Este texto foi lambido por 119 almas esse mês
por Erwin Hessle. Traduzido por Caio Ferreira Peres.
Com o solstício de inverno há quatro dias e os dias começando mais uma vez a se alongar, será apropriado voltarmos nossa atenção para a estrela em nosso próprio canto do universo: o Sol. No passado, ocasionalmente descrevemos Thelema como um “culto solar”, para a confusão de alguns que associam essa conexão com crenças antigas desacreditadas e não esclarecidas ou, pior ainda, com sistemas modernos de falsa história, como a Wicca. No entanto, como o Livro da Lei nos diz, “os rituais do velho tempo são negros. Que os maus sejam rejeitados; deixai que os bons sejam purgados pelo profeta! Assim este Conhecimento seguirá corretamente”,1 e talvez seja o momento de nossa estrela retornar à sua verdadeira posição de importância.
Em The Equinox, Volume III, Número I, Crowley publicou um ensaio2 intitulado Passando do Velho ao Novo Aeon, que continha o seguinte:
Vocês sabem como sempre ficamos profundamente impressionados com as idéias do nascer e do pôr do Sol, e como nossos irmãos antigos, vendo o Sol desaparecer à noite e nascer novamente pela manhã, basearam todas as suas idéias religiosas nessa concepção única de um Deus que Morre e Ressurge. Essa é a ideia central da religião do Velho Æon, mas nós a deixamos para trás porque, embora parecesse estar baseada na Natureza (e os símbolos da Natureza são sempre verdadeiros), nós superamos essa ideia que é apenas aparentemente verdadeira na Natureza. Desde que esse grande Ritual de Sacrifício e Morte foi concebido e perpetuado, nós, por meio da observação de nossos homens de ciência, passamos a saber que não é o Sol que nasce e se põe, mas a Terra em que vivemos, que gira de modo que sua sombra nos separa da luz solar durante o que chamamos de noite. O Sol não morre, como pensavam os antigos; ele está sempre brilhando, sempre irradiando Luz e Vida. Pare por um momento e tenha uma concepção clara desse Sol, como Ele está brilhando de manhã cedo, brilhando ao meio-dia, brilhando à tarde e brilhando à noite. Você tem essa ideia claramente em mente? Você passou do Velho ao Novo Aeon. Agora vamos considerar o que aconteceu. Para obter essa imagem mental do Sol sempre brilhante, o que você fez? Você se identificou com o Sol. Saiu da consciência deste planeta e, por um momento, teve de se considerar um Ser Solar.
. . . Mas em nossa Consciência Solar está a Verdade, e embora olhemos por um momento para a pequena esfera que deixamos para trás e ela não exista mais, ainda assim há “aquilo que permanece”.3 O que permanece? O que aconteceu? Percebemos que “todo homem e toda mulher é uma estrela”.4 Olhamos em volta para nossa herança mais ampla, olhamos para o Corpo de Nossa Senhora Nuit. Não estamos na escuridão; estamos muito mais próximos Dela agora. . .
. . . Agora, se você quiser voltar ao Velho Æon, faça isso. Mas tente ter em mente que as pessoas ao seu redor são, na realidade, Sóis e Estrelas, não pequenos escravos trêmulos. Se você não estiver disposto a ser um Rei, reconheça que eles têm direito à Realeza, assim como você tem, sempre que quiser aceitá-la. E no momento em que desejar fazer isso, basta lembrar-se do seguinte: Veja as coisas do ponto de vista do Sol.
Essa ideia de “consciência solar” merece uma análise mais aprofundada, assim como a ideia de que “os símbolos da natureza são sempre verdadeiros”, mas primeiro vamos dar um passo atrás e ver que outras fontes existem na literatura Thelêmica que apoiam essa conexão solar.
O mais óbvio é que “Khabs”5 significa “estrela” e o Sol é a nossa própria estrela física local, da qual dependem toda a vida e a luz neste planeta. Além disso, em AL I, 9, nos é dito: “Venerai então o Khabs e contemplai minha luz irradiada sobre vós!” De certa forma, essa é uma instrução direta para uma forma de adoração ao sol.
