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Thelema

Uma Cartilha Thelêmica

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por Erwin Hessle. Traduzido por Caio Ferreira Peres.

O que é Thelema?

Thelema é uma filosofia espiritual desenvolvida pelo poeta inglês Aleister Crowley (1875-1947) durante a primeira metade do século XX. Seu texto central é O Livro da Lei, também chamado Liber AL vel Legis, que Crowley alegou ter “recebido” em 1904, no Cairo, por meio de um ditado audível de “Aiwass”, um ser cuja natureza ele nunca conseguiu explicar satisfatoriamente. Ele afirmou que “se Aiwass é um ser espiritual ou um homem conhecido por [Crowley], é uma questão de mera conjectura”, mas disse que Aiwass era “uma Inteligência que possuía poder e conhecimento absolutamente além da experiência humana; e, portanto, . . um Ser digno, como o uso atual da palavra permite, do título de Deus.”1

A ideia de um livro ser ditado por um “Deus” é um desafio à credulidade da maioria das pessoas razoáveis. No entanto, Thelema é única entre as “religiões”, pois, embora tenha um texto central que contém a verdade, essa verdade é independente de suas origens. Os thelemitas consideram que O Livro da Lei contém declarações que podem ser demonstradas como verdadeiras; eles não consideram que uma declaração seja verdadeira apenas pelo fato de constar no Livro da Lei. Se fosse demonstrado que uma declaração no Livro da Lei estava incorreta, os thelemitas aceitariam a falibilidade do livro. Em última análise, as idéias subjacentes à filosofia de Thelema podem existir e existem separadamente de seu texto central.

Thelema é uma religião?

As opiniões variam sobre essa questão; alguns dizem que sim e outros dizem que não. No sentido de que uma religião é “um conjunto fundamental específico de crenças e práticas geralmente aceitas por várias pessoas”, então Thelema pode se qualificar como uma, embora muitos thelemitas possam discordar do uso da palavra “crenças”; Thelema não exige que seus adeptos professem fé em quaisquer supostas “verdades”. No sentido de que uma religião é um conjunto de crenças sobre a criação do universo, a adoração de um ser supremo, a natureza de uma suposta “vida após a morte” e a prescrição de padrões morais, Thelema certamente não é uma religião. Os thelemitas não acreditam em “deuses”, ou em vida após a morte, ou em qualquer forma de retribuição divina. Thelema não exige nenhuma crença no sobrenatural.

Muitos thelemitas preferem descrever Thelema como uma “filosofia”, ou uma “filosofia espiritual”, ou um “caminho”, ou mesmo apenas um “sistema”. Não é particularmente importante o rótulo que se escolhe empregar.

A vontade

O ensinamento central de Thelema é que todos devem agir de acordo com suas próprias naturezas e que todos, de fato, agiriam de acordo com suas próprias naturezas se não fossem impedidos de fazê-lo por suas mentes. Essa restrição assume uma de duas formas:

  1. ignorância da própria natureza – uma pessoa pode se considerar um artista, mas, na verdade, ser mais adequada à prática da advocacia. Como alternativa, os pais podem ter ensinado a carreira de médico desde cedo, a ponto de a própria pessoa acreditar nisso, quando na verdade poderia ser mais feliz como soldado; e
  2. rejeição da própria natureza – a pessoa pode conhecer a própria natureza, mas rejeitá-la, talvez de acordo com um código particular de moralidade ou na crença de que deve viver para “propósitos mais elevados”. O cristianismo, por exemplo, declara que a natureza humana é fundamentalmente “pecaminosa”. A ignorância e a rejeição da natureza de uma pessoa muitas vezes se sobrepõem, pois a recusa em aceitar que algo possa fazer parte da natureza de uma pessoa pode cegá-la para o fato de que isso acontece.

