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excerto de O Ramo de Ouro
Sir James George Frazer. Trad. Waltensir Dutra.
Procuramos mostrar, nas páginas precedentes, que na mãe dos grãos e na virgem da colheita do norte da Europa temos os protótipos de Demetér e Perséfone. Falta ainda, porém, uma característica essencial para completar a semelhança. Um incidente importante no mito grego é a morte e a ressurreição de Perséfone; é este aspecto que, juntamente com a natureza da deusa como divindade da vegetação, liga o seu mito aos cultos de Adônis; é em virtude desse incidente que o mito encontra um lugar em nosso estudo sobre o deus que morre. Resta-nos, portanto, ver se a concepção da morte e da ressurreição anuais de um deus, que figura de maneira tão destacada nesses grandes cultos gregos e orientais, não encontra igualmente suas origens, ou suas analogias, nos rústicos rituais observados pelos ceifadores e pelos vinhateiros em montes de cereais e nas vinhas.
Nossa ignorância geral sobre as superstições e os costumes populares dos antigos já foi reconhecida. Mas a obscuridade que, por isso, paira sobre os primeiros momentos da religião antiga é, felizmente, dissipada em parte no caso presente. O culto de Adônis teve sua sede, como já vimos, na Síria, onde se sabe que eram observados certos costumes relacionados com as colheitas de cereais e as vindimas. Ora, a semelhança de tais costumes com os ritos nacionais da Grécia surpreendeu aos próprios antigos, e sua comparação com os costumes das colheitas dos camponeses modernos e dos bárbaros parece lançar alguma luz sobre as origens dos ritos em questão.
Costumes semelhantes eram observados no Egito. Diodoro nos conta que no antigo Egito os ceifadores faziam lamentações sobre o primeiro feixe de cereais ceifado, invocando ísis como a deusa a quem deviam a descoberta do cereal. Os gregos deram o nome de “maneros” ao canto, ou antes, aos gritos lamentosos dos ceifadores egípcios. E explicaram esse nome com a lenda de que Maneros, o único filho do primeiro rei egípcio, inventara a agricultura e, tendo morrido prematuramente, era assim lamentado pelo povo. Parece, porém, que o nome “maneros” se deve a um entendimento impróprio da fórmula mââ-ne- hra, “venha para a casa”, descoberta em vários escritos egípcios, como, por exemplo, na nênia de Ísis no Livro dos mortos. Podemos, portanto, supor que a exclamação mââ-ne-hra fosse cantada pelos ceifadores sobre o cereal ceifado como uma nênia pela morte do espírito dos grãos (Ísis ou Osíris) e uma oração pelo seu retorno. Como o canto se fazia sobre as primeiras espigas colhidas, parece legítimo supor que os egípcios acreditavam que o espírito dos grãos estava presente nos primeiros grãos ceifados e que morria sob a foice. Em certos locais da Rússia, o primeiro feixe recebe um tratamento parecido ao que é dado ao último em outros lugares. É colhido pela própria dona da fazenda, levado para casa e colocado no lugar de honra, perto das imagens sagradas; depois é debulhado separadamente e parte de seus grãos é misturada com as sementes do próximo ano.
Na Fenícia e na Ásia oriental, um canto lamentoso semelhante ao dos ceifadores egípcios era comum na vindima e provavelmente (por analogia) também na colheita dos cereais. Essa canção fenícia foi chamada pelos gregos de “linus” ou “ailinus” e por eles explicada como sendo um lamento pela morte de um jovem chamado Linus. Da mesma forma que Maneros, o nome de Linus ou Ailinus parece ter sua origem num mal- entendido verbal; trata-se provavelmente da exclamação ai lanu, que significa “ai de nós” e que os fenícios ao que tudo indica proferiam ao chorar Adônis; Safo, pelo menos, parece ter considerado Adônis e Linus como equivalentes.