No entanto, não precisamos considerar essa injunção como sendo dirigida apenas à nossa estrela física, especialmente porque também nos é dito que “Todo homem e toda mulher é uma estrela”.6 No entanto, mesmo aí temos uma analogia impressionante, pois assim como o Sol é o centro do Sistema Solar, seu “centro de gravidade” e a fonte de sua vida e luz, o Khabs está no coração do indivíduo,7 sua essência eterna e “verdadeira”, que é velada pelo eu consciente,8 e o “centro de gravidade” de seu próprio ser.9
Essa ideia é reforçada quando consideramos o simbolismo da Árvore da Vida Qabalística no que se refere à criação do indivíduo. As quatro sephiroth inferiores constituem Malkuth e a tríade individual, e representam a faculdade consciente e autoconsciente do indivíduo, que é “governada” no adepto pelo “verdadeiro eu” em Tiphareth, na tríade real.10 Tiphareth está no centro da Árvore da Vida e é atribuída ao Sol, assim como o Sol físico está no centro do sistema solar e o “verdadeiro eu” está no centro do indivíduo.
Mesmo no tipo de astrologia que fascina milhões de pessoas nos jornais diários, o “signo solar” representa o ego, a individualidade – Thelema se preocupa explicitamente com a individualidade e a vontade – e os traços de caráter mais profundos, e é, de longe, o planeta mais importante no horóscopo natal; assim, os astrólogos pop dividem toda a população da Terra em doze grupos com base na hora do nascimento do indivíduo em relação ao estágio da órbita anual da Terra em torno de sua estrela.
Voltando ao imaginário do Livro da Lei, o “Æon de Hórus”11 é atribuído ao filho12 de Osíris e Ísis, e acredita-se que, embora Hórus fosse originalmente um deus do céu,13 ele logo se tornou também um deus do sol, já que se pensava que o Sol estava contido no céu. Em sua identificação com Ra-Herakhty – o “Ra-Hoor-Khuit” do Livro da Lei – a conexão é ainda mais óbvia, pois Rá é explicitamente um deus-sol. Além disso, Hadit – o ponto imanifesto que é “em todo lugar o centro”14 e “a chama que arde no coração de todo homem e no centro de cada estrela”15 – é representado por um ’disco solar alado”, e é dito que “ele é sempre um sol e ela16 uma lua”.17
Assim como o Capítulo I de O Livro da Lei é caracterizado pela dissolução do indivíduo no Corpo de Nuit, o Capítulo II é caracterizado pelo orgulho, luxúria e individualidade de Hadit e, portanto, contém muitas das declarações ferozes e, muitas vezes, violentamente individualistas que causam problemas a muitas pessoas, como “pisai nos desgraçados & fracos: esta é a lei do forte”18 e “Não tenhas piedade dos caídos! Eu nunca os conheci.”19 “O Sol, Força & Visão, Luz; estes são para os servidores da Estrela & da Serpente”, nos é dito em AL II, 21, outra referência solar explícita, e que é reforçada quando consideramos que o “orgulho” do Capítulo II é fortemente simbolizado pelo signo astrológico de Leão20 e pelo trunfo do Tarô “Volúpia”, que, entre outras coisas, contém a imagem de uma serpente. A ideia que “Isto é uma mentira, esta tolice contra si mesmo. . . Sê forte, ó, homem! Deseja e desfruta de todas as coisas de sentido e arrebatamento: não temas que algum Deus te negará por isto” é tipicamente característico de Leão e exibe fortes qualidades solares de autoexpressão e individualismo.
No Capítulo III, as seções de versos inseridas no Livro por Crowley também continuam o tema solar. Em AL III, 37 ele escreve:
Aparece no trono de Rá!
Abre os caminhos do Khu!
Ilumina os caminhos do Ka!
Recapitula os caminhos do Khabs
Para mover-me ou parar-me!
Aum! Que ele me preencha!
Crowley exorta Ra-Hoor-Khuit – um deus-sol, lembremos – a de fato “Aparecer no trono de Rá!” e “Abrir os caminhos do Khu”21 com a luz penetrante do Sol, permitindo que essa luz “mover-me agite ou parar-me! . . . que ele me preencha!”, ecoando as conexões feitas em AL I, 9 entre a luz do sol, a penetração da ilusão e a “adoração” da individualidade.
Em AL III, 38, ele acrescenta outra passagem, que prenuncia uma conexão muito mais explícita que viria alguns anos depois:
A luz é minha; seus raios consomem
A mim: eu fiz uma porta secreta
Para a Casa de Rá e Tum,
De Ahathoor e Khephra.
