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excerto de O Ramo de Ouro
Sir James George Frazer. Trad. Waltensir Dutra.
Não tocar a terra, não ver o sol
Percorremos um longo caminho desde que vol- tamos as costas a Nemi e iniciamos a busca do segredo do ramo de ouro. Entramos agora na última etapa de nossa longa viagem. O leitor que teve a paciência de acompanhar a pesquisa até agora pode lembrar-se de que nos propusemos, inicialmente, responder a duas perguntas: por que o sacerdote de Arícia tinha de matar seu antecessor? E por que, antes disso, tinha de arrancar o ramo de ouro? A primeira já foi respondida. O sacerdote de Arícia, se estamos certos, era um daqueles reis sagrados ou divindades humanas de cuja vida dependiam, intimamente, o bem-estar da comunidade e o próprio curso da natureza em geral. Ao que parece, os súditos ou adoradores desse potentado espiritual não tinham noção muito precisa da exata relação que mantinham com ele. Provavelmente suas idéias sobre a questão fossem vagas e flutuantes, e erraríamos se ten- tássemos definir essa relação com precisão ló- gica. Tudo o que sabiam, ou antes, imaginavam, é que, de alguma forma, eles próprios, seu gado e suas plantações estavam misteriosamente ligados ao seu rei divino, de tal forma que, conforme ele estivesse bem ou enfermo, a comunidade estaria bem ou enferma, as aves e os animais cresceriam saudáveis ou definhariam, e os campos proporcionariam uma colheita abundante ou escassa. O pior mal que podiam imaginar era a morte natural de seu governante, fosse de doença ou velhice, pois, segundo seu modo de ver, essa morte provocaria as mais desastrosas conseqüências para eles próprios e para seus bens; epidemias fatais varreriam homens e animais da face da terra, que se recusaria a produzir, e a própria ordem da natureza poderia dissolver-se. Para se proteger contra essas catástrofes, era necessário imolar o rei enquanto ele ainda estivesse em pleno vigor de sua virilidade divina, para que sua vida sagrada, transmitida em toda a sua força ao sucessor, pudesse renovar sua juventude e, dessa forma, por meio de transmissões sucessivas ao longo de uma linha perpétua de encarnações vigorosas, pudesse permanecer eternamente viçosa e jovem, um penhor e uma certeza de que homens e animais também poderiam renovar sua juventude pela sucessão perpétua de gerações, e de que a semeadura e a colheita, o verão e o inverno, a chuva e o sol jamais falhariam. Se nossa hipótese está certa, era essa a razão pela qual o sacerdote de Arícia, o rei do bosque de Nemi, tinha de perecer regularmente nas mãos de seu sucessor.
Mas ainda temos de indagar o que era o ramo de ouro, e por que todo candidato ao ofício sacerdotal de Arícia tinha de arrancá-lo antes que pudesse matar o sacerdote. A essa pergunta tentaremos agora dar resposta.
Será conveniente começarmos observando duas das regras ou tabus pelos quais, como já vimos, a vida dos reis ou sacerdotes divinos é regulada. A primeira dessas regras para a qual desejo chamar a atenção do leitor é a de que a personagem divina não podia tocar o chão com seus pés. Essa regra era observada pelo sumo pontífice dos zapotecas no México: ele profanava sua santidade se tocasse o chão com o pé. Montezuma, imperador do México, jamais co- locava os pés no chão — era sempre carregado nos ombros dos nobres e, quando caminhava, fazia-o sempre sobre ricas tapeçarias que iam estendendo à sua frente. Para o micado do Japão, tocar o chão com o pé era uma degradação vergonhosa, e, no século XVI, isso bastava para destituí-lo do cargo. Fora de seu palácio, era transportado sobre os ombros de homens; no interior dele, caminhava sobre requintadas esteiras.