Na Frigia, o canto entoado pelos ceifadores tanto na colheita quanto na debulha era chamado de litierses. De acordo com a lenda, Litierses era filho bastardo de Midas, rei da Frigia, e vivia em Celaenae. Era ceifador, e de apetite voraz. Quando um estranho penetrava no campo plantado de cereais, ou por ele passava, Litierses dava-lhe de comer e de beber generosamente e, em seguida, levava-o para os campos às margens do Meandro e o forçava a ceifar lado a lado com ele. Final- mente, era seu costume envolver o estranho em palhas e cortar-lhe a cabeça com uma foice, levando para longe o corpo, envolto em talos de cereal. Um dia, Hércules aceitou ir colher junto com ele, cortou-lhe a cabeça com a foice e jogou seu corpo no rio. Como a lenda diz que Hércules o decapitou da mesma maneira que Litierses fazia com as suas vítimas, podemos deduzir que este também costumava lançar ao rio os corpos sem vida. De acordo com outra versão da história, Litierses, filho de Midas, costumava desafiar as pessoas para uma competição de colheita com ele e, se vencesse, tinha o hábito de açoitar seus competidores. Certo dia, porém, encontrou um ceifador mais forte, que o matou.
Há razões para supormos que, nessas histórias de Litierses, temos a descrição de um costume de colheita dos frígios, segundo o qual certas pessoas, especialmente os estranhos que passassem pelo campo que estava sendo ceifado, eram habitualmente consideradas como personificações do espírito dos grãos e, como tal, agarradas pelos ceifadores, envolvidas em palhas e degoladas, sendo os corpos, sempre embrulhados em palhas dos cereais, atirados posteriormente à água para propiciar chuva. As razões dessa suposição são, primeiro, a semelhança da história de Litierses com os costumes relacionados com as colheitas dos camponeses europeus; segundo, a freqüência com que sacrifícios humanos são oferecidos pelas raças selvagens para promover a fertilidade dos campos. Examinaremos essas razões sucessivamente, começando com a primeira.
Ao comparar a lenda com os costumes rela- cionados com as colheitas na Europa, três pontos merecem especial atenção: (I) a competição entre ceifadores e o fato de serem as vítimas embrulhadas em palhas; (II) a eliminação do espírito dos grãos ou de seu representante; (III) o tratamento dado a visitantes do campo em colheita ou a estranhos que por ele passavam.
Em relação ao primeiro ponto, vimos que, na Europa moderna, aqueles que cortam, atam ou debulham o último feixe são, com freqüência, submetidos a um tratamento violento pelos seus companheiros de colheita. O último a colher, atar ou debulhar é considerado como o representante do espírito dos grãos, e essa idéia é expressa de maneira mais completa pelo ato de amarrá-lo a talos de cereal. Em Kloxin, próximo de Stettin, os ceifadores dizem à mulher que faz o último feixe: “Você ficou com o velho, e deve guardá-lo”. O “velho” é um grande feixe de cereal enfeitado com flores e fitas e com a forma aproximada de um ser humano. Amarrado numa grade de arado ou num cavalo, ele é levado até a aldeia ao som de música. Ainda na primeira metade do século XIX, era hábito amarrar a própria mulher com palhas de ervilhas e levá-la, com música, até a fazenda, onde os ceifadores dançavam com ela até que as palhas caíssem.
Passando ao segundo ponto de comparação entre a história de Litierses e os costumes europeus, temos de ver agora que estes últimos comportam muitas vezes a crença de que o espírito dos grãos é morto na colheita ou na debulha. Em Romsdal e em outros lugares da Noruega, quando o feno está feito, diz-se que “o velho do feno foi morto”. Em certos locais da Baviera, o homem que dá o último golpe na debulha é quem mata, conforme a plantação, o homem do milho, o homem da aveia ou o homem do trigo. Na Caríntia, o debulhador que dá o último golpe e a pessoa que desamarra o último feixe na eira são atados, pés e mãos, com palha, e coroas também de palha lhes são colocadas na cabeça. Em seguida são amarrados frente a frente num trenó e arrastados pela aldeia até que, finalmente, são jogados num riacho. O costume de lançar o representante do espírito dos grãos num riacho, bem como o de encharcá-lo de água, constituem, como de hábito, um sortilégio para chamar chuva.
