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Texto de G. B. Marian. Traduzido por Caio Ferreira Peres
Sim Virgínia, algumas pessoas ainda acreditam em vários deuses hoje em dia e isso é tão legítimo quanto acreditar em apenas um.
Antropomorfismo é o ato de caracterizar algo que não é humano (seja animal, vegetal ou mineral) com qualidades, sentimentos e motivações humanas. O Pernalonga, por exemplo, fala inglês, anda sobre duas pernas e, em geral, é um espertalhão. Todos nós sabemos que os coelhos de verdade não fazem nenhuma dessas coisas, portanto, Pernalonga é o que chamamos de coelho antropomorfizado (e um coelho muito engraçado também).
É impossível praticar qualquer tipo de religião teísta sem antropomorfizar o deus ou o panteão envolvido, pelo menos até certo ponto, mesmo quando se trata do monoteísmo. Os politeístas são apenas o exemplo mais óbvio, já que de fato invocamos nossos deuses em imagens de culto. Normalmente, esses ícones são pelo menos um pouco humanoides, mesmo que tenham cabeças de animais (como o panteão egípcio) ou vários apêndices (como o panteão hindu). Mesmo quando essas imagens são totalmente zoomórficas, os politeístas também tendem a ser animistas, acreditando que os animais têm alma assim como os humanos (como também as árvores, os rios, as estrelas, os planetas etc.). Portanto, o politeísmo nos incentiva ativamente a antropomorfizar todo o cosmos.
Os monoteístas condenam essa prática como “idolatria”, o que é extremamente ofensivo para os politeístas por vários motivos. Primeiro, isso demonstra uma completa má compreensão sobre o que acreditamos e fazemos. Por alguma razão, os monoteístas sempre acham que somos pessoas das cavernas que pensam que os ícones que criamos e usamos para adoração estão realmente vivos e podem se mover ou algo do gênero. Mas nem mesmo os antigos politeístas eram tão ingênuos. Nossos deuses não são as imagens feitas pelo homem em si, mas as forças cósmicas que essas imagens foram criadas para significar. A estátua de um deus é apenas uma ferramenta para adoração, não o objeto real de adoração em si.
Basta considerar esta história do folclore bíblico:
Abraão tentou convencer seu pai, Terá, da insensatez da adoração de ídolos. Um dia, quando Abraão ficou sozinho para cuidar da loja, pegou um martelo e quebrou todos os ídolos, exceto o maior. Ele colocou o martelo na mão do maior ídolo. Quando seu pai voltou e perguntou o que havia acontecido, Abrão disse: “Os ídolos brigaram, e o maior esmagou todos os outros”. Seu pai disse: “Não seja ridículo. Esses ídolos não têm vida nem poder. Eles não podem fazer nada”. Abraão respondeu: “Então, por que você os adora?”
Embora eu entenda que essa história seja alegórica, ela ainda é desumanizante e insultuosa para os politeístas. Pessoalmente, esperava que o pai de Abraão tivesse respondido: “Eu não adoro os ídolos; eu adoro OS DEUSES, que os ídolos REPRESENTAM!” (E depois espero que ele tenha colocado o pequeno ingrato de castigo, já que aquela pequena façanha provavelmente custou a toda a família várias refeições!)
Quando invoco Set em uma de Suas imagens sagradas que mantenho em minha casa, trato a imagem como se fosse uma entidade viva e que respira. Eu a beijo, compartilho oferendas com ela ou até mesmo toco um pouco de heavy metal e bato cabeça com ela. No entanto, não sou ingênuo a ponto de achar que a imagem realmente É Set. Os deuses são forças cósmicas poderosas e invisíveis que nunca conseguimos entender completamente; podemos vê-los atuando por meio de fenômenos naturais, mas não podemos vê-los diretamente. (E mesmo que pudéssemos, isso provavelmente faria nossos cérebros explodirem e saírem pelos ouvidos!) Ao antropomorfizar os deuses e convidá-los para imagens humanizadas que criamos para eles, podemos demonstrar nosso amor e respeito por eles, assim como fazemos com todas as pessoas e animais que amamos. Quando beijo uma imagem de Set, sei que, na verdade, estou apenas beijando uma imagem, mas o ato de beijar essa imagem é, por si só, um ato simbólico poderoso. Portanto, embora não possamos ver, ouvir ou tocar os deuses como podemos ver, ouvir ou tocar uns aos outros, essa é a segunda melhor opção.
Não consigo ver como isso é diferente de como os católicos romanos tratam suas imagens de Jesus, dos santos e da Virgem Maria. Eles acendem velas em frente a essas estátuas e conversam com elas enquanto rezam, mas nenhum deles é tolo o suficiente para pensar que as estátuas são de fato Jesus, Maria ou os próprios santos. Ao mesmo tempo, a maioria dos cristãos (inclusive os não católicos) consideraria uma blasfêmia pisar em um crucifixo ou rasgar uma Bíblia, ambas imagens icônicas poderosas. E quando as pessoas pensam no deus cristão, elas o visualizam como um patriarca de barba branca sentado em um trono nas nuvens. Parte do objetivo de Jesus, de fato, é que ele supostamente é o próprio Javé em forma humana—e não há nada mais antropomórfico do que isso! Em outras palavras, o cristianismo antropomorfiza seu deus e é tão “idólatra” quanto o paganismo; mas, por alguma razão, só é “ruim” ou “mau” quando não cristãos fazem essas coisas.
Essa imagem não foi inventada por Seth McFarlane; ela remonta ao deus cananeu, El.
