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por Rafael Ferreira.
“Os homens são bons de um modo apenas, porém são maus de muitos modos”
(Aristóteles, Ética a Nicômaco)
Certamente o desafio de escrever sobre o livre-arbítrio humano seria uma excelente conversa de boteco, se eu morasse na mesma cidade que Edu Berlim. Além dele me entregar um copo cheio de audácia com leituras sobre Dawkins, vou apontar como estamos alinhados com propósitos que não são fruto da nossa vontade, mas de algo que beira o horror cósmico – o desconhecido que espreita por trás de nossas ilusões de liberdade.
Assim como os personagens de Lovecraft se deparam com forças incompreensíveis que destroem suas percepções de controle, nós, seres humanos, acreditamos piamente que estamos no comando de nossas vidas. No entanto, as descobertas de Dawkins nos fazem encarar um paradoxo desconfortável: e se todo o conceito de liberdade não passar de uma ficção bem contada, uma narrativa interna construída para manter nossas máquinas biológicas em funcionamento? Somos apenas passageiros na correnteza da vida, enquanto os genes, essas entidades invisíveis e indiferentes, escrevem o roteiro.
Quando acreditamos estar fazendo escolhas livres, estamos, na verdade, operando sob diretrizes invisíveis, tão alienígenas quanto as entidades de Lovecraft. Para Dawkins, nossos comportamentos são programados por genes que agem de forma egoísta e calculada. Somos veículos para essas sequências genéticas, cujo único objetivo é a replicação. Toda sensação de escolha é um truque evolutivo, um mecanismo para garantir que continuemos a seguir em frente, alimentando e reproduzindo, como personagens em uma história que não compreendemos plenamente.
Aqui, o horror se revela: não há eu soberano no comando, apenas o impulso de sobrevivência mascarado como vontade própria. A liberdade que imaginamos possuir não é mais do que um software sofisticado rodando em nossa mente, enquanto seguimos diretrizes inscritas há milênios. Como aqueles que se veem à mercê de entidades cósmicas, nos debatemos em um mar de decisões e incertezas, mas cada escolha é uma ilusão arquitetada por algo maior, mais antigo e totalmente indiferente à nossa existência.
E talvez o verdadeiro horror não seja a ausência de um “eu” soberano, mas a resistência em aceitar essa condição. Se, em vez de lutar contra essa correnteza, nos deixássemos levar, descobriremos que viver é um convite constante à improvisação.
Mas e se essa aparente ausência de controle, esse impulso que nos guia como máquinas biológicas, não for um motivo para desespero, mas uma oportunidade de descoberta? Talvez a falta de um “eu” soberano seja uma libertação disfarçada. Se não estamos presos a uma vontade rígida e absoluta, podemos explorar o mundo como navegadores do imprevisível, aceitando que, mesmo sem controle total, cada momento se desenrola como uma nova possibilidade, inesperada e genuína.
Inclusive, há algo belo em saber que somos conduzidos por uma sequência de diretrizes invisíveis e antigas. Significa que, mesmo sem plena consciência, fazemos parte de uma história que começou muito antes de nós e continuará muito além. Assim como a gravidade guia o movimento dos planetas, nosso próprio impulso pela sobrevivência é um movimento natural do cosmos. E se somos parte dessa dança cósmica, o fato de não termos todas as respostas pode ser uma dádiva. A ignorância nos permite experimentar, falhar e aprender de novo, sem que o peso do absoluto nos paralise.
Embora Dawkins nos leve a crer que somos meros veículos dos genes, isso não significa que estamos condenados à insignificância. O fato de nossas ações serem motivadas por forças além da nossa compreensão não as torna menos significativas. Pelo contrário, viver plenamente é justamente aceitar o fluxo dessas forças, sabendo que há propósito no próprio ato de existir, mesmo que ele não esteja claro para nós. O erro e a falha, ao invés de serem obstáculos, tornam-se oportunidades – o impulso biológico que nos empurra a tentar de novo é, de certa forma, uma insistência vital que desafia o medo da derrota.
Talvez não haja liberdade no sentido tradicional, mas há uma liberdade implícita em abraçar o momento presente sem a necessidade de controle absoluto. Ao aceitar nossa natureza biológica e nossos limites, encontramos espaço para criar significados, para transformar a inevitabilidade em arte e a repetição em aprendizado.
Se a vida é um espetáculo evolutivo, somos tanto atores quanto público. Não sabemos ao certo qual é a próxima cena, mas podemos escolher como interpretá-la. Cada ato de rebeldia ou aceitação é uma variação do mesmo roteiro, e talvez o mais importante seja simplesmente estar presente – encenar o agora com a autenticidade que nos cabe.
E se, no final das contas, o livre-arbítrio não passa de um espetáculo destinado a entreter a nós mesmos? Talvez toda nossa luta por escolhas, sentido e propósito seja apenas um teatro evolutivo para garantir que continuemos jogando o jogo da vida. E talvez, apenas talvez, o universo não se importe se seguimos o roteiro ou tentamos improvisar.
Os antigos filósofos gregos, desde Sócrates até os estoicos, já intuíam que o verdadeiro desafio humano não estava em controlar o destino, mas em encontrar sabedoria dentro da incerteza. Para Platão, a caverna era um símbolo poderoso da nossa ignorância: presos às sombras, acreditamos compreender a realidade, mas a verdade plena sempre nos escapa. No entanto, o filósofo não se resigna – ele se esforça para contemplar o que está além das sombras, mesmo sabendo que talvez nunca alcance a luz por completo.
Aristóteles, em sua busca pela eudaimonia – a vida plena –, nos ensinou que o propósito da existência não é possuir controle absoluto, mas viver de acordo com a virtude. Assim, mesmo em um mundo onde somos conduzidos por forças invisíveis, há espaço para a ação deliberada: a sabedoria está em reconhecer nossas limitações e, ainda assim, agir com excelência dentro das opções que nos são apresentadas. Talvez o verdadeiro livre-arbítrio esteja na maneira como interpretamos e respondemos ao que nos acontece, e não na ilusão de que controlamos todos os eventos.
Os estoicos, por sua vez, ensinaram que há apenas duas esferas: o que está sob nosso controle e o que não está. A virtude reside em aceitar com serenidade aquilo que nos é dado e agir com coragem diante das escolhas que nos cabem. Epicteto nos lembraria que não importa o que acontece, mas como reagimos ao que acontece. O universo pode ser indiferente ao nosso esforço, mas nós podemos ser fiéis ao nosso caráter – e isso é uma liberdade que nem mesmo os deuses podem tirar.
Assim como Aristóteles sugeriu que a felicidade está na prática da virtude e Epicteto afirmou que devemos focar naquilo que está sob nosso controle, Dawkins nos leva a reconhecer que nosso comportamento é moldado por forças internas e externas que não dominamos. Porém, isso não elimina a possibilidade de vivermos com significado. Mesmo que sejamos levados a agir por impulsos evolutivos, podemos encontrar liberdade na forma como respondemos a esses impulsos. A virtude, nesse contexto, pode ser entendida como a habilidade de reconhecer nossa programação e ainda assim agir de maneira consciente e intencional.
Que não seja feita a nossa vontade, porque ela nunca foi apenas nossa. Ela pertence aos genes, ao cosmos, e ao mistério invisível que nos governa. Ainda assim, seguimos dançando – e talvez seja nessa dança, e não na ilusão do controle, que encontraremos o verdadeiro sentido de existir.
Mas se a tua opinião é outra, então ‘Que seja feita a Tua Vontade’.
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