A conexão em questão, é claro, foi Liber Resh vel Helios, escrito no verão de 1911, sete anos após o recebimento do Livro da Lei. Crowley descreve esse livro da seguinte forma:
Aqui são apresentadas as quatro Adorações ao Sol, que devem ser feitas diariamente ao amanhecer, ao meio-dia, ao pôr do sol e à meia-noite. O objetivo dessa prática é, em primeiro lugar, lembrar o aspirante, em intervalos regulares, da Grande Obra; em segundo lugar, levá-lo a uma relação pessoal consciente com o centro de nosso sistema; e, em terceiro lugar, para os estudantes avançados, fazer contato mágico real com a energia espiritual do sol e, assim, extrair força real dele.22
As “quatro Adorações” em questão são dirigidas ao “amanhecer, meio-dia, pôr do sol e meia-noite”23 aos mesmos quatro personagens mencionados em AL III, 38; Rá, Ahathoor, Tum e Khephra, nessa ordem.
Liber Resh é importante para o nosso propósito atual porque é a primeira vez que Crowley descreve uma prática específica que poderíamos classificar como uma forma de “adoração ao sol”.24 Ele obviamente a considerava importante, já que era realizada quatro vezes por dia em sua “Abadia de Thelema” em Cefalù, na Sicília,25 e o mais significativo – bem no final de sua vida, mais de trinta anos após sua publicação – escreveu o seguinte na primeira carta de Magick Without Tears:
Agora há um assunto realmente importante. A única coisa além do Livro da Lei que está na linha de frente da batalha. Como eu lhe disse ontem, o primeiro ponto essencial é a dedicação de tudo o que se é e de tudo o que se tem à Grande Obra, sem qualquer tipo de reserva. Isso deve ser mantido constantemente em mente; a maneira de fazer isso é praticar Liber Resh vel Helios.
Com isso em mente, vale a pena dedicar alguns momentos para analisar a lógica por trás dessa prática e ver se podemos descobrir a natureza de seus méritos. O objeto tríplice descrito por Crowley em suas Confissões é o lugar óbvio para começar, sendo que a primeira parte é “lembrar o aspirante, em intervalos regulares, da Grande Obra”. Nesse sentido, a prática constitui um tipo de oração. A Igreja Católica Romana, por exemplo, tem sido infinitamente mais sensata sobre o assunto da religiosidade do que alguns dos outros cultos cristãos, insistindo que é por meio do sacramento e de outras práticas que o indivíduo alcança a “salvação”, e não como resultado da mera e vazia aceitação de Jesus como seu “salvador pessoal”. A teoria por trás dessa abordagem é óbvia; não há melhor maneira de gerar consciência da presença imanente de Deus do que realizar contínua e repetidamente atos físicos que afirmem a verdade dessa presença. Com base na teoria de que alguma forma de ligação é feita com Deus por meio da prática, a profunda integração dessa prática na vida diária da pessoa resultará no desenvolvimento de uma apreensão consciente mais ou menos permanente dessa ligação, e se definirmos “salvação” como estar “unido a Deus” – ou pelo menos a sensação de estar unido – então todo o sistema se revela admirável.
