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Alquimia

Um Estudo Antropológico da Alquimia Francesa do século XX

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por José M. Anes (FCSH/UNL)

Comunicação apresentada na Conferência Internacional de 2008, Londres, Reino Unido. Versão preliminar. Por favor, não reproduzir nem citar sem o consentimento do autor.

Trabalho de campo/observação participante (nas décadas de 80 e 90) com: Les Philosophes de la Nature (LPN) e Filiation Solazaref (FS)
Estudo com (anos 80 e 90): Frères Ainés de la Rose-Croix (FARC) e Spagy-Nature (SN)

Essas são questões introdutórias para nossa abordagem comparativa dos grupos alquímicos franceses do final do século XX. De fato, se consultarmos uma livraria (física ou online), encontraremos muitos livros com títulos ou temáticas como “alquimia espiritual”, “alquimia psicológica”, “alquimia da felicidade”, “alquimia do sucesso”, “alquimia financeira” etc. Porém, ao mesmo tempo, encontramos alguns livros sobre “alquimia vegetal”, “essências” e até “alquimia mineral”.

Podemos afirmar — qualitativamente — que no mundo anglo-saxão, por um longo período (digamos, nos últimos 20 anos), os livros da primeira categoria foram mais frequentes, enquanto os da segunda foram mais comuns na França — o “lar” da alquimia laboratorial.

A “alquimia espiritual” está presente nas Espiritualidades Alternativas da Nova Era e é aceita pela modernidade espiritual como uma estratégia psicológica de harmonia e felicidade, utilizando os nomes da velha Alquimia como símbolos e alegorias. Já a “alquimia laboratorial” constitui um desafio à ciência moderna, pois parte do princípio de que as transmutações (embora teoricamente possíveis) são também praticáveis nas condições de um laboratório alquímico.

Por que pessoas — às vezes com formação científica e carreiras técnicas — acreditam na “pedra filosofal”, “transmutações alquímicas”, “elixires da longa vida” etc.? Algumas explicações possíveis:

  • Ignorância e superstição: não é o motivo mais comum

  • Desejo de riqueza e saúde por um longo período (para sempre?): pode ser um bom motivo (nem sempre confessado)

  • Persuasões: como aponta T. Luhrman (em Persuasions of Witchcraft), “como alguém pode ser persuadido por algo que não pode existir ou que não funciona”? Mas deve-se notar que a alquimia (mais do que a magia) persuade mais aqueles que aceitam uma ciência oculta, acessível apenas a alguns.

  • Reivindicação de conhecimento (título do livro de Olav Hammer): uma estratégia de reivindicar um saber que eu possuo, que meu grupo possui, com um referencial distinto do saber aceito — e essa mudança de referencial confere importância simbólica, poder e identidade

  • Uma perspectiva positiva em relação ao ofício e à natureza: não uma atitude passiva diante da natureza, mas uma atitude ativa que deseja acelerar os processos naturais por meio da arte alquímica

Essas (e outras apresentadas adiante) são questões socioantropológicas que tentarei responder em outro trabalho (mais desenvolvido), a ser publicado até o final deste ano.

É importante lembrar um mito recorrente nesses grupos, comum a certo hermetismo — como o do Renascimento, em Florença — e a certo iluminismo esotérico — como o do século XVII, no qual antiquários como Elias Ashmole e Isaac Newton, entre outros, buscavam a prisca sapientia — de que por trás do nosso conhecimento, da nossa filosofia e religião, existe uma sabedoria esquecida que precisa ser recuperada. Podemos dizer que nesses grupos observamos — em uma versão popular — a mesma busca por um conhecimento antigo, especialmente a esquecida “ciência” (ou Arte, como chamam) das transmutações, que consideram ausente na ciência atual.

Ainda que alguns pensem que a alquimia laboratorial é apenas uma “bricolagem” química antiga, na realidade ela está fundamentada em conceitos espirituais e cosmológicos e em uma atitude diante da Natureza muito similar ao revivalismo pagão moderno — mesmo quando se expressa por uma linguagem cristã ou cabalística. Como dizem os alquimistas (antigos e modernos), o laboratório é o lugar onde oram e trabalham (ora et labora!) — e onde os materiais, e os alquimistas, serão espiritualizados, ao mesmo tempo em que o espírito será corporificado, o que constitui, na verdade, o mito central da alquimia (espiritual) ou sua utopia (físico-química). Pode-se dizer que a alquimia é uma “religião da natureza” artificial, pois afirma ajudar a natureza a evoluir e alcançar a perfeição.

