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excerto de O Ramo de Ouro
Sir James George Frazer. Trad. Waltensir Dutra.
Os mascarados de Pentecostes
Resta indagar que luz o costume de imolar o rei ou sacerdote divinos lança sobre o tema especial de nossa pesquisa. Na primeira parte deste livro vimos razão para supor que o rei do bosque de Nemi era considerado uma encarnação de um espírito das árvores ou do espírito da vegetação e que, nessa qualidade, era dotado, na crença dos seus fiéis, do poder mágico de fazer com que as árvores dessem frutos, as plantações crescessem, etc. Sua vida deve, portanto, ter sido considerada como muito preciosa pelos seus adoradores e, provavelmente, protegida por um sistema de precauções cuidadosas ou tabus como os que, em tantos lugares, defenderam a vida do homem-deus contra a influência maligna de demônios e feiticeiros. Mas vimos que o próprio valor atribuído à vida do homem-deus exige a sua morte violenta, como único meio de preservá-lo da decadência inevitável que vem com a idade. O mesmo raciocínio poderia ser aplicado ao rei do bosque: também ele devia ser eliminado para que o espírito divino nele encarnado pudesse ser transferido, em toda a sua integridade, para o seu sucessor.
A regra segundo a qual o rei do bosque ocupava o seu posto até que outro mais forte o matasse tanto tinha a virtude de assegurar a preservação de sua divina vida em pleno vigor como garantia a sua transferência para um sucessor adequado, tão logo esse vigor começasse a decair. Enquanto o rei do bosque conseguisse manter sua posição pela força dos músculos, podia-se deduzir que a sua força natural não diminuíra; ao passo que a sua derrota e morte nas mãos de outro provavam que perdia forças e era chegado o momento de abrigar a vida divina num tabernáculo menos dilapidado. Essa explicação para a regra segundo a qual o rei do bosque tinha de ser morto pelo seu sucessor torna-a, pelo menos, perfeitamente inteligível. Pode-se dizer que encontra firme apoio na teoria e na prática dos chiluks, que dão morte ao seu rei ao primeiro sinal de saúde decadente para que a sua decrepitude não acarrete um desfalecimento correspondente da energia vital dos cereais, do gado e dos homens. É, além disso, reforçada pela analogia com o chitomé, de cuja vida a existência do mundo dependeria, de acordo com seus fiéis, e que era morto pelo seu sucessor tão logo demonstrasse os primeiros sinais de envelhecimento.
Podemos conjeturar que o rei do bosque ori- ginalmente era executado após um prazo deter- minado, sem que tivesse uma oportunidade de defender sua vida. Essa suposição se confirmará se pudermos encontrar evidências do costume de imolar periodicamente outras figuras equivalentes à sua, isto é, representantes humanos do espírito das árvores, no norte da Europa. Na verdade, esse costume deixou traços inequívocos nas festas rurais dos camponeses. O mais esclarecedor dos numerosos arremedos de execução do espírito das árvores que podemos citar é o que descrevemos a seguir, registrado na Boêmia. Em certos lugares do distrito de Pilsen, na segunda-feira da semana de Pentecostes, o rei de maio é vestido de cascas de árvore, ornamentado com flores e fitas; usa uma coroa de papel dourado e monta um cavalo, também enfeitado de flores. Acompanhado de um juiz, de um carrasco e de outras personagens, e seguido por uma tropa de soldados, todos montados, vai até a praça da aldeia, onde uma cabana ou um caramanchão de ramos verdes foi construído sob as árvores de maio, que são abetos recém-cortados, desfolhados até o alto e revestidos de flores e fitas. Depois que as mulheres e moças da aldeia houverem sido bastante criticadas e um sapo houver sido deca- pitado, a cavalgada se dirige a um lugar pre- determinado numa rua larga e reta, onde os cavaleiros se alinham em fila dupla, e o rei foge. Dão-lhe uma pequena vantagem, e ele sai a todo o galope perseguido pelos soldados. Se não o conseguem alcançar, ele continua sendo rei por mais um ano, e seus companheiros devem pagar- lhe a despesa na cervejaria à noite. Se, porém, o alcançam, é açoitado com varas de aveleira ou espancado com espadas de pau e obrigado a desmontar. O carrasco, então, pergunta: “Devo decapitar este rei?” A resposta é: “Sim”. Ele brande o machado e, com as palavras “um, dois, três, vamos cortar a cabeça do rei!”, derruba-lhe a coroa. Em meio aos gritos dos espectadores, o rei cai ao chão, é posto numa carreta fúnebre e levado para a fazenda mais próxima.