A mente pode ser um véu complexo e extremamente opaco em torno da natureza real da pessoa, apresentando obstáculos conscientes e inconscientes. A mente tem a tendência de acreditar que o universo funciona ou deveria funcionar da maneira que gostaríamos que funcionasse; Thelema nos ensina que devemos aceitar e interagir com o universo como ele realmente é, exorcizando as restrições mentais que nos levam a interagir com o mundo e com nós mesmos em uma base fundamentalmente equivocada.

A expressão irrestrita da natureza real de uma pessoa é chamada de “vontade” em Thelema, muitas vezes em letra maiúscula como “Vontade” ou qualificada como “Verdadeira Vontade” para distingui-la da vontade restrita “falsa” ou “consciente”.

O objetivo prático do thelemita é, portanto, descobrir e depois realizar sua vontade.

Moralidade

Thelema ensina que a moralidade é ilusória, que é simplesmente um erro afirmar que algo é “bom” enquanto outra coisa é “ruim”, um erro que restringe a vontade ao submetê-la às preferências imaginárias da mente quanto ao que é “certo” ou “adequado”. Um indivíduo que pensa que é “moralmente correto” agir de uma determinada maneira contrária à sua natureza real pode deixar de seguir sua vontade porque a rejeita ou se atormentará com sentimentos de culpa e vergonha quando for fiel à sua natureza, independentemente de suas crenças morais. Thelema ensina que todos os “padrões de conduta” são criações da mente, que não têm realidade fora dessa mente e que, portanto, a natureza real é o único guia válido e real para a conduta.

O fato de os thelemitas rejeitarem a moralidade não significa automaticamente que eles agirão de maneiras que, na sociedade atual, seriam descritas como “imorais”. Os códigos morais explícitos são geralmente codificações da prática comum. Isso significa que as pessoas não evitam torturar bebês porque isso é considerado “imoral”, por exemplo, mas que isso é considerado “imoral” porque a grande maioria das pessoas evita fazê-lo e não deseja fazê-lo. Em outras palavras, as pessoas geralmente não fazem “escolhas morais” por referência a um código de conduta externo explícito, mas por referência à sua própria natureza, por referência às suas preferências e valores naturais. O fato de um thelemita não considerar o assassinato como “errado”, por exemplo, não significa que ele subitamente começará a sair e a assassinar pessoas, simplesmente porque não era sua convicção moral que o impedia de assassinar em primeiro lugar.

De fato, é provável que a adesão a um código moral externo tenha mais probabilidade de levar ao que seria descrito como “comportamento imoral” do que o abandono desse código. A crença moral, por exemplo, de que a homossexualidade e a bruxaria são pecados, ou a crença moral de que é “certo” exterminar os judeus para beneficiar o resto da população, levou a uma grande quantidade de sofrimento e “maldade” que provavelmente não teria ocorrido se os indivíduos responsáveis não fossem motivados por convicções morais. As crenças morais fornecem uma justificativa para interferir na vida de outras pessoas de forma aleatória e arbitrária. Thelema ensina que se todos agissem de acordo com suas naturezas reais e abandonassem os conflitos internos e as falsas crenças que surgem da aceitação da realidade da moralidade, é provável que houvesse muito menos conflitos.

Governo

Thelema não se preocupa com governo ou política mundana. Em particular, Thelema não promove a criação de uma sociedade anárquica sem qualquer forma de restrição legal. Thelema descarta quaisquer noções de moralidade, de modo que não considera o assassinato como “errado”, por exemplo, mas, pela mesma razão, também não considera a punição dos assassinos pela sociedade como “errada”. Thelema é uma filosofia totalmente individual.

Pode-se dizer que qualquer forma de governo é consistente com Thelema. Alguns consideram que Thelema implica, se não em uma sociedade anárquica, pelo menos em uma sociedade libertária, na qual os cidadãos geralmente têm o máximo de liberdade possível para descobrir e seguir suas vontades, desde que concedam essa liberdade também a outros cidadãos. Na realidade, a única exigência que Thelema impõe é que cada um faça a sua vontade. Uma ditadura brutalmente opressiva poderia ser considerada consistente com Thelema se o ditador estivesse agindo de acordo com sua vontade.