Da mesma forma, a aplicação repetida das adorações de Resh resultará em um fenômeno semelhante, com o indivíduo se tornando cada vez mais consciente da existência de um “poder superior”. Não há razão para que esse termo, nesse contexto, sugira alguma forma de súplica básica a um tipo de “ser maior”; o Sol é literalmente “mais alto” do que nós – cerca de 93 milhões26 de milhas mais alto, ao meio-dia – e o “poder” de seu campo gravitacional é o que mantém todo o sistema solar unido, sem mencionar o “poder” de luz e calor que ele emite e que sustenta toda a vida neste planeta. Como objeto de adoração, o Sol tem algumas vantagens marcantes em relação a um conceito abstrato de um deus pessoal, pois pode ser visto e sua presença sentida27 por qualquer pessoa. Seu ciclo inexorável – dia após dia, ano após ano – proporciona uma sensação direta e tangível de consistência e eternidade que supera a vida dos homens e o tornou um foco religioso óbvio para a humanidade primitiva, assim como o outro fenômeno inevitável da passagem das estações e os ciclos de temperatura, agricultura e vida selvagem que o acompanhavam, demonstrando ainda mais o poder do Sol sobre a vida dos homens. Quanto às supostas “vantagens” de uma concepção mais pessoal de um deus – como uma “natureza amorosa” ou um interesse pessoal nos assuntos da humanidade, ou a provisão de uma vida eterna após a morte – uma vez que elas surgem nas mentes dos adoradores em vez de serem inerentes ao próprio deus, elas acabam não sendo vantagens de forma alguma, mesmo que não seja pelo fato de que, após um exame mais detalhado, elas acabam sendo desvantagens de qualquer forma.28
O elemento importante é que a aplicação repetida das adorações de Liber Resh expande a consciência29 do indivíduo, obrigando-o a adotar uma perspectiva diferente, induzindo-o a “ver as coisas do ponto de vista do Sol”, na linguagem de Passando do Velho Æon. O aspirante fixa sua atenção em algo fora de si mesmo, o que faz com que sua consciência saia de seus próprios problemas e preocupações insignificantes e se estabeleça em um ponto de relativa consistência e indiferença, e a aplicação repetida dessa prática permite que ele – à vontade – observe de uma posição diferente de sua identificação normal com sua mente consciente. Ao ultrapassar as restrições que essa mente consciente cria, ele se torna capaz de expandir o “agregado de experiência” que é o seu eu,30 que é o objetivo da “Grande Obra”.
Até aí tudo bem, mas isso pode ser dito sobre muitos sistemas de espiritualidade e não atribui, por si só, nenhum significado especial a Thelema. Além disso, não dissemos em O Khabs está no Khu que “a alma que busca fora o seu objetivo estelar está olhando precisamente na direção errada; ela deveria estar olhando para dentro”? Será que a nossa ideia de o aspirante “fixar sua atenção em algo fora de si mesmo” contradiz essa noção? Como primeira resposta, poderíamos observar que “fixar sua atenção” e “buscar um objetivo externo” são dois conceitos completamente diferentes; pode ser que a melhor maneira de buscar um objetivo interno seja justamente “fixar a atenção” em algo externo. O fato de um indivíduo “adorar o Sol” não implica necessariamente que ele espera que essa bola de plasma ardente de alguma forma o “salve” de seus problemas terrenos. Entretanto, a verdadeira resposta é revelada em AL I, 3: “Todo homem e toda mulher é uma estrela”. O Sol é – como discutimos na página 3 – um símbolo do Khabs e, portanto, um símbolo do eu e, assim, “adorar o Sol” é “adorar… o Khabs”31 de forma simbólica, já que o Sol parece muito mais tangivelmente evidente para o aspirante do que o seu “verdadeiro eu”. Na linguagem de Passando do Velho Æon, a “adoração do Sol” força o indivíduo a “identificar-se com o Sol”, a “considerar-se como um Ser Solar”, o que é ao mesmo tempo o início e o fim de Thelema, já que “em nossa Consciência Solar está a Verdade”; ele “saiu do Velho Æon para o Novo”.
Nas adorações de Liber Resh, então, temos um método que conduz ao desenvolvimento do tipo de consciência que estamos buscando e que é diretamente simbólico dela e, por um caminho indireto, também abordamos agora a segunda parte do objetivo declarado por Crowley para a prática, que é “trazer [o aspirante] para uma relação pessoal consciente com o centro de nosso sistema” e começamos a entender algo de seu significado.
Quanto à terceira parte do objetivo, “extrair a força real” do Sol, Crowley escreve o seguinte no Livro de Thoth sobre o trunfo do Tarô, “O Sol”:
Esta é uma das cartas mais simples; ela representa Heru-ra-ha, o Senhor do novo Æon, em sua manifestação para a raça dos homens como o Sol espiritual, moral e físico. Ele é o Senhor da Luz, da Vida, da Liberdade e do Amor. Esse Æon tem como propósito a emancipação completa da raça humana…
. . . as crianças gêmeas . . . [que] representam o homem e a mulher, eternamente jovens, sem vergonha e inocentes. . . representam o próximo estágio a ser alcançado pela humanidade, no qual a liberdade completa é tanto a causa quanto o resultado do novo acesso da energia solar sobre a Terra. A restrição de ideias como pecado e morte em seu sentido antigo foi abolida.