A questão de saber se o alquimista moderno “trabalha” mais do que “reza” é muito interessante e será tratada em outro estudo. No entanto, é importante destacar que pode haver um efeito psicológico e espiritual da literatura e das imagens alquímicas sobre o alquimista, que frequentemente lê e medita sobre os significados dos tratados alquímicos — essa é a afirmação da escola de Fulcanelli e Canseliet: além dos segredos da prática alquímica (materiais, instrumentos, operações), existem os segredos iniciáticos, que só podem ser comunicados por meio de símbolos. O poder dos símbolos é central na alquimia, especialmente na alquimia laboratorial, pois os nomes dados aos materiais pelos alquimistas não são os nomes “normais” ou científicos, como mercúrio e sulfeto de antimônio, ferro, destilações, sublimações, etc., mas nomes sagrados (poéticos) e simbólicos, como “leão”, “serpente”, “dragões”, “águia”, “pombas de Diana”, etc.

Apesar das estratégias retóricas usadas pelos alquimistas, a simbolização — e a imaginação criativa (ou ativa) — é, de fato, central para os aspectos psicoespirituais e iniciáticos da alquimia.

É importante notar dois tipos distintos de influências que marcaram o surgimento histórico desses grupos alquímicos:

  • A chamada “alquimia tradicional”, que (re)surgiu nas décadas de 1920 e 1930 por meio dos livros de Fulcanelli (pseudônimo de um alquimista francês) — Les Mystères des Cathédrales (1926, 2ª ed. 1957, 3ª ed. 1964) e Les Demeures Philosophales (1930, 2ª ed. 1960, 3ª ed. 1965) — ambos com prefácios de Eugène Canseliet, que também escreveu outros livros importantes: Deux Logis Alchimiques (1945), Alchimie (1964), L’Alchimie expliquée sur ses textes classiques (1972), L’Alchimie et son Livre Muet (1967, 1973, 1988). Também são relevantes nesta corrente os livros de Claude d’Ygé, Anthologie de la Poésie Hermétique (1948, 2ª ed. 1978) e Nouvelle Assemblée des Philosophes Chymiques (1954, 2ª ed. 1972), além de vários artigos em revistas como Atlantis;

  • Obras eruditas e acadêmicas, como o pequeno livro Alchimie, de Serge Hutin (Presses Universitaires de France, 1951, 9ª ed. 1995), Aspects de l’Alchimie Traditionnelle (1953), Mystiques, spirituels et alchimistes du XVIe siècle allemand (1955, 1871), de Alexandre Koyré, Forgerons et Alchimistes (1956, 2ª ed. revisada, 1977), Mircea Eliade, La Tradition Hermétique (1962, 1968, 1988), Julius Evola, Alchimie, Science et Sagesse (1967), Titus Burckhardt;

  • Uma corrente mais popular, com livros como Le Matin des Magiciens, de Louis Pauwels e Jacques Bergier (1958), e diversos artigos em revistas (por exemplo, Planète, dirigida por Pauwels).

Os grupos FS e SN reivindicam seguir os procedimentos alquímicos de Fulcanelli (a “via seca”, baseada no antimônio): o FS adota também os ensinamentos de um alquimista da Europa Oriental, N., que ensinou a Solazaref a “via breve” (usando o trovão), enquanto o SN segue também os ensinamentos de Eugène Canseliet (discípulo de Fulcanelli, não seguido por Solazaref). O LPN segue os espagiristas e alquimistas alemães, como Alexandre von Bernus, cujo livro Alchimie et Médicine foi publicado na França em 1955 (tradução da edição alemã de 1948) — e também os cabalistas alemães como Knorr von Rosenroth. É importante notar que nos últimos anos o LPN também passou a seguir a “via seca” com as “sublimações” (descritas no livro de Betty Dobbs sobre a alquimia de Newton). Finalmente, o FARC seguiu a “via úmida” (com cinábrio).

