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Vilém Flusser
A diferença mais significativa entre fumante e não fumante é a dependência mais acentuada, na qual se encontra o primeiro com relação à sua circunstância. O fumante depende do cachimbo, de fumo, de limpador, de isqueiro, de bolsas. Isto impõe a seguinte pergunta: já que fumar cachimbo não visa primariamente meta externa ao gesto, (mudar o mundo ou informar os outros) e já que diminui a liberdade do fumante, por que há fumantes de cachimbo? Trata-se de pergunta “clássica”, no sentido de pergunta cuja forma é própria de toda uma classe de perguntas. O termo “fumar cachimbo” pode ser substituído por outros termos, (por exemplo, por “dançar” ou “rezar”), sem que isto implique em modificação do sentido da pergunta. Esta é a razão porque o gesto de fumar cachimbo foi escolhido como tema deste ensaio.
Numerosos são os pontos de partida para a tentativa de resposta. Podemos, por exemplo, começar pela descoberta da América para explicar o gesto historicamente. Ou podemos explicá-lo sociologicamente, recorrendo a termos como “classe social” ou “nível cultural”. Ou fisiologicamente, com categorias do tipo “efeito de alcalóides sobre o sistema nervoso”. Ou psicologicamente, com conceitos como “símbolo fálico e vaginal”. Com efeito: o número de tais pontos de partida é igual ao número das ciências naturais e “humanas”. Todas as explicações assim formuladas terão em comum que apontarão as causas do gesto. Mas explicações causais não atingem o significado da pergunta. Quando pergunto por que fumo cachimbo, não quero conhecer sua causa, mas o motivo do meu gesto. Isto porque ao fumar estou convencido que não sou obrigado a fazê-lo, mas que poderia estar igualmente mastigando chiclete. A diferença entre causa e motivo caracteriza a diferença entre reflexo condicionado e gesto. Embora o gesto esteja, ele também, condicionado, tudo se passa nele como se fosse livre. De maneira que, para que possamos responder à pergunta significativamente, devemos assumir um ponto de partida diferente: aquele no qual decisões são tomadas.
Feito isto, constatamos que se trata de gesto que não permite ser “racionalizado”, no sentido de: tornado mais eficiente. Por certo: é fácil construir cachimbos que jamais entopem, limpadores combinados, bolsas nas quais todos os acessórios podem ser comodamente guardados, e todos os tais aparatos podem ser efetivamente adquiridos em lojas especializadas. Mas tal “racionalização” liquidará o essencial no gesto. Isto prova que a finalidade do gesto não é inspirar fumo, que isto não passa de pretexto do gesto, e que a sua verdadeira finalidade é precisamente fazer os movimentos complexos do gesto. Em
outros termos, se trata de gesto que é sua própria finalidade. Em soma, se trata de um rito.
O que caracteriza ritos é o fato que são movimentos estereotipados. Mas constatamos o contrário ao observar o gesto de fumar cachimbo. Todo fumador tem seu estilo próprio, e está disposto a defendê-lo “racionalmente” em discussões intermináveis com outros fumantes. Há, aqui, contradição característica do rito: é gesto não “racionalizável”, mas sustentado “racionalmente”. A contradição revela dialética específica imanente ao rito, e inteiramente diferente da dialética imanente ao gesto do trabalho. No trabalho, há dialética entre teoria e práxis, graças à qual a práxis se teoriza e a teoria se adapta à práxis. No rito, a práxis é antiprática: o gesto não visa meta externa, e a inalação de fumo é apenas pretexto. E a teoria é antiteórica: não se trata de explicação objetiva, mas de uma série de opiniões subjetivas (doxa). A dialética imanente ao rito é a entre várias pseudoteorias, (ortodoxas), e várias práticas anti-práticas (estilos). E como tais oposições não podem ser sintetizadas, trata-se de dialética negativa.
Fumar cachimbo é rito profano. Não toca o fundo da existência do fumante. Por isto, as discussões “teóricas” entre fumantes se passam em clima de tolerância sorridente. Mas quando se trata de rito religioso, tal clima é outro, (exemplo: os comentários sobre Talmud). A questão se o fumo deve ser colocado firmemente no cachimbo ou não, e a questão se é permitido ou não comer ovo botado no Sabath é da mesma “teoricidade”: questão de estilo. Em tais discussões não é a “razão teórica” nem a “razão prática” que são mobilizadas, mas outra “razão”, que poderia ser chamada de “estética”. A tradição judaica a chama de “pilpul”. E é esta a “razão” que caracteriza o rito.
