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Alta Magia

Os perigos da alma

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excerto de O Ramo de Ouro
Sir James George Frazer.  Trad. Waltensir Dutra.

Os exemplos anteriores nos mostraram que o ofício de rei sagrado ou de sacerdote está, com freqüência, cercado de uma série de restrições penosas, ou tabus, cujo principal objetivo parece ser preservar a vida do homem-deus para o bem de seu povo. Mas, se o objetivo do tabu é salvar a vida do homem-deus, surge então uma pergunta: como a observância do tabu deve promover esse objetivo? Para compreender isso, devemos conhecer a natureza do perigo que ameaça a vida do rei e contra o qual essas curiosas restrições o devem proteger. Devemos, portanto, perguntar: o que o homem primitivo entendia por morte? Que causas lhe atribuía? E como achava ele que se podia proteger contra elas?

Assim como o selvagem explica habitualmente os processos da natureza inanimada supondo serem produzidos por seres vivos que operam no interior ou por trás dos fenômenos, assim também ele explica os fenômenos da própria vida. Se um animal vive e se movi-nen-ta, isso só pode acontecer, no seu entendimento, porque há um pequeno animal dentro dele que o movimenta; se o homem vive e se movimenta, só pode ser porque há nele um homenzinho ou animalzinho que o agita. O animal dentro do animal, o homem dentro do homem, é a alma. E como a atividade do animal ou do homem é explicada pela presença da alma, assim também o repouso do sono ou a morte são explicados pela sua ausência, sendo o sono ou transe uma ausência temporária, e a morte, a ausência definitiva. Assim, se a morte é a ausência permanente da alma, a maneira de proteger-se contra isso é impedir que ela deixe o corpo, ou, se o deixar, fazer com que volte. As precauções adotadas pelos selvagens para assegurar-se de uma ou outra dessas finalidades tomam a forma de certas proibições ou tabus, que não são mais do que regras destinadas a assegurar a continuação da presença, ou o retorno, da alma. Em suma, são regras preservadoras de vida, ou guarda-vidas.

Tão exata é, segundo certas pessoas, a se- melhança do manequim com o homem, ou, em outras palavras, da alma com o corpo, que, assim como há corpos gordos e corpos magros, há também almas gordas e almas magras; assim como há corpos pesados e corpos leves, longos e curtos, também há almas leves e pesadas, longas e curtas. Os habitantes do Punjabe, cujas tatuagens refletem esse princípio, acreditam que, com a morte, a alma, “o homenzinho ou mulherzinha” dentro da moldura mortal do corpo, vai para o céu marcada dos mesmos desenhos que enfeitaram o corpo em vida. Por vezes, porém, como iremos ver, a alma humana é concebida não sob forma humana, mas sob forma animal. Supõe-se habitualmente que a alma escape pelas aberturas naturais do corpo, particularmente pela boca e pelas narinas. Expressões populares nas línguas de povos civilizados  como  “botar  a  alma  pela  boca” mostram o quanto é natural a idéia de que a vida ou a alma podem escapar por esta ou pelo nariz. A alma é, com freqüência, considerada como um pássaro pronto a voar. Essa concepção deixou provavelmente vestígios na maioria das línguas e ainda perdura em metáforas, na poesia. Mas o que é metáfora para um poeta europeu moderno era a verdade real para seu ancestral selvagem, e ainda é para muitos. Assim, em Java, quando uma criança é colocada no chão pela primeira vez (momento que os povos sem cultura parecem                considera  como  particularmente perigoso), isso é feito num galinheiro, e a mãe emite  sons como     se    estivesse      chamando galinhas.  Da    mesma           forma,    no   distrito  de Sintang, no oeste de Bornéu, se alguém passa por um grande medo, escapa de um sério perigo, retorna depois de uma longa e perigosa viagem, ou presta um juramento solene, a primeira coisa que seus parentes ou amigos fazem é jogar arroz amarelo na sua cabeça, murmurando “Có, có, có! alma!” (“Koer, koer, semangat!”).