“Extrair a força real” do Sol é aproveitar esse “novo acesso de energia solar sobre a Terra”, e a terceira parte do objetivo de Liber Resh, portanto, é de fato acessar essa energia com o propósito de alcançar a “completa liberdade” da “restrição de ideias como pecado e morte”, para se livrar das amarras que impedem que se alcance a inocência eterna das crianças gêmeas. É também a “porta secreta que eu farei para estabelecer teu caminho em todos os quadrantes” mencionada em AL III, 38; ela se refere tanto ao poder da luz do Sol para perfurar os véus do Khu e alcançar a liberdade das restrições, quanto ao poder do eu (ou seja, do Khabs, do Sol) que é liberado quando essas restrições são removidas. “Estabelecer teu caminho em todos os quadrantes” é fazer do Khabs o “governante” do eu consciente, é inundar o eu consciente com sua luz por meio da remoção de restrições, é alinhar todas as partes do eu e “afirmar teu lugar na natureza e em suas Harmonias”.32 Pelo exposto, a conexão solar Thelêmica deve estar clara, e agora deve haver pouca dificuldade em aceitar nossa categorização de Thelema como um “culto solar”, de modo que podemos voltar à nossa ideia de purgar os “bons . . . rituais dos velhos tempos” nesse contexto. Sabemos que há dois métodos essencialmente equivalentes, mas aparentemente distintos, de remover as restrições da mente: primeiro, aquietar a própria mente e, segundo, inflamar uma parte da mente, excluindo todas as outras. O que estamos procurando nos “rituais” são práticas regulares que facilitem esses métodos e que inclinem o indivíduo mais para o sucesso neles.
Os elementos-chave dessas práticas devem ser:
- consistência – aplicação repetida;
- constância – enfatizando a eternidade; e
- externalidade – concentrando-se naquilo que é externo ao eu consciente.
O que estamos buscando, em última análise, é a liberdade de identificação com o eu consciente mortal e em constante mudança e, em vez disso, uma identificação com os elementos “eternos” da individualidade. Quase todos os sistemas religiosos são direcionados para esse fim; podemos mencionar, por exemplo, a obsessão do cristianismo com a vida eterna e com Jesus como o salvador externo da humanidade a quem devemos “nos entregar”. O problema sempre presente em tais abordagens é a confusão da prática com a verdade filosófica. A abordagem cristã realmente não faz sentido algum, a menos que estejamos preparados para aceitar a verdade literal por trás da teoria, o que, naturalmente, só um completo lunático faria.
Podemos legitimamente perguntar se poderia haver uma abordagem que dispensasse esse problema, que não apenas não exigisse, mas que positivamente desencorajasse o tipo de filosofismo fatal do qual as religiões “tradicionais” parecem sofrer inevitavelmente, e fazer essa pergunta nos leva à resposta óbvia. Se quisermos evitar o foco em fantasmas ilusórios da mente, devemos nos concentrar no que não é imaginário, no que é real. Em vez de inventar uma figura eterna, mítica e imaginária, como Jesus, deveríamos nos concentrar naquilo que, na verdade, é evidentemente não imaginário e persistente, que é a natureza.33 Se quisermos nos livrar da ilusão e nos concentrar na realidade – e definimos realidade como “aquilo que não é imaginário” – então o foco óbvio de nossa atenção deve ser naquelas coisas que não surgem na mente, que são os fenômenos reais da natureza.
As práticas individuais destinadas a alcançar esse foco são potencialmente infinitas. Até mesmo as pessoas menos sensíveis sabem que uma caminhada em um bosque, nas montanhas, no oceano ou em um lago geralmente produz uma mudança de consciência muito acentuada e previsível. As razões para isso são variadas. Em primeiro lugar, há a simples questão da mudança de cenário. Se você retirar a mente de suas configurações regulares e obrigá-la a prestar atenção ao que não é familiar, naturalmente ela tenderá a trabalhar de forma diferente, pelo menos por um tempo, e qualquer pessoa que já tenha feito uma viagem de qualquer tipo – especialmente para um lugar que não havia sido visitado anteriormente – poderá atestar isso.