Até aqui, os representantes do espírito dos grãos têm sido geralmente o homem ou a mulher que corta, amarra ou debulha o último grão. Passamos agora aos casos nos quais o espírito dos grãos é representado por um estranho que passa pelo campo (como na lenda de Litierses) ou por um visitante que entra nesse campo pela primeira vez. Em toda a Alemanha, é hábito dos ceifadores ou debulhadores agarrar os estranhos que passam e atá-los com cordas feitas de palha até que paguem um resgate; e quando o próprio dono do campo ou um de seus convidados entra no campo, ou na eira, pela primeira vez, é tratado da mesma forma. Por vezes, a corda é amarrada apenas em torno de um de seus braços, pés ou de seu pescoço. Mas, por vezes, ele é realmente amarrado. Em Solõr, na Noruega, quem entrar num campo, seja o dono ou um estranho, é amarrado e tem de pagar resgate. Nas cercanias de Soest, quando o fazendeiro visita a colheita de linho pela primeira vez, é totalmente envolvido em linho pelos que nela estão trabalhan- do. Os passantes são também cercados pelas mulheres, amarrados com linho e obrigados a oferecer uma rodada de bebida.
Assim, como o antigo Litierses, os modernos segadores europeus costumam agarrar um estranho que passe pelo campo e amarrá-lo. Não se deve esperar que tornem completo o paralelo, cortando-lhe também a cabeça; mas se não vão tão longe, sua linguagem e seus gestos, pelo menos, indicam o desejo de fazê-lo. Por exemplo, no Mecklenburg, no primeiro dia da colheita, se o dono ou a dona das terras, ou um estranho, entrarem no campo, ou simplesmente passarem junto dele, todos os ceifadores se voltam para ele, afiando as foices, batendo nelas as pedras de amolar, em uníssono, como se estivessem se preparando para ceifar. Em seguida, a mulher que lidera os ceifadores se aproxima do estranho e amarra um laço em torno de seu braço esquerdo. Ele deve pagar um resgate. Nesses costumes, quem passar pelo campo é considerado como a personificação do cereal — em outras palavras, como o espírito dos grãos — e pretende-se tratá-lo como ao cereal, ceifando-o, amar-rando-o e debulhando-o.
Em outros costumes relacionados com a colheita na Europa moderna, é a pessoa que corta, amarra ou debulha o último grão que é tratada como a personificação do espírito dos grãos, sendo embrulhada em palhas, submetida a um falso assassinato com instrumentos agrícolas e lançada na água. Essas coincidências com a história de Litierses parecem provar que esta é uma descrição autêntica de um antigo costume frígio de colheitas. Mas como nos paralelos modernos a eliminação do representante pessoal do espírito dos grãos é necessariamente omitida, ou no máximo simulada, torna-se importante mostrar que, na sociedade primitiva, seres humanos eram comumente mortos numa cerimônia agrícola desti- nada a promover a fertilidade dos campos.
Uma descrição específica do sacrifício de uma moça sioux pelos pawnees, em abril de 1837 ou 1838, foi preservada. A moça tinha catorze ou quinze anos e havia sido mantida prisioneira por seis meses, tendo sido bem tratada. Dois dias antes do sacrifício, ela foi levada de tenda em tenda na companhia de todo o conselho de chefes e guerreiros. Em cada casa, recebia um pouco de madeira e de tinta, que entregava a um guerreiro. Dessa maneira, visitou todas as tendas, recebendo em cada uma o mesmo presente de madeira e tinta. No dia 22 de abril, a moça foi levada ao sacrifício, acompanhada de guerreiros, cada um deles levando dois dos pedaços de madeira que receberam de suas mãos. Seu corpo tinha uma metade pintada de vermelho e a outra, de preto, ela foi amarrada a uma espécie de patíbulo e queimada durante certo tempo em fogo lento; em seguida, foi morta a flechadas. O sacrificador arrancou-lhe o coração e o devorou. Enquanto a sua carne ainda estava quente, foi separada dos ossos em pequenos pedaços, colocada em pequenos cestos e levada a um campo de cereais próximo. Ali, o chefe supremo tomou um pedaço de carne do cesto e espremeu uma gota de sangue sobre os grãos de cereal recém-plantados. Seu exemplo foi seguido pelos outros índios, até que todos os grãos tivessem sido molhados de sangue; em seguida, os grãos foram cobertos de terra. De acordo com um relato, o corpo da vítima foi reduzido a uma espécie de pasta, que foi esfre- gada não só no milho mas também nas batatas, nos feijões, e nas outras sementes, para fertilizá- las. Com esse sacrifício, os pawnees esperavam conseguir boas colheitas. Sacrifícios análogos foram feitos em quase todas as partes do mundo.