Acredita-se que a alma de uma pessoa ador- mecida vague longe de seu corpo, chegando mesmo a visitar os lugares, ver as pessoas e praticar os atos com que a pessoa adormecida sonha. Os índios do Gran Chaco contam, com freqüência, as histórias mais incríveis como se fossem coisas que eles tivessem visto e feito pessoalmente; por isso, os estranhos que não os conhecem bem julgam, apressadamente, que esses índios são mentirosos. Na verdade, estão firmemente convencidos da verdade daquilo que dizem, pois essas aventuras maravilhosas são simplesmente seus sonhos, que eles não distinguem da realidade que vivem quando estão acordados.

Ora, a ausência da alma durante o sono envolve riscos, pois, se, por qualquer razão, ela ficar retida longe do corpo, a pessoa assim privada do princípio vital deverá morrer. Muitas causas podem reter a alma de quem dorme. Ela poderá, por exemplo, encontrar a alma de outra pessoa que também está dormindo, e as duas podem entrar em luta (se um negro da Guiné acorda com dor nos ossos pela manhã, acha que sua alma foi espancada por outra durante o sono). Ou poderá encontrar a alma de uma pessoa que morreu recentemente e ser levada por ela; assim, nas ilhas Arua,- os moradores de uma casa não dormem na noite seguinte à morte de alguém que também ali residisse, porque a alma do falecido ainda pode estar pela casa, e temem encontrá-la em sonhos.

Mas, para que a alma de um homem deixe seu corpo, não é necessário que ele adormeça. A alma pode abandoná-lo quando em vigília, e disso resultará uma enfermidade, a insanidade ou a morte. Assim, um membro da tribo wurunjeri, em Vitória, exalava seus últimos suspiros porque sua alma (murup) o havia dei- xado. Um curandeiro saiu em perseguição dela e a agarrou no momento em que se preparava para mergulhar no brilho do poente, que é a luz lançada pelas almas dos mortos quando entram e  saem  do  outro  mundo,  onde  o  sol  vai descansar. Tendo capturado o espírito fujão, o curandeiro levou-o de volta sob a sua pele de sarigüê e deitou-se sobre o homem agonizante, que pouco depois recuperava as forças.

A partida da alma nem sempre é voluntária. Ela pode ser arrancada do corpo contra sua vontade por espíritos, demônios ou feiticeiros. Por isso, quando um enterro passa pela casa, os carenes da Birmânia amarram seus filhos com um tipo especial de corda para que suas almas não deixem os corpos e entrem no corpo do morto que passa por ali. As crianças ficam amarradas até que o cadáver desapareça de vista. No enterro propriamente dito, os adultos tomam precauções para impedir que suas almas sejam enterradas com o cadáver. Numa das Novas Hébridas, um espírito prende, por vezes, as almas dos transgressores dentro de uma cerca mágica em seu jardim e só consente em retirar a cerca e libertar as almas se receber um pedido irrestrito de desculpas e garantias satisfatórias de que não houve nenhuma intenção de desrespeitá-lo pessoalmente.

O seqüestro da alma é, com freqüência, atribuído a demônios. Os anamitas acreditam que, quando um homem encontra um demônio e fala com ele, este inala a respiração e a alma do seu interlocutor. Nas Molucas, quando alguém se sente mal, acredita-se que sua alma tenha sido levada por um demônio para a árvore, montanha ou morro onde este mora. Um feiticeiro mostra a residência do demônio, e os amigos do paciente levam para lá arroz cozido, frutas, peixe, ovos crus, uma galinha, um frango, um traje de seda, ouro, braceletes, etc. Tendo disposto a comida em ordem, eles oram, dizendo: “Viemos oferecer- te, ó demônio, esta comida, roupas, ouro, etc; toma-os e liberta a alma do paciente por quem rezamos. Deixa que volte ao seu corpo e que ele fique novamente bom”. Em seguida, comem um pouco dos alimentos e deixam solta a galinha, como resgate pela alma do paciente; também deixam os ovos crus, mas o traje de seda, o ouro e os braceletes são levados de volta. Ao chegarem de retorno a casa, colocam, à cabeceira do enfermo, uma vasilha rasa com as oferendas trazidas de volta e lhe dizem: “Agora a tua alma foi libertada e viverás bem até a velhice, nesta terra”.