O gesto de fumar cachimbo não é, pois, movimento estereotipado no sentido estrito do termo. Mas nenhum gesto o é em tal sentido. Já que o que caracteriza todo gesto é a convicção subjetiva de ser ele “livre”, sua estrutura deve ser “aberta”, isto é plástica e individualmente variável. Os movimentos estritamente estereotipados (como a dança das abelhas ou a construção de ninhos) têm saber não-humano, e quando são observados no homem (tiques ou atos neuróticos) têm saber patológico. Fumar cachimbo não é movimento deste tipo. Chamar tais movimentos de “ritos” é erro ontológico, porque as ciências são competentes para explicá-los, mas são incompetentes para explicar ritos.
Mas o gesto de fumar cachimbo é movimento estereotipado em sentido mais amplo. Trata-se de um ato que se passa dentro dos parâmetros de determinado modelo. Tal modelo não imposto sobre o fumante pela sua circunstância apenas (pelo cachimbo, fumo, etc.), mas principalmente pelo fato que o fumante escolheu o modelo deliberadamente como fator limitativo do ato. Isto distingue o rito dos demais gestos. Todo gesto é limitado pelas circunstâncias, mas o rito, ao contrário dos demais gestos, quer ser assim limitado. Não quer se libertar das “regras” avançando contra a sua limitação, mas quer se re- alizar dentro das “regras”. Pois isto caracteriza todos os gestos da “arte”. O rito é gesto artístico. Fenômeno da “vida estética”. Afirmativa ousada por não concordar com o conceito habitual que temos dos ritos. Pois não os visam, acaso, transformar o mundo (a hóstia em carne, caçar elefantes)? Não são, portanto, “éticos”, bons para algo? O fumante afirma que fuma para inalar fumo, e quando diz, o crê, e o fumo é “bom”. Mas, a despeito da sua “boa fé”, está enganado. Fuma para fazer o gesto. Que o rito não é gesto essencialmente “ético”, mas “estético”, se torna visível no gesto de fumar cachimbo, precisamente por tratar-se de gesto profano, portanto, livre de ideologia.
Pelo contrário: tal observação permite afirmar que quanto mais rito visa meta “ética” (transformar o mundo), tanto menos é rito verdadeiro. Tal metaética do rito pode ser chama- da de “magia”. A magia do rito da chuva é querer fazer chuva e a magia do rito da missa é querer a transubstanciação. Isto explica o violento engajamento dos profetas judeus contra a magia. Para eles, magia é “abominação”, precisamente porque deturpa o rito. Para eles o rito é meta em si, gesto “absurdo”, e a vida no rito, a vida “absurda”, é, para eles, a vida religiosa. Mas a afirmativa de que o rito é um fenômeno da vida estética é ousada não apenas por não concordar com o conceito habitual do rito, ela o é mais ainda por não concordar com os conceitos habituais da arte. Por certo: havia sempre a tendência romântica de “sacralizar a arte”. Mas a afirmativa não sacraliza a arte, pelo contrário: estetiza o rito. Não afirma, romanticamente, que o engajamento em arte é engajamento religioso. Afirma, pelo contrário, que o engajamento religioso é uma das consequências do engajamento em arte. Não explica a arte religiosamente, mas explica a religião esteticamente. Não sacraliza a arte, mas desacraliza a experiência religiosa. E o faz em base de observação de rito tão profano quanto o é fumar cachimbo. Por isto é ousada. É preciso tentar abarcar o alcance de tal afirmativa.
A existência se manifesta por gestos. O homem está no mundo na forma dos seus gestos. Classificar gestos seria classificar formas de vida. A seguinte classificação se propõe: (a) gestos contra o mundo (trabalho), (b) gestos em direção dos outros (comunicação) e (c) gestos como finalidade em si (arte). Trata-se, como em toda classificação, de esquematização. Na realidade todo gesto é síntese das três classes propostas. Tal classificação permite a distinção entre três formas de vida, também esquematizada: vida ativa, vida comunicativa e vida estética. Conhecemos, na nossa tradição, este tipo de classificação, por exemplo, a platônica: vida econômica, vida política, vida contemplativa, ou a kierkegaardiana: vida estética, vida ética, vida religiosa. Mas a classificação proposta difere das tradicionais por não estabelecer hierarquia. Pois bem: a afirmativa ousada afirma que a experiência religiosa ocorre não na vida ativa, nem na vida comunicativa, mas na vida estética e é por isto que é ousada.