Como a vontade de uma pessoa não pode ser conhecida por outra, Thelema não pode ser usada de forma sensata para promover uma forma de governo em detrimento de outra, e não se pode dizer que uma política seja “mais thelêmica” do que outra. Fazer isso seria simplesmente transformar Thelema em um tipo alternativo de moralidade, algo que ela rejeita explicitamente. Dito isso, uma vez que o thelemita atende à sua própria vontade, é razoável supor que a maioria dos Thelemitas não teria um interesse excessivo na vida dos outros e que, portanto, a maioria teria uma preferência pela liberdade individual e pela liberdade em relação ao controle governamental excessivo.

Morte e criação

Thelema não tem fábulas ou crenças sobrenaturais sobre qualquer forma de vida após a morte. Ela ensina que a morte é realmente a morte e que, longe de ser uma maldição, a mortalidade é algo mais parecido com uma dádiva. Uma alma imortal não ofereceria nenhuma esperança de fuga ou alívio; seria uma horrível escravidão eterna. Thelema ensina que a morte é a cessação de toda preocupação e labuta, a liberdade suprema e o descanso perfeito.

Além disso, é somente a mortalidade que dá à vida algum significado. Com uma alma imortal, teríamos uma quantidade infinita de tempo para fazer uma quantidade infinita de coisas, não importa quanto tempo esperássemos para começar.

Portanto, é difícil ver como poderia haver alguma motivação para fazer qualquer coisa. Uma quantidade finita de vida dá significado às nossas escolhas, porque cada escolha reduz o número de escolhas que nos restam. Nossas ações e escolhas determinam o que somos e, com uma quantidade finita de opções disponíveis, cada escolha e cada ação se torna uma expressão de individualidade, uma declaração alegre do ser essencial, que fornece a motivação do thelemita.

Thelema também não tem fábulas ou crenças sobrenaturais sobre a criação do universo e as origens da vida. Essas questões são consideradas como sendo do domínio da ciência e não da religião e, quando não há resposta científica atualmente, não é considerado sensato inserir “respostas” religiosas imaginárias em seu lugar.

O mundo natural

A maioria dos thelemitas tem amor pelo mundo natural, já que a vontade é a interação entre ele e o seu eu. No entanto, esse amor não é de natureza sentimental, “ambientalista” ou ludita. O thelemita considera que a humanidade é tão parte do mundo natural quanto qualquer outra coisa, e que seu próprio impacto sobre ele não é menos “natural” do que a construção de um formigueiro ou de uma represa de castores. Portanto, embora ele não considere a raça humana um parasita na face da Terra, ele tenderá a ter uma afinidade com o mundo “não feito pelo homem”, pois passar tempo com ele, fora do tumulto da sociedade humana, o impressiona com sua própria posição como um ser natural.

Em particular, o Sol – no centro do Sistema Solar – é visto por muitos thelemitas como um símbolo de seu próprio “verdadeiro eu”, em torno do qual gravitam sua mente, corpo, personalidade e caráter. Em seus aspectos religiosos, Thelema tem as características das religiões solares e de outras religiões baseadas na natureza e, nesse sentido, tem uma certa afinidade com as religiões pagãs, embora os ensinamentos morais dessas últimas muitas vezes entrem em conflito com a amoralidade de Thelema, pois tais ensinamentos são considerados pelos thelemitas como “não naturais” no sentido de “feitos pelo homem”.

Magick

Thelema tem uma associação infeliz com o “ocultismo”, principalmente devido ao fato de que seu fundador, Aleister Crowley, era um ocultista e “mago” proeminente e escreveu extensivamente sobre esses assuntos. No entanto, as ideias e os princípios centrais de Thelema são totalmente separáveis

do ocultismo, embora algumas pessoas considerem que “Thelema” engloba todo o sistema ocultista de Aleister Crowley, e não o sistema exposto em O Livro da Lei.