Ao que tudo indica, a santidade, a virtude mágica, o tabu ou como quer que chamemos aquela qualidade misteriosa que se supõe existir nas pessoas sagradas, é considerada pelo fi- lósofo primitivo como uma substância ou fluido físico com o qual a pessoa sagrada está carregada, tal como uma garrafa de Leyden é carregada de eletricidade. E, exatamente como a eletricidade da garrafa pode ser descarregada pelo contato com um bom condutor, assim também a santidade ou virtude mágica da pes- soa pode ser descarregada e exaurida pelo contato com a terra, que, de acordo com essa teoria, serve de excelente condutor para o fluido mágico. Assim, para preservar a carga do des- gaste, a personagem sagrada ou tabu deve ser cuidadosamente impedida de tocar o chão. Em linguagem elétrica, deve ser isolada, para que não seja esvaziada da preciosa substância ou fluido do qual, como um frasco, está cheia até as bordas. E, em muitos casos, o isolamento dessa pessoa é recomendado como uma precaução não só em seu proveito pessoal, mas também no proveito de outros; isso porque, já que a virtude ou santidade ou tabu é, por assim dizer, um poderoso explosivo que o menor toque pode detonar, torna-se necessário, no interesse geral, mantê-lo bem protegido dentro de limites estreitos para que não venha a explodir e destruir tudo o que está em contato com ele.
Mas, além de pessoas, também as coisas podem estar carregadas da misteriosa qualidade de santidade ou tabu; por isso torna-se muitas vezes necessário, por motivos semelhantes, pro- tegê-las também do contato com o chão, para que não percam as suas propriedades valiosas e não se reduzam a meros objetos materiais comuns, cascas vazias das quais o grão bom foi retirado. Assim, por exemplo, o mais sagrado objeto da tribo arunta na Austrália central é, ou costumava ser, um mastro com cerca de seis metros, pintado de sangue humano, coroado com uma imitação de cabeça humana e fixado no local onde são realizadas as últimas cerimônias de iniciação dos rapazes. Um euca- lipto novo é escolhido para ser o mastro, e tem de ser derrubado e transportado de modo que não toque a terra até ser colocado no seu lugar no terreno sagrado. Esse mastro parece representar um famoso antepassado muito antigo.
Acredita-se, por vezes, que os implementos e remédios mágicos percam sua virtude em contato com o chão, sendo a volátil essência de que estão impregnados atraída, sem dúvida, pela terra. Asim, no distrito de Boulia, em Queensland, o osso mágico com que o feiticeiro nativo aponta para sua vítima como meio de matá-la nunca deve tocar a terra. As mulheres dos rajás de Macassar, distrito das Cele-bes do Sul, orgulham-se de suas abundantes tranças e têm grande trabalho para untá-las de óleo e preservá-las. Quando seus cabelos começam a enfraquecer, essas damas recorrem a muitos artifícios para evitar os efeitos da ação do tempo. Entre outras coisas, aplicam às suas madeixas uma gordura extraída de crocodilos e cobras venenosas. Acredita-se que o ungüento seja muito eficaz, mas, durante sua aplicação, os pés da mulher não podem entrar em contato com o chão, ou toda a eficiência do remédio se perderia.
A segunda regra a ser observada é a de que o sol não deve brilhar sobre a pessoa divina. Essa regra era observada tanto pelo micado como pelo pontífice dos zapotecas. Este último “era considerado como um deus que a terra não merecia ter, nem sobre ele merecia o sol brilhar”. Os japoneses não permitiam que o micado expusesse sua sagrada pessoa ao ar livre, e o sol não era considerado digno de brilhar sobre sua cabeça. Os índios de Granada, na América do Sul, “mantinham os que deveriam ser governantes ou comandantes, fossem homens ou mulheres, trancafiados durante vários anos quando crianças (alguns deles por sete anos), de tal modo que não deviam ver o sol e, se o vissem, perdiam o direito às honrarias; tinham de comer determinados alimentos, e seus guardiões iam, em determinadas ocasiões, aos seus retiros ou prisões e os flagelavam severamente”. Assim, também o herdeiro do rei de Sogamoso, antes de ascender ao trono, tinha de jejuar durante sete anos no templo, fechado no escuro e sem poder ver o sol ou a luz. O príncipe que se tornaria o inca do Peru tinha de jejuar durante um mês sem ver a luz.