É impossível não reconhecer as personagens que, como o rei de maio da Boêmia, são mortas numa pantomima como representantes do espírito das árvores ou do espírito da vegetação tal como se espera que ele venha a manifestar-se na primavera. As cascas de árvore, as folhas e as flores com que se vestem os atores e a estação do ano em que se realiza a festa mostram que pertencem à mesma classe dos representantes do espírito primaveril da vegetação que examinamos na primeira parte deste livro. Mas se essas personagens representam, como é certo, o espírito da vegetação na primavera, surge uma questão: por que matá-las? Qual o objetivo de matar o espírito da vegetação em qualquer época e, sobretudo, na primavera, quando seus serviços são mais desejados? A única resposta possível a essa pergunta parece estar na explicação já oferecida para o costume de matar o rei ou o sacerdote divino. A vida divina, encarnada num corpo material e mortal, é passível de se macular e deteriorar devido à fraqueza do frágil veículo em que se abriga por algum tempo. Para que seja poupada da progressiva debilitação que tem necessariamente de partilhar com sua encarnação humana, à medida em que esta avança em idade, dela deve ser desligada antes que, ou pelo menos tão logo esta comece a exibir sinais de decadência, para ser transferida para um sucessor vigoroso. Isso se faz matando-se o velho representante do deus e transferindo-se o divino espírito para uma nova encarnação. A eliminação do deus, isto é, de sua encarnação humana, é, portanto, apenas um passo necessário ao seu renascimento ou ressurreição sob uma forma melhor. Assim, a eliminação do representante do espírito das árvores na primavera é considerada como um meio de promover e apressar o crescimento da vegetação.
Os pontos de semelhança entre as personagens desse tipo, do norte da Europa, e o tema de nossa pesquisa — o rei do bosque ou sacerdote de Nemi
— são bastante notáveis. Nesses mascarados setentrionais vemos reis cujas roupas de cascas de árvores e de folhas, bem como a cabana de ramos verdes e de abetos sob os quais se reúne a sua corte, proclamam-nos inequivocamente como reis do bosque, tal como a sua contrapartida italiana. Como ele, morrem de morte violenta, mas como ele podem evitá-la durante algum tempo graças ao seu vigor e à sua agilidade física. A vida do deus- homem é prolongada sob a condição de que ele dê mostras, numa rigorosa prova física de luta ou de fuga, de que o vigor de seu corpo não decaiu e de que, portanto, a morte violenta, que, mais cedo ou mais tarde, é inevitável, pode ser, por um momento, adiada. Há uma outra semelhança entre o rei do bosque italiano e seus equivalentes do norte. Na Saxônia e na Turíngia, o representante do espírito das árvores, depois de ser morto, é res- suscitado por um médico. É isso exatamente o que a lenda dizia ter acontecido ao primeiro rei do bosque em Nemi, Hipólito ou Vírbio, que, depois de ter sido morto pelos seus cavalos, foi ressuscitado pelo médico Esculápio. Essa lenda se harmoniza bem com a teoria de que a eliminação do rei do bosque era apenas um passo para seu renascimento ou ressurreição em seu sucessor.
Sacrifícios humanos simulados
Formulamos, na análise precedente, a suposição de que o simulacro da eliminação do rei no folclore norte-europeu é um substitutivo moderno do antigo costume de matá-lo de verdade. Os que bem conhecem a tenacidade da vida dos costumes populares e a sua tendência, com o avanço da civilização, a se reduzir de solenes rituais, que eram, a meros espetáculos populares e passatempos, provavelmente serão os últimos a pôr em dúvida a verdade de tal afirmativa. Sacrifícios humanos eram oferecidos com freqüência pelos ancestrais das raças civilizadas do norte da Europa, celtas, teutões e eslavos — isso é fora de dúvida. Portanto, nada tem de surpreendente o fato de que o camponês moderno faça, de maneira simulada, aquilo que seus antepassados faziam na realidade. Sabemos, com certeza, que, em outras partes do mundo, simulacros de sacrifícios humanos substituíram os reais. Assim, em Minahassa, distrito das Celebes, vítimas humanas eram sacrificadas regularmente em certas festas, mas, sob a influência holandesa, esse costume foi abolido, surgindo em seu lugar um simulacro de sacrifício humano. O Capitão Bourke foi informado por um velho chefe de que os índios do Arizona costumavam oferecer sacrifícios humanos na Festa do Fogo, quando os dias são mais curtos. A vítima tinha sua garganta cortada, o peito aberto e o coração arrancado por um dos sacerdotes. Esse costume foi abolido pelos mexicanos, mas, por longo tempo ainda, uma forma modificada dele foi observada secretamente. A vítima, geralmente um jovem, tinha a garganta cortada, e deixava-se o sangue correr livremente; o curandeiro, porém, espalhava “remédio” na ferida, que em pouco tempo se fechava, e o jovem sarava. Também no ritual de Ártemis, em Halae, na Ática, era cortada a garganta de um homem, e se deixava que o sangue corresse, mas ele não era morto.