Como o lado prático de Thelema requer uma investigação rigorosa da natureza real do eu, muitas práticas podem ser empregadas pelo thelemita – como meditação, divinação e ritual – que são de natureza religiosa ou ocultista. No entanto, não há necessidade de acreditar em nenhuma das várias “teorias” sobrenaturais que geralmente acompanham essas práticas.

Organizações

Não existe uma organização ou igreja thelêmica “oficial”. Aleister Crowley liderou duas grandes organizações durante sua vida:

  • A A A – uma organização dedicada ao desenvolvimento individual, em que cada membro (abaixo de um determinado nível) conhece apenas o membro que o apresentou e os membros que ele apresentou; e a
  • Ordo Templi Orientis (OTO) – uma organização fraternal com raízes na maçonaria, dedicada a fornecer instruções sobre determinadas técnicas de magia sexual.

Após a morte de Crowley, essas organizações deixaram de existir. No entanto, várias pessoas com conexões com Crowley em ambas as organizações “reivindicaram a sucessão” e uma variedade de grupos com esses nomes existe atualmente, muitas vezes brigando entre si. Várias organizações

afirmam ser “linhagens” da A A e reivindicam a sucessão de Aleister Crowley, geralmente por meio de um membro de nível muito baixo. O maior dos grupos que reivindicam o nome de Ordo Templi Orientis foi criado na década de 1960 por Grady Louis McMurtry e hoje reivindica algo em torno de 2.000 membros. Sua apresentação religiosa de Thelema é radicalmente diferente da apresentada nesta cartilha, sendo seus ritos, rituais e estrutura fortemente influenciados pelo cristianismo católico. Outra variante da Ordo Templi Orientis, que afirma que o “coração da magia” é o contato com alienígenas extraterrestres, é liderada por Kenneth Grant. Existem muitas outras organizações menores.

Seguindo em frente

Os interessados em saber mais sobre Thelema podem começar lendo alguns dos outros escritos do autor.2 Recomendamos especialmente:

Depois disso, pode-se começar a ler o blog3 de Erwin, que é atualizado regularmente, e alguns outros textos thelêmicos importantes, incluindo O Livro da Lei, também disponíveis no mesmo site.

Quando o indivíduo começa a explorar Thelema a partir de outras fontes, ele deve estar ciente de que existem muitas interpretações diferentes e, conforme mencionado na seção anterior, algumas delas diferem radicalmente da interpretação dada nesta cartilha. Algumas interpretações estão centradas na política, variando de uma espécie de filosofia fascista de “raça superior” em um extremo até uma forma de socialismo moderado no outro. Outras interpretações lidam fortemente com práticas ocultas e tratam da evocação de espíritos, do contato com alienígenas extraterrestres e de descrições fantasiosas de “estados de consciência” místicos. Aconselhamos o leitor a empregar uma dose saudável de bom senso e ceticismo ao considerar essas interpretações alternativas.

Faz o que tu queres deverá ser o todo da Lei.

Notas:

1. O Equinócio dos Deuses

2. Atualmente, todos disponíveis em http://www.erwinhessle.com

3. Em http://www.erwinhessle.com/blog/

 

Bibliografia

  1. Crowley, A., The Book of the Law, Liber AL vel Legis sub figurâ CCXX, Ordo Templi Orientis/Londres-Inglaterra, 1ª edição, 1938
  2. Crowley, A., The Equinox of the Gods, BM/JPKH/Londres Inglaterra, 1ª edição, 1937
  3. Hessle, E., True Will, Publicado privadamente/EUA, 1ª edição, 2007
  4. Hessle, E., The Khabs is in the Khu, Publicado privadamente/EUA, 1ª edição, 2007
  5. Hessle, E., Fundamentals of Thelemic Practice, Publicado privadamente/EUA, 1ª edição, 2008
  6. Hessle, E., The Point of View of the Sun, Publicado privadamente/EUA, 1ª edição, 2007

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