Os camponeses da Acarnânia contam a história de um belo príncipe chamado Sem-sol, que morreria se visse o sol. Por isso, vivia num pa- lácio subterrâneo no local da antiga Oeniadae, mas, à noite, saía e atravessava o rio para visitar uma famosa feiticeira que morava num castelo na outra margem. Ela não gostava de ter de separar-se dele todas as noites muito antes do amanhecer, e, como ele se mostrasse surdo aos seus rogos para que permanecesse, teve a idéia de cortar o pescoço de todos os galos das vizinhanças. Assim, o príncipe, cujo ouvido es- tava treinado para esperar o canto dessas aves como sinal da iminência da manhã, retardou-se demais, e mal chegara ao rio quando o sol se levantou sobre os montes Etólios e seus raios fatais caíram sobre ele antes que pudesse retor- nar à sua morada subterrânea.
A reclusão das meninas na puberdade
É notável o fato de que as duas regras acima focalizadas — não tocar o solo e não ver o sol — sejam observadas separadamente ou em conjunto pelas meninas na puberdade em muitas partes do mundo. Assim, entre os negros de Loango, as meninas que estão na puberdade são confinadas em cabanas separadas e não podem tocar o chão com nenhuma parte do corpo nu. Entre os zulus e tribos aparentadas do sul da África, quando os primeiros sinais da puberdade se revelam, “enquanto a menina caminha, recolhe lenha ou trabalha nos campos, ela corre para o rio e se esconde entre os juncos, durante todo o dia, para não ser vista pelos homens. Cobre a cabeça cuidadosamente com seu cobertor para que o sol não a alcance e não a transforme num esqueleto seco, o que certamente resultaria do contato com os raios. Quando escurece, a menina volta para casa e é isolada numa cabana” por algum tempo. Durante sua reclusão, que dura cerca de uma quinzena, nem ela nem as moças que dela tomam conta podem beber leite, pois, se o fizerem, o gado morrerá. E se a primeira menstruação começar quando ela estiver nos campos, deve, depois de esconder-se no mato, evitar cuidadosamente todas as trilhas para voltar para casa.
Quando os sintomas da puberdade surgiam pela primeira vez numa menina, os guaranis do sul do Brasil, na fronteira com o Paraguai, costumavam costurá-la numa rede, deixando apenas uma pequena abertura para que respirasse. Assim embrulhada e envolvida como um cadáver ela permanecia dois ou três dias, ou enquanto durassem os sintomas, período durante o qual tinha de observar rigoroso jejum.
Depois, era confiada a uma matrona, que lhe cortava o cabelo e lhe recomendava rigorosa abstinência de carne de qualquer tipo até que o cabelo houvesse crescido o suficiente para esconder-lhe as orelhas. Enquanto isso, os adi- vinhos procuravam conhecer o caráter futuro da menina pelos vários pássaros ou animais que voavam ou cruzavam o seu caminho. Sc viam um papagaio, diziam que ela seria faladora; se viam uma coruja, que seria preguiçosa e imprestável para os trabalhos domésticos, e assim por diante.
No Camboja, uma menina na puberdade é posta na cama, sob um mosquiteiro, e ali deve permanecer durante cem dias. Habitualmente, porém, quatro, cinco, dez ou vinte dias são considerados suficientes, e mesmo isso, num clima quente e sob a trama cerrada do cortinado, é suficientemente desconfortável. Segundo outro relato, uma virgem cambojana na puberdade deve “ficar na sombra”. Durante esse retiro, que, de acordo com a classe e a posição de sua família, pode durar de uns poucos dias a vários anos, ela tem de observar certas regras, tais como não ser vista por um estranho, não comer carne ou peixe, etc. Não vai a nenhum lugar, nem mesmo ao pagode. Mas esse estado de reclusão é interrompido durante eclipses; nessas ocasiões, ela sai para fazer suas devoções ao monstro que se supõe ser o causador dos eclipses, prendendo os corpos celestes em seus dentes. Essa permissão de interromper a reclusão e sair durante um eclipse parece mostrar como é interpretada literalmente a lei que proíbe as moças na fase de transformação em mulher de olhar para o sol.