Mas o caso mais conhecido de sacrifícios humanos sistematicamente realizados para propiciar boas colheitas nos é proporcionado pelos khonds ou kandus, uma raça dravídica de Bengala. Nosso conhecimento desses sacrifícios é proporcionado por relatos escritos por oficiais britânicos que, em meados do século XIX, estavam empenhados em acabar com eles. Os sacrifícios eram feitos à deusa da terra, Tari Pennu ou Bera Pennu, e acreditava- se que propiciavam boas colheitas e a imunidade a todas as enfermidades e acidentes. Eram considerados particularmente necessários ao cultivo do açafrão, sob a alegação de que seria impossível conseguir a cor vermelho-viva sem o derramamento de sangue. A vítima, ou meriah, como era chamada, só era aceitável pela deusa se tivesse sido comprada ou se já tivesse nascido vítima — isto é, fosse filha ou filho de um pai que também tivesse sido vítima, ou tivesse sido destinada, desde criança, ao sacrifício pelo seu pai ou tutor. Os khonds, quando em dificuldades, vendiam com freqüência os filhos para serem imolacos, “considerando a beatificação de suas almas como certa, e sua morte, em benefício da humanidade, como a mais honrosa possível”. Um homem da tribo panua foi visto certa vez amaldiçoando um khond e, finalmente, cuspindo- lhe no rosto porque ele havia vendido para sacrifício a própria filha, a quem o panua desejava desposar. Outros khonds que assistiram à cena imediatamente apressaram-se a confortar o insultado, dizendo: “Tua filha morreu para que todo o mundo possa viver, e a própria deusa da terra limpará esse cuspo do teu rosto”. As vítimas eram, com freqüência, guardadas durante anos antes de serem sacrificadas. Sendo consideradas como seres consagrados, eram tratadas com grande afeição, deferência e bem recebidas em toda parte. Um jovem meriah, quando chegava à idade adulta, recebia uma mulher, que em geral era também meriah ou vítima; e com ela recebia uma área de terra e animais.
Seus filhos também seriam vítimas. Os sacrifícios humanos eram oferecidos à deusa da terra por tribos, ramos de tribos ou aldeias, tanto em festas periódicas como em ocasiões extraordinárias. Os sacrifícios periódicos eram organizados de tal modo pelas tribos e ramos de tribos que cada chefe de família podia, pelo menos uma vez por ano, conseguir um pedaço de carne de vítima para seus campos, em geral na época em que sua principal plantação era semeada.
Acreditava-se que a carne da vítima era dotada de um poder mágico ou físico de fertilizar a terra. O mesmo poder intrínseco era atribuído ao sangue e às lágrimas do meriah, os primeiros produzindo o vermelho do açafrão da índia e as outras, a chuva, pois dificilmente se poderia duvidar de que, pelo menos de início, as lágrimas fossem consideradas como propiciadoras da chuva, e não apenas como prognostificadoras. Além disso, os meriahs parecem ter sido considerados como divinos. Nessas condições, podem ter representado originalmente a deusa da terra ou, talvez, uma divindade da vegetação, embora, em épocas posteriores, passassem a ser considerados antes como vítimas oferecidas a uma divindade, do que como representando, eles mesmos, um deus encarnado. Essa última interpretação do meriah como vítima e não como divindade talvez tenha recebido uma ênfase indevida dos autores europeus que descreveram a religião dos khonds. Habituados à idéia posterior do sacrifício como uma oferenda feita a um deus com o objetivo de granjear-lhe os favores, os observadores europeus inclinam-se a interpretar todas as mortes religiosas nesse sentido e a supor que, quando ocorrem, sempre deve haver, necessariamente, uma divindade que, na crença dos sacrificadores, receberá com satisfação a morte. Assim, suas idéias preconcebidas podem, inconscientemente, colorir e deformar suas descrições dos ritos selvagens.
Mais um ponto nesses costumes selvagens merece ser notado. O chefe pawnee devorou o coração da menina sioux. Se, como supomos, as vítimas desse tipo eram consideradas divinas, segue-se disso que, ao comer sua carne, os praticantes do culto acreditam estar partilhando do corpo de seu deus. Ritos bárbaros, como os descritos, oferecem analogias com os costumes da Europa. Assim, a virtude fertilizante atribuída ao espírito dos grãos está igualmente presente no costume selvagem de misturar o sangue ou as cinzas da vítima com as sementes e no costume europeu de misturar o grão do último feixe com o grão ainda novo, na primavera. A identificação da pessoa com o cereal evidencia-se no costume selvagem de matá-la ritualmente e no costume europeu de fazer uma representação dessa morte. Em relação à história de Litierses, podemos concluir, pelas analogias que essa história mostra com os costumes europeus relativos à colheita, que, na Europa como na Frigia, o representante do espírito dos grãos era morto anualmente no campo da colheita. Já mostramos que há razões para se acreditar que na Europa, da mesma forma, o representante do espírito da árvore era imolado anualmente. As provas desses dois costumes notá- veis e muito análogos são totalmente indepen- dentes entre si. Sua coincidência parece oferecer novas provas em favor de ambos.