Em segundo lugar, a mudança específica de cenário para um ambiente natural tem um efeito definitivo, pois a mente é tirada de seu mundo habitual “feito pelo homem” e colocada no mundo “natural”. A atenção a um mundo que sobrevive perfeitamente bem sem a atenção da humanidade – e que sobreviveu assim por milhões de anos – faz maravilhas para colocar os próprios “problemas” em perspectiva. O mundo natural se estende quase impossivelmente para trás no tempo, e assim será no futuro, e a atenção a ele geralmente produz o efeito apropriado de induzir a mente a se concentrar naquilo que é constante e fora de si mesma, em vez de suas preocupações habituais com seus próprios assuntos mesquinhos. Observar o mundo do topo de uma montanha, de uma extensão de terra plana ou do oceano lembra o homem de sua própria insignificância, o que, longe de deprimi-lo, de fato o liberta de suas ilusões de importância autoimpostas que o restringem, induzindo-o a agir de acordo com padrões arbitrários.
Se uma mudança de cenário pode levar a esse tipo de mudança de consciência, o mesmo pode acontecer com o familiar, e esse é o verdadeiro significado de “ritual”. A atenção a atos diários simples, como acender o fogo a lenha, tomar o café da manhã e tomar banho, pode proporcionar um ponto focal para a mente em um mundo em constante mudança, um ponto de descanso para o qual ela pode retornar regularmente como um alívio de suas próprias preocupações, embora, naturalmente, seja preciso tomar cuidado para evitar a tentação de transformar a rotina em uma virtude por si só. Além disso, a atenção a esse tipo de prática é muito superior ao foco em alguma noção abstrata de um ser divino ou de um salvador pessoal, já que a atenção está concentrada em algo real e tangível. Os ascetas, ao longo do tempo, cometeram um grave erro conceitual ao desprezar o mundo físico em detrimento do “espiritual”, pois não é a preocupação da mente com assuntos terrenos que é básica, mas a preocupação da mente consigo mesma e com seu produto. Ao se esforçar para alcançar uma noção vaga e abstrata de “espiritualidade”, a mente está, na verdade, se atolando cada vez mais em suas próprias ilusões e exacerbando o próprio problema que está tentando resolver. O foco no que é “real” evita qualquer possibilidade de erros desse tipo, já que, por definição, os objetos de foco são reais, e não ilusórios.
Além disso, é um fato inevitável que o próprio homem seja parte do mundo natural e que a atenção a ele lhe proporcione um tipo de compreensão de sua própria situação que nenhuma filosofia ou religião pode proporcionar. Nos tempos modernos, a humanidade se tornou tão separada do mundo natural – por meio da vida na cidade, das conveniências modernas, dos alimentos pré-processados, etc. – que parece ter perdido o rumo e clama por “significado”. Não é necessário defender o retorno a um modo de vida medieval, mas sim buscar recuperar essa “conexão” com o mundo natural; a frase “em sintonia com a natureza” tornou-se uma espécie de clichê, mas estar “em sintonia com a natureza” é estar em sintonia com o próprio ser, com a própria natureza, pois ela existe totalmente à parte de qualquer construção mental.
Voltando ao assunto deste ensaio em particular, é o Sol que fornece o ponto focal mais óbvio no mundo natural, já que sua manifestação nos ciclos dos dias e das estações tem o impacto mais imediato na vida cotidiana. Assim como a concentração no mundo natural durante uma caminhada na floresta pode provocar a mudança de consciência que descrevemos, a concentração no Sol também pode provocar um tipo de “consciência solar”. Como exemplo, a maioria das pessoas está familiarizada com a mudança de perspectiva entre o dia e a noite, com o fato de que o mundo pode parecer muito diferente depois de sair da cama às 4h da manhã em uma manhã fria do que às 15h em uma tarde quente de sábado. No entanto, “chegamos à conclusão de que não é o Sol que nasce e se põe, mas a Terra em que vivemos, que gira de modo que sua sombra nos separa da luz do sol durante o que chamamos de noite”. Como um experimento, o leitor pode tentar perceber isso na próxima vez que acordar de madrugada, fazendo um esforço consciente para lembrar a si mesmo que o Sol ainda está lá, mas que ele está apenas na sombra da Terra, que em outro lugar do planeta está quente e ensolarado. A diferença que essa simples constatação pode fazer em sua perspectiva é surpreendente. Da mesma forma, os celtas – supostamente – costumavam começar seus dias ao pôr do sol, em vez de ao nascer do sol. Em vez de irem para a cama no final do dia e acordarem para um novo dia, acordando para um novo dia de trabalho, eles já tinham várias horas do dia quando iam dormir e simplesmente descansavam antes de realizar seu trabalho no final do dia. Novamente, uma simples mudança de perspectiva como essa pode mudar completamente a visão de mundo de uma pessoa, e essa mudança é obtida por meio de uma mudança de perspectiva de uma perspectiva “terrena” para uma “solar”.