Por vezes o pretenso sacrifício é realizado não com uma pessoa viva, mas com uma efígie. Na Cidade do Sol, no Egito antigo, três homens costumavam ser sacrificados diariamente, depois de desnudados e examinados, como se fossem bezerros, pelos sacerdotes, que verificavam se eram perfeitos e próprios para o altar. Mas o faraó Amósis ordenou que fossem usadas imagens de cera em lugar de vítimas humanas. Um livro indiano de leis, o Caliça puran, determina que, quando o sacrifício de leões, tigres ou seres humanos é necessário, uma imagem de um leão, tigre ou homem deve ser feita de manteiga, ou de uma pasta ou massa de farinha de cevada, e usada em lugar dos seres reais. Antigamente, alguns dos gondes da Índia ofereciam sacrifícios humanos e hoje sacrificam bonecos de palha, que servem igualmente bem aos seus propósitos.
O Enterro do Carnaval, a Expulsão da Morte e o Advento do Verão
Já pudemos chegar a uma explicação da regra que exigia a morte do sacerdote de Nemi pelo seu sucessor. A explicação não pretende ser mais do que provável; nosso escasso conhecimento do costume e de sua história não permite que seja mais do que isso. Não obstante, é possível, ao mesmo tempo, esclarecer algumas obscuridades que ainda perduram e responder a algumas objeções que se podem ter apresentado ao leitor.
Comecemos do ponto em que paramos — os costumes primaveris dos camponeses da Europa. Além das cerimônias já descritas, há duas outras séries de observâncias que lhes são correlatas, em que a morte simulada de um ser divino ou sobrenatural é uma característica destacada. Numa delas, o ser cuja morte é dramaticamente representada é uma personificação do Carnaval; na outra, é a própria morte. A primeira cerimônia ocorre naturalmente ao final do Carnaval, no último dia daquele alegre período, ou seja, a Terça-Feira Gorda, ou no primeiro dia da Quaresma, ou a Quarta-Feira de Cinzas.
Em Lérida, na Catalunha, o enterro do Carnaval foi testemunhado por um viajante inglês em 1877. No domingo de Carnaval, uma grande parada de infantaria, cavalaria e mascarados dos mais variados tipos, alguns montados e outros em carruagens, escoltara o grande carro de Sua Graça Pau Pi, como a efígie era chamada, em triunfo, pelas principais ruas. Durante três dias as festas foram intensas, e então, à meia-noite do último dia, a mesma parada voltou a desfilar pelas ruas, mas com um aspecto diferente e com uma diferente finalidade. O carro triunfal fora substituído por um carro fúnebre, onde repousava a efígie de Sua Graça morta: um séquito de mascarados, que, no primeiro desfile, haviam desempenhado o papel de Estudantes da Folia, esmerando-se em estrepolias e brincadeiras, vestiam-se agora de padres e bispos, caminhavam lentamente segurando enormes velas acesas e cantando uma nênia. Ao chegar à praça principal, o desfile se deteve, uma oração final burlesca foi pronunciada sobre o defunto, Pau Pi, e as luzes se apagaram. Imediatamente o diabo e seus anjos irromperam da multidão, tomaram o corpo e fugiram com ele, animadamente perseguidos aos gritos pela multidão. Os vilões foram, naturalmente, alcançados e dispersados, e o pretenso cadáver, salvo de suas garras, foi colocado num túmulo adrede preparado. Assim morreu o Carnaval de 1877 em Lérida e foi enterrado.
