Categorias
Alquimia

V. Leve o sapo ao seio

Leia em 5 minutos.

Este texto foi lambido por 65 almas esse mês

Tamosauskas.
“Os Novos Discursos de Atalanta”

As coisas começam a se tornar mais misteriosas no quinto emblema de Atalanta Fugiens. Em uma cidade antiga, um homem se aproxima de uma mulher e lhe entrega um sapo, enquanto o animal mama em seu seio direito, exposto para fora do vestido. O poema que acompanha a imagem descreve como, ao beber o leite, o sapo incha e, dessa ação, nasce um “remédio nobre”.

Novamente, encontramos a representação do masculino e do feminino em um contexto alquímico. Ele representa o espírito e ela é a matéria. Ele não pode atuar aqui e dela depende. Ela deve nutrir a criação, primeiro com seu próprio sangue e, depois, com seu leite. Essa transferência não ocorre sem dor ou sacrifício. Há dor nela em ter que fazer todo trabalho, mas há dor nele também em não poder fazer nada. Apenas quando desmamado e quando a natureza lhe conceder dentes, a criança da alma estará apta para se alimentar de comida sólida. O leite na alquimia frequentemente simboliza a alimentação da alma, como vimos no emblema II. Mas não a criança está perdida. Ela não está nessa cena.

Então, vamos falar do sapo no meio da sala.

Imediatamente ao nos depararmos com este emblema ao  algo de repulsivo e grotesco em sua imagem. Um anfíbio venenoso consome o leite originalmente destinado a crianças. A presença do sapo desperta inquietação, como em muitas lendas de serpentes e dragões que sugam o leite das vacas, ou de príncipes que fariam o mesmo se tivessem oportunidade. Podemos lembrar ainda que Cleópatra se suicidou deixando víboras nos seios; das nagas indianas, dos zmags eslavos e até dos lendários chupa-cabras de Porto Rico. Todos estes estão associados ao consumo de sangue e leite.

Nos séculos XVI e XVII, utilizava-se pó seco de pele de cobra venenosa sobre feridas, com o propósito de atrair e remover os venenos de maneira “magnética.” Já no século XIX, a homeopatia consolidou a ideia de que “semelhante cura semelhante.” Hoje, utilizamos o RNA de vírus para combater infecções virais. Ao longo da história, a humanidade tem recorrido aos próprios agentes patogênicos para desenvolver terapias de combate a doenças. Inicialmente, não possuíamos uma teoria robusta para fundamentar esses métodos; guiávamo-nos apenas pela intuição de que tais práticas poderiam trazer algum benefício. O alquimista quer saber o porquê disso.

No laboratório prático não se remove o tal do princípio de morte das plantas, metais ignorando sua presença, mas sim confrontando-o. Não há nenhuma operação alquímica que não seja em algum nível um tipo de confronto entre a aparência e a essência, entre o que se é e se é o que será. E como estamos nos primeiros trabalhos, lembremos este é apenas o quinto emblema, o caldo é mais grosso, há muita fumaça e forças sombrias a se enfrentar e o confronto é mais difícil e causa mais repulsa e vontade de sair correndo.

Não é só pelo sapo ser feito, ele também é perigoso. Em seu discurso o autor do Atalanta descreve que, à medida que o sapo cresce em força e poder, sua ama de leite enfraquece, consumindo-se até a morte, pois o alimento carrega também o veneno. A lei alquímica da troca equivalente é tão draconiana quanto qualquer lei da física, se o velho não vai o novo não vem, para que algo novo e potente nasça, algo deve passar pela transformação da morte. O sapo além de asqueroso está agredindo a mulher.

Mas então há uma reviravolta no roteiro: o sapo é o “filho” do casal. O sapo parece horrendo, mas seu sofrimento é equivalente. Ele tem direito ao alimento, e não é de seu desejo que sua genitora morra.  Talvez seja monstruoso ter um filho sapo, mas, do ponto de vista do sapo, é terrível ter pais humanos. Quanto ao veneno, ao beber o leite, ele se torna seu próprio antídoto. Muitos componentes que tornam uma substância venenosa são também a chave para uma resposta terapêutica. Essa dinâmica entre veneno e cura é um conceito central na alquimia, onde a transformação é obtida através do equilíbrio e da síntese de opostos representadas pelo sangue e pelo leite, ou pelo mercúrio vermelho e branco. As soluções para os nossos problemas muitas vezes se encontram dentro das próprias adversidades, e embora seja difícil olhar para elas como realmente há sempre uma poção que pode ser destilada do próprio veneno.

Se o casal renunciasse o sapo, ou se ele fugisse assustado após o primeiro contato, tanto ele como sua mãe morreriam. A estranheza precisa ser encarada. Este sapo representa o fruto de nossas batalhas com a vida, que nos leva a ver tanto ela quanto a nós mesmos como algo indesejável, monstrificando tudo ao redor. Não é fácil, e a transformação envolve o medo e a repulsa. Veja ao fundo do emblema os soldados assustando o cachorro, e o cachorro assustando os soldados.

Há uma relação deste sapo com a vida material. A conexão do sapo com a terra é um mistério que fomentou muitos debates durante os séculos XVIII e XIX. A lenda dos sapos fossilizados vivos, surgida de inúmeros relatos sobre pequenos animais encontrados vivos dentro de pedras sólidas, inspirou muitos questionamentos e estudos. Hoje, sabe-se que esse fenômeno ocorre porque os girinos podem entrar em pequenas rachaduras, ficando presos e, eventualmente, encapsulados no interior da pedra. Para a alquimia, a matéria, o corpo nunca foi visto como algo intrinsecamente maligno. Pelo contrário, muitas vezes a matéria era considerada uma manifestação do divino ou uma expressão primordial do sagrado. O mal, segundo essa visão, reside no desequilíbrio interno, na confusão mental, na desarmonia entre os princípios do Mercúrio e do Enxofre. 

Essa dualidade entre a prisão e a libertação remete ao processo alquímico em que os elementos são retidos e trabalhados em um estado primitivo até que estejam prontos para emergir transformados. Se sapos comuns podem escapar de pedras comuns, então, pela lei da dualidade, um outro tipo de sapo aguarda para ser liberto de uma outra “pedra”. Assim como girinos perdidos, nascemos no mundo material e, de certa forma, permanecemos presos nele até que sua “casca” – nossa rigidez e limitações materiais – seja rompida. O sapo da imagem somos eu e você, filhos do Pai Espírito e da Mãe Matéria. E permaneceremos fugindo do que nos causa repulsa enquanto não “visitarmos o centro da terra e retificarmos”.  Mas ao trazer o “sapo ao seio” — uma metáfora para acolher e integrar algo potencialmente perigoso — e incorporar uma pequena porção de seu veneno, não se pretende causar dano, mas sim provocar uma reação oposta, o surgimento do “leite da virgem,” que simboliza a restauração do equilíbrio interno.

A alquimia nos ensina, então, que devemos levar o sapo ao seio, confrontar nossos monstros internos com compaixão e paciência, permitindo que o veneno se transforme em cura. O sapo então se tornará a criança perdida. O monstro éramos nós esse tempo todo.


Conheça as vantagens de se juntar à Morte Súbita inc.

Deixe um comentário


Apoie. Faça parte do Problema.