origens a Mr. Reed, o simpático e hospitaleiro senhor que as convida para entrar em sua residência quando vão pregar a palavra do Senhor já que uma tempestade se aproxima.
Durante a conversa, Reed revela ser um estudioso das religiões o que chega a gerar uma brincadeira quando Paxton diz que deveriam ser iguais a ele, leitoras ávidas, quando brinca com seu nome fazendo um trocadilho: “Mr. Read” (“Senhor Leitura”, numa tradução livre). Ele faz uma alusão entre as três grandes religiões monoteístas, Judaísmo, Cristianismo e Islamismo e os jogos Monopólio, Banco Imobiliário e mais outro, além de outra alusão a músicas que mimetizaram características umas das outras em sucessão.
Até aí, tudo ótimo. O suspense é progressivo, as tomadas em close de apenas partes do rosto de Hugh Grant enquanto faz um quase monólogo sincopado por suas expressões faciais mostram que o diretor sabe o que faz. As panes na luz e a água da goteira concatenadas com as cenas mostram que o roteirista também não estava de brincadeira.
Mr. Reed começa uma breve explicação acerca de diversas divindades das quais Jesus Cristo seria apenas uma mímesis, o que foi explicado na parte 2 do famoso documentário Zeitgeist. Da mesma forma como ele correlaciona as três religiões com jogos de tabuleiro e músicas, faz o mesmo com Mitra, Hórus e Krishna o que gera um misto de repúdio e indignação por parte das moças, reféns daquela situação e daquele lunático, que parece esconder muito mais do que revela.
Claro que a coisa não ia ficar só por ali e as meninas deixam claro que querem partir. Mr. Reed dá a elas duas rotas de saída: duas portas que levam a escadas que conduzem sabe-se lá pra onde. No melhor estilo Matrix, oferece duas opções: Crença e Descrença.
Novamente, Paxton e Barnes representam as duas sephiroth
Paxton, Chochmah, busca a porta da direita, como convém à sephirah, e a tal porta é a da Descrença, não porque ela desacredita da existência de D’us, mas porque é a porta da direita, em inglês, the right door, a porta correta, mais um interessante trocadilho do texto. Ela prefere fazer a vontade do Sr. Leitura que pretende ler suas emoções e testá-las até o talo.
Barnes, no entanto, se dirige para a outra porta, a da esquerda, como convém à sephirah Binah, não só por sua posição, mas por ser o certo contrariar seu captor que quer que elas acreditem na descrença. Enquanto Paxton (o branco) solve, busca a conciliação, Barnes (o preto) coagula, fazendo o contraponto. Jakin e Boaz (o nome dos dois pilares) entram em equilíbrio. Mas, como disse Dion Fortune em A Cabala Mística, “Não existe progresso com o equilíbrio” e as duas têm que se decidir por um dos caminhos.
Antes de se decidirem, Barnes dá um puxão de orelha em Mr. Reed e chama na chincha: ela aponta as disparidades de sua teoria, mostra o quão erradas estão suas asserções acerca das três religiões, oferecendo novamente um contraponto. E pontua com um deboche com o deus Hórus. Algo como “Isso que você compara com Jesus tem uma esquisita cabeça de pássaro!”
Não vou me alongar acerca da trama pra não dar mais spoilers, mas ela parece com uma historinha de Scooby-Doo. Quem assistia o desenho pode imaginar do que estou falando. Se as correlações sephiróticas das personagens foram propositais como as oportunas sacadas da decupagem do filme, por que colocar duas missionárias da Igreja de Jesus Cristo dos Santos Últimos Dias como heroínas e um estudioso das religiões como um psicopata misógino?
Se quiserem, cometam a heresia de assistir Heretic como um bom filme de suspense e mistério da A24. Ou melhor, não assistam. Hórus tá de olho e o Grande Olho se fechará sobre vós.
Claudio Siqueira – Jornalista, escritor, poeta, pesquisador de Etimologia, Astrologia e Religião Comparada. Considera os personagens de quadrinhos, games e cartoons como os panteões atuais; ou ao menos arquétipos repaginados.
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