Voltemos, para ver porque ela se impõe, à questão primitiva: por que há fumadores de cachimbo? A resposta evidente é: porque isto lhes da prazer. Dá prazer interromper um ato útil, (escrever ou conversar), afim de, inutilmente, desmontar o cachimbo, limpá-lo com um alicate velho para unhas, perfurá-lo com agulha de crochê, recolocá-lo, tirar o saco de fumo do bolso, colocar o cachimbo entre os dentes, enchê-lo lentamente de fumo, guardar o saco no bolso, tirar o isqueiro, girá-lo, acender lentamente em torno do fumo no cachimbo, inspirar a fumaça, e voltar ao ato útil interrompido. Dá prazer estar obrigado a bater com o cachimbo contra o cinzeiro especialmente grande parar tirar as cinzas, e a manter o cachimbo quente entre as mãos antes de poder recolocá-lo num bolso especial. Dá prazer ter que gastar tempo com a escolha de um cachimbo “apropriado” em loja, e ter que gastar dinheiro na sua compra. A soma de tais prazeres perfaz o prazer de fumar cachimbo.
Mas tal resposta não é satisfatória, porque, afinal, de qual prazer estamos falando? Do prazer que exige sacrificios e interrompe atos úteis? Não será, pelo contrário, tal “prazer” uma forma de sofrimento? Uma “paixão”, (e toda paixão, segundo a moral burguesa, não é apenas sofrimento, mas também nociva à saúde, portanto, à “salvação”, e fumar cachimbo é efetiva- mente nocivo à saúde)?
Duas palavras-chave ocorreram “sacrificio e “interrupção do útil”) Fumar cachimbo dá “prazer” porque interrompe ( a vida útil com sacrificios inúteis. Mas por que isto dá “prazer”? Porque graças a tais sacrifícios e a tal interrupção da vida útil, começamos a viver para viver. Quem fuma vive sua vida. Manifesta a sua existência por tal gesto simplesmente para manifestá-la. Isto permite ver que “viver sua vida é o contrário de “soltar-se”. Quem se solta, se deixa ir, se perde em movimentos desordenados. Quem vive sua vida encontra-se a si próprio no seu estilo de fazer gesto estereotipado no sentido elaborado. Viver sua vida é reconhecer-se em gestos cuja estrutura foi deliberadamente assumida como limitação (“sacrificio”) e que são feitos para poder reconhecer-se (“inúteis”). Viver sua vida é viver artisticamente. Viver sua vida é não viver “espontaneamente”, mas deliberadamente para vivê-la. Quem fuma cachimbo vive deliberadamente sua vida e é isto que lhe dá prazer.
Com efeito: fumar cachimbo é um dos exemplos mais belos de uma vida artística. A questão se impõe: por que, quando se fala em arte, não se fala jamais em tal gesto? E a resposta se impõe, ela também: porque nós, os ocidentais, esquecemos do que se trata a arte. Esquecemos que arte é como se vive para viver, que arte è como os homens se encontram a si mesmos no mundo. Esquecemo-lo porque na nossa cultura não se vive para viver, mas para mudar o mundo. O clima da nossa cultura não é arte, mas a “história”, isto é: trabalho. Por isto não reconhecemos “arte” no gesto de fumar cachimbo. Mas há outras culturas que permitem mais claramente ver o problema que aqui surgiu.
As manifestações da vida artística negra (tambor, dança, máscara etc.) são mais próximas do nosso gesto de fumar cachimbo que da nossa arte. Quem bate o atabaque o faz para fazê-lo, e encontra-se no seu gesto precisamente por ser estereotipado (o ritmo é imposto por deliberação) e por ser inútil. Quem faz máscara, dispõe de material, ferramentas e modelo específicos que lhe são impostos. Não visa como faz o escultor ocidental, experiências com materiais novos, inventar ferramentas novas ou “superar” o modelo. Procura fazer o melhor possível dentro das limitações que aceita. Por isto, a arte negra parece, a nós ocidentais, tão estática e estereotipada. Erro. Precisamente por aceitar suas limitações, pode o artista negro exprimir melhor que o ocidental a sua existência de cada artista aqui e agora. O artista negro está mais próximo que o ocidental das fontes das quais a arte brota. Porque a cultura negra na África e América, (na medida na qual não tem sido contagiada pela nossa), é fundada sobre a vida estética. Os seus participantes vivem para viver sua vida, e isto pode ser observado pela beleza que emana das suas vidas quotidianas.