Os fogos e os desastres
De acordo com o Talmude, se uma mulher no início de sua menstruação passar entre dois homens, matará com isso a um deles. Se passar entre eles no final da menstruação, apenas fará com que briguem violentamente. Maimônides nos diz que, até a sua época, era costume habitual no Oriente manter as mulheres menstruadas numa casa isolada e queimar qualquer coisa em que houvessem pisado. O ho- mem que falasse com uma delas, ou que sim- plesmente fosse alcançado pelo mesmo vento que tivesse soprado sobre ela, tornava-se im- puro. As crenças e superstições desse tipo que predominavam entre as tribos ocidentais da grande raça déné, ou tinneh, a que pertencem os chippeways, foram bem descritas por um missionário experiente.
Entre os ritos cerimoniais desses índios destacavam-se, diz ele, “as observancias peculiares ao belo sexo, e muitas delas são notavelmente análogas às praticadas pelas mulheres hebréias, a tal ponto que, se isso não tivesse um ar de profanação, poderíamos dizer que as regras do código ritual déné poderiam ser consideradas como uma nova edição, revista e consideravelmente aumentada, da lei cerimonial mosaica”.
O filósofo que estuda a natureza humana observará sem surpresa que as idéias assim tão arraigadas na mente do selvagem reaparecem, numa fase mais avançada da sociedade, nos complicados códigos estabelecidos para a ori- entação de certos povos pelos legisladores que pretendem ter recebido as leis que promulgam por inspiração direta da divindade. Qualquer que seja a explicação que lhe dermos, a semelhança que existe entre as primeiras manifestações oficiais da divindade e as idéias dos selvagens é indubitavelmente grande e notável. Isto tanto pode dever-se a que, como querem alguns observadores, Deus comungasse diretamente com o homem naqueles dias remotos, como a que, como pretendem outros, o homem considerasse, enganosamente, seus pensamen- tos incontrolados e fantasiosos como a revelação dos céus. Seja como for, a verdade é que a impureza natural da mulher em seus períodos menstruais mensais é uma concepção que ocorreu ou foi revelada com singular unanimidade a vários legisladores antigos, entre os quais estão o hindu Manu, Zoroastro e Moisés. Assim, o objetivo de isolar as mulheres durante a menstruação é neutralizar as influências perigosas que se supõe emanarem delas nessas ocasiões. Que o perigo parece ser parti- cularmente grande na primeira menstruação, evidencia-se nas precauções excepcionais to- madas para isolar as meninas nessa crise. Duas dessas precauções foram ilustradas acima, ou seja, o fato de que a menina não pode tocar o chão nem ver o sol. Seu efeito geral é o de mantê-la, por assim dizer, suspensa entre o céu e a terra. Ela se torna inofensiva quando é, em linguagem elétrica, isolada. Mas as precauções tomadas para isolar a menina são ditadas tanto por considerações relativas à sua própria segurança, como pela preocupação com a se- gurança dos demais, pois pensa-se que ela própria sofreria se não obedecesse ao regime prescrito.
A mesma explicação aplica-se à observação de regras idênticas pelos reis e sacerdotes divinos. A impureza, como se diz, das meninas na puberdade e a santidade dos homens sagrados não diferem, na mente do homem primitivo, materialmente entre si. São apenas manifesta- ções diferentes da mesma energia misteriosa que, como a energia em geral, não é por si mesma nem boa nem má, mas se torna benéfica ou maligna de acordo com sua aplicação. Assim, se, como as meninas na puberdade, as personagens divinas não podem tocar o chão
nem ver o sol, a razão disso é, de um lado, o medo de que sua divindade possa, em contato com a terra ou o céu, descarregar-se com uma violência fatal sobre qualquer um deles; e, de outro lado, o receio de que o ser divino, assim esvaziado de sua virtude etérea, possa tornar-se incapaz de desempenhar as funções mágicas das quais depende a segurança do povo e mes- mo do mundo, segundo acreditam os primitivos.
Dessa forma, as regras em questão classificam-se como os tabus que examinamos na segunda parte desta obra; elas visam a preservar a vida da pessoa divina e com ela a vida de seus súditos e adoradores. Em nenhum outro lugar, segundo se crê, pode a sua vida, preciosa e ao mesmo tempo perigosa, estar tão a salvo, e ser tão inofensiva, como numa situação em que não está nem na terra nem no céu, mas, na medida do possível, suspensa entre os dois.
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