Em certas aldeias alemãs da Morávia, como Jassnitz e Seitendorf, os jovens se reúnem no terceiro domingo da Quaresma e preparam um boneco de palha, geralmente vestido com um gorro de pele e calções de couro, se for possível obtê-los. O boneco é então içado num mastro e levado pelos jovens de ambos os sexos para os campos. A caminho, cantam uma canção que diz estarem levando para longe a Morte e trazendo para casa o querido Verão e, com ele, o mês de maio e as flores. Ao chegarem a um lugar predeterminado, dançam em círculo à volta do boneco com gritos e exclamações e, subitamente, correm para ele e o estraçalham com as mãos. Finalmente, os pedaços são amontoados, o mastro é quebrado, ateando-se fogo a tudo. Enquanto os restos queimam, o grupo dança alegremente em torno da fogueira, regozijando-se com a vitória conquistada pela Primavera. Quando o fogo está quase extinto, dirigem-se às casas, pedindo presentes de ovos para fazer uma refeição, tendo o cuidado de apresentar como justificativa do pedido o fato de terem levado embora a Morte.
Até aqui, o retorno da Primavera, do Verão, ou da Vida, como seqüência da expulsão da Morte, é apenas implícito ou, no máximo, anunciado. Em outras cerimônias é claramente encenado. Assim, em certos lugares da Boêmia, a efígie da Morte é afogada. Depois de jogá-la na água ao entardecer, as moças da aldeia se dirigem à floresta e cortam uma árvore ainda nova com uma copa verde, penduram nela uma boneca vestida como mulher, enfeitam tudo de fitas verdes, vermelhas e brancas, e marcham em procissão com o seu Lito (Verão) até a aldeia, recolhendo presentes e can- tando:
“A Morte nada na água,
A Primavera vem nos visitar
Com ovos que são vermelhos
E panquecas amarelas.
Levamos a Morte para longe,
Trazemos o Verão para a aldeia”.
Em cerimônias desse tipo, a Morte é representada por um boneco, que é lançado fora; o Verão ou a Vida, pelos ramos de árvores trazidos de volta. Por vezes, porém, uma nova potencialidade vital parece ser atribuída à imagem da própria Morte e, através de uma espécie de ressurreição, ela se torna um instrumento do renascimento geral. Assim, em certas regiões da Lusácia, só as mulheres carregam a Morte, não permitindo que nenhum homem interfira. Vestidas de luto durante todo o dia, preparam um boneco de palha, vestem-no com uma camisa branca, colocam-lhe numa das mãos uma vassoura e uma foice na outra. Cantando, e perseguidas pelos moleques que lhes jogam pedras, levam o boneco até os limites da aldeia, onde o estraçalham. Cortam em seguida uma bela árvore, na qual penduram a camisa, e levam-na para a aldeia, cantando.
Vemos que a Morte, cuja eliminação é repre- sentada nessas cerimônias, não pode ser vista como um agente puramente destrutivo que é como geralmente a compreendemos. Se a árvore levada de volta como uma materialização do renascimento da vegetação na primavera está vestida com a camisa usada pela Morte, que acaba de ser destruída, o objetivo disso não pode ser, certamente, paralisar e agir contra o ressurgimento da vegetação: pelo contrário, só pode ser estimular e favorecer esse res- surgimento. Portanto, o ser que foi destruído — a chamada Morte — será provavelmente dotado de uma influência vivificadora e intensificadora que pode comunicar aos vegetais e mesmo ao mundo animal. Essa atribuição de uma virtude comunicadora de vida à figura da Morte está acima de qualquer dúvida no costume, observado em certos lugares, de guardar pedaços da efígie de palha da Morte e colocá-los nos campos, para fazer com que as plantações se desenvolvam, ou nos estábulos, para que o gado seja saudável.
Podemos conjeturar, com justeza, que os nomes Carnaval, Morte e Verão são expressões relativamente tardias e inadequadas dos seres personificados ou materializados nos costumes que examinamos. O simples fato de serem nomes abstratos revela uma origem moderna, pois a personificação de efemérides e de estações, como o Carnaval e o Verão, ou de uma noção abstrata como a morte, dificilmente será primitiva. As próprias cerimônias, porém, trazem a marca de uma antiguidade sem data; fica difícil, portanto, deixar de pensar que, originariamente, as idéias por elas representadas eram de uma natureza mais simples e concreta. A noção de árvore, talvez de um determinado tipo de árvore (pois certos povos primitivos não têm uma palavra para designar as árvores em geral), ou mesmo de uma árvore específica, é bastante concreta para proporcionar uma base a partir da qual, por um processo gradual de generalização, se poderia chegar à idéia mais ampla de um espírito da vegetação. Também a noção concreta da árvore que morre, ou da vegetação que morre, transformar-se-ia, por um processo de generalização semelhante, numa noção de morte em geral, de modo que a prática de levar embora na primavera a vegetação que está morrendo ou já morreu como condição prévia para o seu renascimento se ampliaria, com o tempo, numa tentativa de banir a Morte em geral da aldeia ou do distrito.
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