Também não precisamos parar com o ciclo diário. No meio do inverno, quando os dias são curtos e a neve tem um metro de espessura no chão, parece um mundo muito diferente daquele que lembramos ter existido no verão, mas essa ilusão pode ser dissipada pelo desenvolvimento de uma consciência solar. Em vez de ficarmos limitados à perspectiva da estação específica em que nos encontramos em um determinado momento, a partir da perspectiva do Sol podemos perceber um grau de constância nas revoluções das estações, podemos perceber o que está por trás delas.
A observância dos equinócios, solstícios e dias cruzados é a maneira mais produtiva de desenvolver a consciência solar em um nível sazonal. A forma real de observância é relativamente sem importância, desde que haja um esforço conjunto para conectar a ocasião ao próprio Sol, para refletir sobre onde ele está, onde esteve e para onde está indo, para desenvolver uma consciência tangível da constância dos ciclos do Sol – ou, mais precisamente, dos ciclos da Terra que dão a ilusão dos ciclos do Sol – para que essa constância possa ser apreendida diretamente.
Assim, nossa percepção muda significativamente de dia para noite e de estação para estação, mas o desenvolvimento de uma consciência solar, e não terrena, pode resultar na percepção “daquilo que permanece” por trás dessas mudanças, exatamente da mesma forma que o rompimento dos véus do Khu pode resultar na percepção “daquilo que permanece” por trás das sombras do eu consciente, que é o Khabs, o “eu verdadeiro”, a estrela que é identificada com o Sol. A “consciência solar” que é desenvolvida por uma forma de “adoração” do Sol físico se traduz diretamente no tipo de “consciência solar” em que a mente consciente está ciente de seu próprio Sol – do Khabs – como algo separado dos fantasmas turbilhonantes, tempestuosos e mutáveis da própria mente consciente. Ao desviar a atenção de um canto obscuro do Sistema Solar para o seu coração brilhante, pode-se alcançar o movimento do que os budistas às vezes chamam de “mente pequena” para o que eles chamam de “mente grande”, que é exatamente o que implica a “expansão da consciência”.
Naturalmente, a atenção ao Sol não provocará essa mudança por si só, mas certamente inclinará o indivíduo nessa direção, na medida em que será necessária apenas uma extrapolação relativamente modesta do que ele já sabe para fazer a conexão. Há muito debate na “comunidade Thelêmica” sobre se Thelema constitui ou não uma “religião”, mas, no sentido de religião como “um conjunto fundamental específico de crenças e práticas”, é realmente esse tipo de prática ritual que a qualificaria, as práticas culturais que são passíveis de gerar o tipo de consciência que buscamos, em vez das práticas que a geram diretamente. É claro que se pode questionar se esse conjunto de práticas poderia ser adequadamente descrito como “Thelêmico”, já que, embora estejam em harmonia com ele, não surgem necessariamente dele, apesar da óbvia conexão solar.
Já foi dito que o objetivo de Thelema é retornar a um estado de inocência, mas com a compreensão que vem da queda. Da mesma forma, pode ter chegado a hora de retornar à religião pagã original, a única que se baseia na realidade da natureza, mas com o entendimento que vem da experiência. É claro que não deve haver questões de “reconstrucionismo”; não há benefício em tentar replicar cegamente as práticas dos ancestrais, pois fazer isso é, de fato, perder a realidade que estamos buscando. É difícil ver que benefício obteríamos ao usar o termo “religião”, pois isso corre o risco de o foco recair sobre a religião em si, em vez daquilo que ela representa. Em vez disso, como primeiro passo, deveríamos apenas começar a prestar atenção na natureza, cujos “símbolos são sempre verdadeiros”, de modo que nossas práticas diárias e nosso foco reflitam e incentivem o que estamos tentando alcançar: o desenvolvimento da consciência solar e a percepção do ponto de vista do Sol.