Apesar do que qualquer outra pessoa possa dizer, o antropomorfismo não é algo “ruim”. Ele também não está totalmente distante da realidade. Por exemplo, agora sabemos que as árvores de salgueiro, álamo e bordo açucareiro de fato avisam umas às outras sobre ataques iminentes de insetos; que as abelhas possuem cognição e uma linguagem extremamente complicada; e que os castores são basicamente engenheiros hidráulicos, criando represas para fazer lagos e construir casas para as famílias. As árvores, as abelhas e os castores podem não pensar, sentir ou se comunicar da mesma forma que os seres humanos, mas eles DE FATO pensam, sentem e se comunicam. E quando os povos antigos antropomorfizavam esses e outros aspectos da natureza, era sua maneira de viver em equilíbrio com o resto do universo. Mesmo os ateus não conseguem deixar de projetar pensamentos e emoções humanas em seus amados animais de estimação, e é realmente bom que os seres humanos façam isso. O antropomorfismo nos incentiva a ter empatia com a natureza, em vez de tratá-la como algo alienígena e sem alma que só existe para ser explorada por nós. A Terra não estaria queimando fora de controle como está agora se mais pessoas antropomorfizassem a natureza atualmente.
Os politeístas também são estigmatizados por oferecer presentes, especialmente comida e bebida, às imagens de nossos deuses. As pessoas presumem que achamos que as imagens realmente se moverão e comerão a comida, ou que achamos que nossos deuses “morrerão de fome” se não os “alimentarmos”. Em todos os meus anos de identificação como politeísta, nunca encontrei uma única pessoa que acreditasse em qualquer uma dessas afirmações—nem mesmo uma única vez. Se você tem dificuldade para entender por que alguém iria querer oferecer comida a um deus, tudo o que você realmente precisa entender é a importância histórica de compartilhar refeições. A comida é tão importante hoje quanto era nos tempos antigos, e ter o suficiente dela é muitas vezes uma luta para muitas pessoas. Por isso, compartilhar sua comida com outra pessoa é considerado um ENORME sinal de compaixão e respeito em praticamente todas as culturas do mundo. Mesmo hoje em dia, convidar pessoas para o café da manhã, almoço e/ou jantar ainda é uma forma importante de criar laços sociais. E esse é o verdadeiro propósito de oferecer alimentos às divindades: criar laços sociais com elas. Ao invocar os deuses em imagens e oferecer-lhes comida, os politeístas estão convidando essas forças cósmicas para jantar e tratando-as como hóspedes ilustres. Isso não é apenas uma superstição maluca, mas uma forma profundamente afetuosa de adoração religiosa que é tão autêntica, legítima e apaixonada quanto qualquer coisa que os cristãos, muçulmanos ou judeus praticam.
Diferentes politeístas fazem oferendas de maneiras diferentes. Os egípcios ingeriam suas oferendas, acreditando que seus deuses consumiriam a energia espiritual do alimento enquanto os adoradores consumiam sua substância física. Sempre gostei mais dessa forma de fazer as oferendas, porque parece mais que estamos compartilhando com a divindade do que simplesmente dando coisas a ela. Quando convidamos as pessoas para jantar, não pagamos apenas para que elas comam e não comamos nada; comemos com elas. E se os deuses realmente consomem alguma coisa durante esse processo, é o amor e a boa vontade que expressamos a eles por meio dessas demonstrações de fé. Mas comida e bebida não são as únicas coisas que podemos oferecer; também podemos oferecer ações, como ajudar os animais sagrados de uma divindade, ou escrever literatura e/ou criar arte para o(s) deus(es). Podemos participar de nossas comunidades de forma a honrá-los, como fazer doações para uma biblioteca para Thoth, recolher o lixo em um parque para Geb ou visitar uma fazenda de laticínios e alimentar as vacas leiteiras bebês para Hathor. Há todos os tipos de coisas que podemos oferecer aos deuses e compartilhar com eles e com outras pessoas que farão com que nossas almas e espíritos brilhem com amor e boas vibrações.
Outro estigma contra os politeístas é a crença de que cometemos sacrifícios humanos. É verdade que algumas civilizações se envolveram nessa prática, mas os egípcios não parecem ter feito isso com nenhum propósito teológico. Nos casos em que os servos de um faraó eram cerimonialmente mortos e enterrados com o rei falecido, era para apaziguar o rei, não os deuses. Como politeísta, acho que matar alguém, exceto em legítima defesa, é uma ofensa bárbara contra os deuses, e a maioria dos outros politeístas lhe dirá o mesmo. Se uma pessoa mata alguém em nome de um deus politeísta, ela está exatamente na mesma categoria que os monoteístas que bombardeiam clínicas de aborto ou jogam aviões em arranha-céus porque “Deus me disse para fazê-lo”.
Quanto ao sacrifício de animais, a maioria dos politeístas não se envolvem com essa prática atualmente, mas aqueles que o fazem geralmente vivem em áreas rurais e estão acostumados a matar seu próprio alimento. Eles não são sociopatas que matam gatos, mas caçadores ou fazendeiros comuns; a única diferença é que eles dedicam os animais aos seus deuses e agradecem aos animais por suas vidas antes de matá-los e comê-los. Em princípio, não é muito diferente dos açougueiros que preparam produtos de carne kosher ou halal. Basta dizer que os politeístas que vivem em áreas urbanas ou suburbanas não têm motivo para matar nenhum animal, já que estamos tão acostumados a comprar nossos alimentos em supermercados locais quanto qualquer outra pessoa. Muitos de nós também somos vegetarianos, veganos e/ou ativistas dos direitos dos animais, portanto, a ideia de que andamos por aí nos banhando com sangue de cabra é uma grande besteira.
Link para o original: https://desertofset.com/2020/06/17/polytheism/
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