Vale destacar que a alquimia laboratorial reapareceu, na segunda metade do século XX, também em outros países além da Alemanha (com Alexander von Bernus e os Laboratórios SOLUNA): nos EUA, com o alquimista alemão Frater Albertus (Albert Reidel) — vide seu livro The Alchemist of the Rocky Mountains — e sua Paracelsus Society (com a revista Parachemistry), na Escócia com Adam McLean e o Hermetic Journal — que tratava tanto da alquimia espiritual quanto da laboratorial —, e mais tarde com sua página na internet Alchemy. Também houve atividades na Espanha (Simon H.) e em Portugal (Rubellus Petrinus), entre outros.

Podemos resumir, na tabela a seguir, algumas características desses grupos alquímicos franceses, relativas à data de fundação, liderança, publicações, cursos por correspondência e produção bibliográfica:

LPN – Les Philosophes de la Nature
FS – Filiation Solazaref
SN – Spagy-Nature
FARC – Frères Ainés de la Rose-Croix

LPN FS SN FARC
Criado em 1979 1983 1986 1961, 1968/71
Encerrado 1987 (na França) 1994
Publicação periódica Le Petit Philosophe La Tempête Chymique
Cursos por correspondência Espagiria, Alquimia, Cabala Alquimia (*)
Livros e folhetos 1 (LPN) Vários (Solazaref) Vários (P. Rivière) Vários (R. Caro)

(*) instruções por perguntas e respostas

Esses grupos adotam, além da alquimia e da espagiria, outras doutrinas esotéricas. Podemos observar facilmente que não há uma doutrina alquímica “pura” em nenhum deles; ao contrário, encontramos um tipo de “bricolagem” iniciática:

LPN FS SN FARC
Doutrinas esotéricas
Espagiria + + + +
Alquimia + + + +
Cabala/Qabalah +
Cristianismo + (1ª fase) + +
Neopaganismo + (2ª fase)
Rosacrucianismo (+) +
Templários + +
Igreja Gnóstica +
Gurdjieff +

Se utilizarmos a “tripartição trifuncional indo-europeia” (cf. Georges Dumézil), podemos estabelecer uma conexão entre esses grupos e os três níveis de iniciação e simbolismo – e observamos que todos se identificam com o nível “artesanal” (por isso afirmam praticar uma “alquimia operativa”), um deles (Filiation Solazaref) se situa fortemente no campo da cavalaria e outro tem um caráter marcadamente sacerdotal (FARC, com sua igreja Église de la Nouvelle Alliance – ENA):

Simbolismo LPN FS SN FARC
Laboração Operativa (craft) + + + +
Cavalaria ++
Sacerdócio + + + ++

Devemos notar que existe, em várias tradições, uma espiritualidade do ofício (artesanato), e essa poderia ser a única característica comum desses grupos. No entanto, eles sentem — talvez porque o homem moderno tenha dificuldade em seguir apenas uma espiritualidade artesanal? — a necessidade de complementar a doutrina e iniciação alquímica com outras teorias e práticas “espirituais” esotéricas (Cabala, Gurdjieff, etc.).

No artigo intitulado “Esotericism in New Religious Movements” (Capítulo 19 de The Oxford Handbook of New Religious Movements, editado por James R. Lewis, Oxford University Press, 2004, pp. 445–465), Olav Hammer discute as definições de Esoterismo e divide-as em duas categorias principais:

  1. A definição “histórica”, como a do Esoterismo Ocidental (Western Esotericism), proposta por Antoine Faivre, que inclui Gnose, Hermetismo, Alquimia, Cabala, Magia, Teosofia etc., e que possui certas características doutrinárias, sendo quatro principais:
  • a ideia de correspondências
  • a imaginação simbólica mediadora
  • a natureza viva
  • a experiência (pessoal) de transmutação

e duas acessórias:

  • concordância
  • transmissão.

2. O conceito “tipológico” de Esoterismo, enfatizado por Hammer, como um “acesso em múltiplos níveis ao conhecimento”, relacionado à estrutura e função das religiões esotéricas e dos NMR (Novos Movimentos Religiosos), considerando “mitos, rituais, objetos religiosos, formações sociais, práticas discursivas e mecanismos sociopsicológicos”. Ele propõe a correlação entre o esoterismo tipológico e cinco características: formação social, rituais, objetivos declarados, estilo cognitivo e relação com a sociedade dominante.