Notas
- AL II, 5
- Escrito por Charles Stansfeld Jones.
- AL II, 9
- AL I, 3
- AL I, 8
- AL I, 3
- Pois nos é dito que “O Khabs está no Khu” em AL I, 8.
- Consulte O Khabs está no Khu.
- Consulte O Método do Amor.
- Consulte As Cartas Menores do Tarô para uma análise mais aprofundada desta ideia, em particular o Capítulo 1, Uma Estrutura Cabalística.
- O “Novo Æon” referido no extrato apresentado no início deste ensaio. Diz-se que o início de tal æon ocorre num “Equinócio dos Deuses”, sendo um equinócio obviamente um evento solar.
- A semelhança sonora entre “son” [N. T. “filho”] e “Sun” [N. T. “Sol”] é satisfatória, embora não particularmente esclarecedora.
- Hórus é representado como tendo a cabeça de um falcão, ou falcão, sendo óbvia a conexão com o céu.
- AL II, 3
- AL II, 6
- i.e. Nuit.
- AL I, 16
- AL II, 21
- AL II, 48
- O signo de Leão é regido pelo Sol.
- ou seja para “rasgar os véus” do Khu.
- As Confissões de Aleister Crowley.
- Esses quatro estágios do ciclo solar diário têm uma correlação direta com os quatro estágios do ciclo solar anual, sendo o equinócio de primavera, o solstício de verão, o equinócio de outono e o solstício de inverno, respectivamente.
- A saudação “Saudações a Ti” aparece com destaque nas adorações de Resh.
- E também fez uma aparição notável em seu romance Moonchild, que foi parcialmente ambientado na Abadia.
- 93 = Θєληµα = Aγαρє.
- O seu calor na pele pode ser sentido, por exemplo.
- Christopher Hitchens falou muito sobre a ideia da suposta “natureza amorosa” de Deus ser, na verdade, mais parecida com uma forma eterna e inescapável de “ditadura divina”, e a vida eterna em qualquer forma se tornaria rapidamente intolerável.
- Consulte A Cruz Cabalística para uma análise mais aprofundada da ideia de “expansão da consciência”.
- Novamente, consulte O Método do Amor.
- AL I, 9
- Liber Aleph vel CXI.
- Com isso em mente, é possível diminuir um pouco nossa crítica ao cristianismo, quando nos lembramos de que o mito de Jesus – diferente do próprio homem – nada mais é do que uma personificação da progressão das estações.
Bibliografia
- Crowley, A., The Book of the Law, Liber AL vel Legis sub figurâ CCXX, Ordo Templi Orientis/Londres-Inglaterra, 1ª edição, 1938
- Jones, C.S., Stepping out of the Old Æon and into the New, aparecendo em The Equinox, Volume III, Número I, The Universal Publishing Company/Detroit-Michigan, 1ª edição, 1919
- Hessle, E., The Khabs is in the Khu, Publicado privadamente/USA, 1ª edição, 2007
- Hessle, E., The Method of Love, Publicado privadamente/EUA, 1ª edição, 2007
- Hessle, E., The Small Cards of the Tarot, Publicado privadamente/EUA, 1ª edição, 2007
- Crowley, A., Liber Resh vel Helios sub figurâ CC aparecendo em The Equinox, Volume I, Número VI, Wieland & Co./Londres-Inglaterra, 1ª edição, 1911
- Crowley, A., Magick Without Tears, Thelema Publishing Co./Hampton-Nova Jersey, 1ª edição, 1954
- Crowley, A., (ed. Symonds, J., Grant, K.) The Confessions of Aleister Crowley, Arkana Penguin Books/Londres-Inglaterra, 1989
- Crowley, A., Moonchild, Mandrake Press/Londres-Inglaterra, 1ª edição, 1929
- Hessle, E., The Qabalistic Cross, Publicado privadamente/EUA, 1ª edição, 2007
- Crowley, A., The Book of Thoth, Weiser Books/Londres-Inglaterra, 1971
- Crowley, A., Liber Aleph vel CXI — The Book of Wisdom or Folly, Thelema Publications/West Point-California, 1ª edição, 1961
Fonte: https://www.erwinhessle.com/writings/pvsun.php
Alimente sua alma com mais:

Conheça as vantagens de se juntar à Morte Súbita inc.