À pergunta de como era escolhido o representante do espírito dos grãos já foi dada uma resposta. Tanto a lenda de Litierses como o costume folclórico europeu mostram que os estranhos que passavam eram considerados como manifestações do espírito dos grãos que fugia do grão colhido ou debulhado e por isso eram agarrados e mortos. Mas essa não é a única resposta que as evidências indicam. De acordo com a lenda frigia, as vítimas de Litierses não eram simplesmente estranhos de passagem, mas pessoas que ele havia vencido numa competição de colheita e posteriormente embrulhado em palhas de cereal e decapitado. Isso sugere que o representante do espírito dos grãos pode ter sido escolhido por meio de uma competição no campo de colheita na qual o vencido era obrigado a aceitar a honra fatal. A suposição é reforçada pelos costumes relativos às colheitas observados na Europa. Há, ali, por vezes, uma competição entre os ceifa-dores para não serem o último, e o vencido nessa competição, isto é, quem corta o último talo de cereal é, com freqüência, submetido a violências. É certo que não há qualquer alusão à sua morte, mas, por outro lado, há, muitas vezes, uma pretensa eliminação do homem que dá a última pancada na debulha, isto é, que é vencido nessa competição específica.
Assim, a pessoa que era morta no campo de colheita como representante do espírito dos grãos podia ser um estranho de passagem ou o ceifador que fosse o último a concluir os trabalhos de ceifa, de amarra ou de debulha. Há, porém, uma terceira possibilidade, indicada igualmente pela lenda antiga e pelo costume folclórico moderno. Litierses não só matava os estranhos, como ele próprio foi morto, aparentemente, da mesma maneira pela qual havia matado outros, ou seja, embrulhado em palha de cereal, decapitado e lançado no rio; e fica implícito que isso lhe aconteceu em seu próprio campo. Da mesma forma, nos costumes modernos relacionados com a colheita, o simulacro de morte parece ser realizado tanto na pessoa do dono das terras quanto na pessoa de estranhos que passam. Ora, se lembrarmos que Litierses era, ao que se dizia, filho do rei da Frigia, e que em uma das versões da lenda é chamado de rei, e se a isso acrescentarmos a tradição de que ele era assassinado, ao que tudo indica, como representante do espírito dos grãos, somos levados a conjeturar que temos aí outro traço do costume de matar anualmente um desses reis divinos ou sacerdotais que sabemos terem reinado em muitas partes da Ásia ocidental e particularmente na Frigia. Como já vimos, esse costume parece ter sido tão modificado em certos lugares que o filho do rei era morto em lugar deste. A lenda de Litierses seria, em uma versão pelo menos, uma reminiscência do costume assim modificado.
O fenício Linus era cantado nas vindimas, pelo menos no oeste da Ásia Menor, como ficamos sabendo por Homero. O canto de Linus era provavelmente entoado também pelos ceifadores fenícios, pois Heródoto o compara com o canto de Maneros, que, como já vimos, era um lamento dos ceifadores egípcios sobre o trigo cortado. Além disso, Linus era identificado com Adônis, e este tem certas pretensões a ser considerado particularmente como uma divindade do cereal. Assim, o lamento de Linus, tal como cantado na colheita, seria idêntico ao lamento de Adônis: cada um deles seria o lamento dos segadores pelo espírito dos grãos morto. Mas, enquanto Adônis acabou por se transformar numa figura imponente da mitologia, adorado e chorado em cidades esplêndidas, muito além dos limites da sua terra natal fenícia, Linus parece ter continuado apenas como uma simples nênia cantada por ceifadores e vindimadores. A analogia entre Litierses e os costumes folclóricos europeus e selvagens sugere que, na Fenícia, o espírito dos grãos morto — o Adônis morto — pode ter sido representado, originalmente, por uma vítima humana, e essa sugestão é possivelmente apoiada pela lenda aramaica de que Tamuz (Adônis) foi morto pelo seu cruel senhor, que lhe moeu os ossos e os espalhou ao vento.