Segundo Hammer, “há correntes ‘esotéricas ocidentais’ que não são esotéricas no sentido tipológico”, e, por outro lado, “muitas das correntes esotéricas tipológicas não são ‘ocidentais’ no sentido de Faivre”.

No que se refere à Alquimia, se considerarmos apenas sua teoria e prática, é útil analisá-la sob a perspectiva histórica do Esoterismo Ocidental de Faivre. No entanto, ao abordar grupos alquímicos inseridos numa sociedade e cultura específicas, torna-se necessário aplicar também a abordagem de Hammer, focando nas perspectivas sociológicas e antropológicas, levando em conta que:

  • o mito alquímico é a Pedra Filosofal;

  • a alquimia laboratorial é um rito;

  • as “práticas discursivas e mecanismos sociopsicológicos” são as persuasões e estratégias retóricas;

  • os objetos religiosos alquímicos são os materiais (minerais etc.) e os instrumentos (athanor etc.) — que funcionam como totens dos grupos alquímicos.

Usarei ambas as abordagens. A primeira (histórica) foi tratada na primeira e a segunda está sendo apresentada (de forma muito breve — será desenvolvida futuramente) nas linhas e tabelas seguintes.

Esta primeira tabela utiliza a tipologia (relação com o mundo) proposta por Roy Wallis em seu livro Elementary Forms of New Religious Life:

LPN FS SN FARC
Afirmativos do mundo (*)
Acomodados ao mundo + + +
Renunciantes do mundo ++

(*) Roger Caro, patriarca da ENA, solicitou reconhecimento do Vaticano para sua igreja.

Quanto às características carismáticas de seus Líderes carismáticos:

LPN (J. Dubuis) FS (Solazaref) SN (P. Rivière) FARC (R. Caro)
Sim + ++ +
+

(Jean Dubuis trabalhou na IBM; Solazaref foi cientista e ceramista; Patrick Rivière é historiador e escritor; Roger Caro foi escritor e bispo de sua própria igreja.)

Violência (mesmo que retórica):

LPN FS SN FARC
Violência (retórica) +
Não-violento + + +

Como a violência às vezes está relacionada ao milenarismo apocalíptico, temos a seguinte tabela:

LPN FS SN FARC
Milenarismo + +
Apocaliptismo ++

Outra característica importante desses grupos é a existência de hierarquia interna:

LPN FS SN FARC
Hierárquico ++ + (ENA)
Não-hierárquico + + (CHRCHM)

Em relação à estrutura e à forma de comunicação de suas práticas e doutrinas:

LPN FS SN FARC
Cursos por correspondência + + +
Seminários de fim de semana + +
Vida em comunidade + (*)

Por fim, para encerrar esta apresentação bastante sucinta de um tema tão vasto, é interessante destacar algumas características que colocam esses grupos alquímicos em relação com temas espirituais modernos, presentes em correntes da Nova Era — conforme discutido por Wouter H. Hanegraaff em New Age Religion and Western Culture – Esotericism in the Mirror of Secular Thought.

Alguns dos grupos alquímicos aqui estudados rejeitam fortemente a Nova Era e as espiritualidades e religiões modernas. No entanto, podemos observar que pelo menos um deles (LPN) pode ser incluído entre as espiritualidades da Nova Era.

LPN FS SN FARC
Afirmação da ciência + + +
Nova ciência +
Parapsicologia +
Terapias alternativas + + + +
Instrumentos não-alquímicos
(ex.: instrumentos eletrônicos, ondas cerebrais alfa)
+

E mesmo o grupo FS, que é fortemente anti–Nova Era e anti-NMR (Novo Movimento Religioso), apresenta certas características de “bricolagem espiritual” que também encontramos em algumas correntes da Nova Era.

LPN FS SN FARC
Novo Movimento Religioso (NMR) + +
Espiritualidade Alternativa (EA) + +
Nova Era +
Anti–Nova Era +++ + ++

Assim, ao invés de rejeitarmos a classificação de Christopher Partridge da alquimia como um tipo de NMR e EA — que inclui tanto o Esoterismo Ocidental quanto a Nova Era (ver abaixo) —, devemos aceitá-la, pois tudo depende do grupo específico.

Fonte: The 2008 International Conference –  Twenty Years and More: Research into Minority Religions, New Religious Movements and ‘the New Spirituality


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