Mas, dirão alguns, o tambor, a dança, a máscara não são, de maneira alguma, comparáveis ao gesto de fumar cachimbo. O tambor provoca um deus a cavalgar filha de Santo, a dança provoca chuva e a máscara afasta espíritos. Quem fuma cachimbo não faz nada de comparável. Mas tal objeção perde o essencial na arte negra. Quem bate tambor (ou caixa de fósforos ou ritmicamente, máquina de escrever), não o faz para provocar um deus. Dedica-se de corpo e alma ao gesto. É precisamente por isto, por tal dedicação total ao viver sua vida, que, espontaneamente, às vezes o deus aparece. Aparece, não por ter sido deliberadamente evocado, mas porque ter a experiência do deus é aspecto de ter experiência de si mesmo. O deus não está em
qualquer lugar externo ao tambor e é chamado para aparecer nele. O deus está em quem bate o tambor, e aparece quem bate o tambor, e aparece quando quem bate o tambor se reconhece a si próprio no gesto. A magia não é o propósito da arte. A arte se torna mágica espontaneamente, quando feita com dedicação absoluta. Por certo: a força mágica da arte que assim se revela pode, posteriormente, ser utilizada deliberadamente em cerimônias, como o é o candomblé ou a macumba. Mas isto já não é mais arte “verdadeira”, mas aplicada. A experiência religiosa é vivência que surge espontaneamente no curso do gesto artístico e nos ritos deliberadamente mágicos já é deturpada. É o gesto artístico que abre o espaço à experiência religiosa,
a nossa cultura pensa ter “superado” a magia, não por ter elaborado técnica mais eficaz para mudar o mundo. “Superou” a magia, porque em nossa cultura o poder mágico da arte se manifesta raramente. Isto porque quando fazemos “arte” no nosso sentido do termo, visamos sempre também um objetivo externo ao gesto. E quando fazemos gestos artisticamente “puros” (como quando fumamos cachimbo), não nos dedicamos a eles com corpo e alma. Fumar cachimbo é profano, não por não ser mágico, mas por não ser feito com dedicação absoluta. E por não ser feito assim, não é mágico. “Superamos” a magia, não por termos recusado a sua “técnica”, mas por termos esquecido do que se trata. E ao termos esquecido isto, esquecemos de que se trata na experiência religiosa. Por isto a “sacralizamos”.
Todo artista sabe, ainda, que é no gesto artístico, e somente nele, que o homem se encontra a si mesmo. É somente no tocar violino, ou pintar, ou dançar, que o violinista, o pintor e o dançarino se encontra. E todo artista sabe, ainda e obscuramente, que ter-se encontrado assim no gesto inútil e cheio de sacrificios é ter tido experiência religiosa. Não há nada de “sacral” nisto: pois descobrir-se a si mesmo no gesto é ter descoberto o fundo da existência, sua absurdidade. Descubro-me no gesto absurdo, porque sou, no fundo, absurdo, e vivo minha vida em tal gesto absurdo, porque viver é coisa absurda. Creio ser isto o princípio do rito no Zen budismo: o rito da cerimônia do chá, do arranjo de flores e da caligrafia abrem espaço à experiência religiosa, precisamente por não ter por meta tomar chá ou fazer bouquê ou escrever texto, mas encontrar-se a si próprio no gesto. É o absurdo do gesto que faz dele rito religioso. E sei que o princípio do rito judeu não são propósitos éticos, políticos, sociais ou sanitários (isto são pretextos ideológicos), mas a sua absurdidade. Precisamente por isto são ritos religiosos. A grande descoberta dos profetas judeus é a que a experiência religiosa é a experiência do absurdo. É a isto que chamam “Deus”, Os profetas não são contra magia por tê-la “superada”, pelo contrário: são convencidos que funciona. São contra ela, por estarem convencidos que deturpa a experiência religiosa. Querem a vida estética (sem dizê-lo e sem sabê-lo) porque querem a vida absurda a vida do rito “puro”
O fato de fumarmos cachimbo é prova que somos, a despeito das nossas vidas “históricas”, virtualmente todos ainda artistas, monges Zen e profetas. Mas prova também que não o semos efetivamente. Fumamos para protestar contra a utilidade estúpida das nossas vidas cotidianas. Mas o fazemos como ersatz e caricatura de uma vida deliberadamente absurda. E isto permite que respondamos à pergunta primitiva: por quê há fumadores de cachimbo? Porque nos revoltamos contra a utilitariedade das nossas vidas, e porque nos falta coragem de viver absurdamente. Profanamos.
Mas possivelmente isto esteja mudando atualmente. O gestos do tipo “fumar cachimbo” estão se tornando mais frequentes, exigem sacrificios maiores, e são feitos com dedicação mais perfeita. Os psicotrópicos são disto o exemplo mais óbvio, mas há numerosos outros. Se isto for de fato assim, tais gestos novos seriam manifestação de profunda modificação que se processa atualmente na nossa forma de vida. A existência “histórica” estaria, em tal caso, em vias de ser substituída por vida estética aberta “a” experiência religiosa. Toda especulação teórica quanto à crise pela qual estamos passando é necessariamente abstrata. Mas se aceitarmos a tese segundo a qual a existência se manifesta por gestos, a nossa crise existencial poderia ser captada concretamente pela observação das modificações nos nossos gestos. Destarte a observação de gestos, como o é o de fumar cachimbo, permitiria captar concretamente um aspecto da nossa crise religiosa.
Alimente sua alma com mais:
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