Há indicações de que, no Egito, o espírito dos grãos morto — o Osíris morto — era representado por uma vítima humana, a quem os ceifadores eliminavam no campo da colheita, lamentando sua morte numa nênia, à qual os gregos, devido a um mal-entendido verbal, deram o nome Maneros. A lenda de Busíris parece preservar uma reminiscência dos sacrifícios humanos outrora celebrados pelos egípcios e relacionados com o culto de Osíris. Busíris teria sido um rei egípcio que sacrificava todos os estrangeiros no altar de Zeus. A origem desse costume foi atribuída a uma escas- sez que afligiu a terra do Egito durante nove anos. Um vidente cipriota informou Busíris de que a escassez desapareceria se todos os anos um homem fosse sacrificado a Zeus, e por isso o rei instituiu o sacrifício. Mas, quando Hércules chegou ao Egito e estava sendo arrastado à imolação no altar, arrebentou as cordas que o atavam e matou Busíris e o filho deste. Temos, portanto, uma lenda em que, no Egito, uma vítima humana era sacrificada anualmente para preservar as colheitas, e nela está implícito que a omissão do sacrifício teria provocado a repetição da esterilidade que o sacrifício humano procurava impedir. O nome de Busíris era, na realidade, o nome de uma cidade, pesar, “a casa de Osíris”, e que era assim chamada por nela estar situado o túmulo de Osíris. Algumas autoridades modernas de peso acreditam que Busíris foi o berço de Osíris, de onde seu culto se generalizou a outras partes do Egito. Os sacrifícios humanos, ao que se conta, eram oferecidos em seu túmulo, e as vítimas eram homens de cabelos vermelhos cujas cinzas eram espalhadas com joeiras.
A tradição egípcia de Busíris admite uma explicação coerente e bastante provável. Osíris, o espírito dos grãos, era representado anualmente na colheita por um estranho, cujo cabelo vermelho fazia dele um representante adequado do cereal maduro. Esse homem, em seu caráter representativo, era morto no campo da colheita e lamentado pelos ceifadores, que, ao mesmo tempo, oravam para que o espírito dos grãos pudesse reviver e voltar (mââ-ne-hra, Maneros) com renovado vigor, no ano seguinte. Finalmente, a vítima, ou parte dela, era queimada, e as cinzas espalhadas com joeiras pelos campos para fertilizá-los. Aqui a escolha da vítima pelo critério de sua semelhança com o cereal que devia representar está em perfeito acordo com os costumes mexicanos já descritos.
O ato de espalhar as cinzas da vítima egípcia pelos campos assemelha-se ao costume khond, e o uso da joeira para isso é outro indício de sua identificação com o cereal. A história de que os fragmentos do corpo de Osíris foram espalhados pela terra e enterrados por Ísis nos lugares onde estão bem pode ser uma reminiscência de um costume, semelhante ao que é observado pelos khonds, de dividir a vítima em pedaços e enterrá- los, com freqüência a muitos quilômetros de distância uns dos outros, nos campos. É possível, porém, que a história do esquartejamento de Osíris, como a história semelhante de Tamuz, tenha sido uma simples expressão mítica do lançamento da semente.
Assim, se estamos certos, a chave para os mistérios de Osíris é proporcionada pelos me- lancólicos gritos lamentosos dos ceifadores egípcios que, até o tempo dos romanos, podiam ser ouvidos, ano após ano, ressoando através dos campos e anunciando a morte do espírito dos grãos, o protótipo rústico de Osíris. Lamentos parecidos, como já vimos, eram também ouvidos nos campos de colheita da Ásia ocidental. Os antigos a eles se referem como cantos; mas, a julgar pela análise dos nomes Linus e Maneros, consistiam provavelmente apenas em algumas palavras pronunciadas numa prolongada nota musical que podia ser ouvida a grande distância. Até épocas recentes, os ceifadores nos condados ingleses de Devon e de Pembroke tinham o hábito de lançar gritos semelhantes durante a colheita, acompanhados de ritos análogos aos de Osíris. Um observador comentou, a propósito, que “isso era o povo fazendo, como sempre, suas brincadeiras com o espírito da colheita”.
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