As almas também podem ser arrancadas de seus corpos ou ficar retidas em suas andanças não só por espíritos e demônios, mas também por homens, especialmente por feiticeiros. Nas ilhas Fidji, se um criminoso se recusa a confessar, o chefe manda buscar um pano para “tirar fora a alma do bandido”. À vista, ou mesmo à menção, do pano, o culpado geralmente confessa, pois, se não o fizer, o pano será sacudido sobre a sua cabeça até que sua alma seja colhida por ele e, quando isso acontecer, a alma será embrulhada cuidadosamente no pano, que será preso à canoa de um chefe. Sem sua alma, o criminoso definhará e morrerá.

Mas os perigos espirituais que mencionamos não são os únicos que ameaçam o selvagem. Com freqüência, ele considera sua sombra, ou reflexo, como sua alma, ou, de qualquer forma, como parte vital de si mesmo e, como tal, necessariamente como uma fonte de perigo. Se a sombra for pisada, golpeada ou apunhalada, ele sentirá o golpe como se tivesse sido praticado contra a sua pessoa; e, se a sombra for separada dele (como acredita ser possível), morrerá. Na ilha Wetar, há magos que podem tornar um homem enfermo golpeando sua sombra com uma lança ou uma espada. Depois de ter destruído os budistas na índia, afirma-se que Çankara viajou para o Nepal, onde tinha discordâncias com o grão-lama. Para provar seus poderes sobrenaturais, ele pairou no ar. Mas, enquanto subia, o grão-lama, ao ver sua sombra se  movendo  e  ondulando  no  chão,  nela mergulhou sua faca: Çankara caiu e quebrou o pescoço.

Os nativos da ilha de Nias tremem à vista de um arco-íris, pois acreditam tratar-se de uma rede estendida por um espírito poderoso para pegar suas sombras. Num funeral na China, quando a tampa do caixão vai ser colocada, a maioria dos presentes,  com  exceção  do  parente  mais próximo, afastam-se alguns passos ou até mesmo retiram-se para outro aposento, pois acreditam que sua saúde pode ser prejudicada se deixarem que sua sombra seja encerrada no caixão. E quando este vai baixar à sepultura, a maior parte dos presentes recua a uma certa distância, para que suas sombras não caiam na vala e isso lhes venha a causar mal. O geomante e seus assistentes ficam do lado da sepultura que se contrapõe ao sol, e os coveiros e carregadores do caixão amarram firmemente as suas almas aos respectivos cor- pos, com um pedaço de pano firmemente atado à volta do tronco.

Mas em nenhum outro exemplo, talvez, a equivalência da sombra com a vida ou a alma se destaca mais do que em certos costumes observados até hoje no sudeste da Europa. Na Grécia moderna, quando os alicerces de uma nova casa estão sendo levantados, é comum matar um galo, um carneiro ou um cordeiro e deixar que seu sangue se derrame sobre a pedra fundamental, sob a qual o animal é depois enterrado. O objetivo desse sacrifício é dar força e estabilidade à construção. Mas, em certos casos, em lugar de matar um animal, o construtor atrai um homem até a pedra fundamental, mede secretamente seu corpo, ou parte dele, ou sua sombra, e enterra a medida sob a pedra; ou então joga a pedra fundamental na sombra do homem, que, segundo se acredita, deverá por isso morrer dentro de um ano. Na ilha de Lesbos, basta que o construtor lance uma pedra sobre a sombra de alguém que passa: o homem cuja sombra é atingida morrerá, mas a construção será sólida.

Assim, alguns povos acreditam que a alma esteja na sombra, ao passo que outros (ou, às vezes, os mesmos) pensam que ela está no reflexo da imagem na água ou num espelho. Assim, “os habitantes das ilhas Andamans não consideram suas sombras, mas seus reflexos [em qualquer espelho], como suas almas”. De acordo com um relato, alguns habitantes das ilhas Fidji acreditam que o homem tem duas almas, uma clara e a outra, escura; a escura vai para o Hades, a clara é seu reflexo na água ou no espelho. Quando os motumotus da Nova Guiné viram pela primeira vez seus reflexos num espelho, acharam que era o reflexo de suas almas.


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