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Cultos Afro-americanos

A responsabilidade política e social de resistência da Quimbanda Brasileira

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Texto de Danilo Coppini – Casa de Pantera Negra 49

casadepantera.com.br | @quimbandabrasileira

Saudações a todos (as):

Em nome de Vossa Santidade Maioral, que essas palavras cheguem nos abismos obscuros das pessoas que não aceitam o fato de que a sociedade e a religião andam paralelamente e que um (a) dirigente espiritual tem por obrigação expandir sua mente para poder dar sentido a sua busca individual, afinal, quando falamos de Quimbanda Brasileira, estamos falando do culto aos Poderosos Mortos que nada mais são dos que espíritos humanos que alcançaram níveis de entendimento, desprendimento, conhecimento e capacitação tão profundos que se tornaram aptos à condução dos que ainda estão trilhando dentro dos invólucros materiais. 

O processo de formação da Quimbanda Brasileira é muito complexo, afinal, estamos retratando uma via religiosa e mágica basicamente formada por espíritos que sofreram os piores castigos físicos, mentais e espirituais que os seres humanos poderiam suportar. Vamos fazer um pequeno resumo disso:

Escravidão, estupro, aniquilação de Direitos, castigos físicos, destruição espiritual, marginalização, perseguição, mutilação, condicionamento emocional, desespero, doenças, enfim, como dito anteriormente, isso é apenas um resumo do que pessoas iguais a eu e você (que está lendo) vivenciaram por centenas de anos no processo de colonização dessa Terra chamada de Brasil, cuja bandeira ostenta os dizeres “ordem e progresso”. 

Quem já passou por qualquer situação similar entenderá bem minhas palavras, mas infelizmente na Quimbanda ainda existem os que jamais entenderão isso, pois, talvez nem acreditem que essas barbaridades ocorreram. Os livros de história, narrados pelos invasores e ditadores cristãos, jamais retrarão o que decantou para o fundo do copo, apenas mostrarão a nata, a superficialidade desse período de trevas que ocorreu no passado e ainda persistem nos dias atuais sob outras máscaras. Entretanto, a primeira pergunta é:

“Porque relacionar a Quimbanda a isso?”

Nesse exato ponto começa um dos textos mais difíceis que já escrevi, mas que certamente irá tocar na alma de centenas de pessoas que, assim como eu, entendem o que é opressão real e continua. Quando decidi seguir pelas sendas da Quimbanda já sabia que não seria fácil, afinal, os ícones centrais desse caminho são justamente os espíritos marginalizados que foram demonizados propositadamente por uma sociedade cristã, elitista, caucasiana e que se tivesse condições manteria a escravidão explícita até os dias atuais. Essa sociedade foi responsável pela destruição religiosa de centenas de povos, pelo massacre de culturas milenares e pela separação em castas da humanidade. O holocausto ameríndio, a escravidão do povo preto, a exclusão social de pessoas europeias que praticavam suas religiões regionais, o povo cigano,  novos-cristãos (judeus forçados a conversão), a deportação e o batismo forçado para o cristianismo foram uma estratégia ( de limpeza europeia) que ao longo dos séculos foi sendo lapidada, ou seja, os perseguidores jamais abandonaram suas convicções de superioridade, apenas as modificaram porque sabiam que se o povo acordasse do sono e se libertasse do medo todos eles seriam massacrados das piores maneiras possíveis. Para que isso não ocorresse, a escravidão foi sendo mascarada com um rosto de esperança, afrouxaram os enforcadores e deram uma espécie de espaço controlável e assim, nossa sociedade foi sendo formada e desenvolvida.

Existem diferentes tipos de seres humanos e isso cada dia fica mais nítido (pelo menos para mim): os que aceitam e tiram proveito dessa camuflagem escravista, os que gostariam de estar nessa situação, porém, ainda não conseguiram se inserir no âmago da elite dominante, os que trabalham conscientemente para manter a estrutura e a grande massa (maioria) que foi adestrada e condicionada a aceitar as migalhas que lhe são dadas em troca de suas vidas (trabalho semi escravo). A alienação dessas pessoas foi tão bem estruturada (socialmente e espiritualmente) pela elite que eles não conseguem enxergar a realidade disso e foram transformados nos pretos e ameríndios que idolatram os donos das casas grandes, que fazem o sinal da cruz, acreditam no redentor brancos de olhos azuis e até as bruxas que trabalham com santos católicos (mesmo sabendo que 90% deles foram canonizados em troca de dinheiro e ouro) e os mantêm em seus altares. Querem ser como eles, afinal, tiveram suas raízes arrancadas e não sabem mais sobre seus próprios ancestrais, quem realmente eles (as) eram e como chegaram nessa Terra adubada pelo sangue. 

Já retratamos essa realidade muitas vezes e estamos na batalha há décadas, mas recebemos pedradas por falar a verdade: a maioria dos (as) pessoas que trabalham com Exu e Pombagira deveriam ao menos se esforçar para saber quem foram esses espíritos e quais são suas verdadeiras intenções, o que esperam do desenvolvimento e como seria o culto verdadeiramente liberto de toda essa teia imunda. Porém, essa turminha que ama a defumação vovó maria e o perfume de alfazema não está preocupada com o que os espíritos realmente têm a dizer, porque os encarceraram novamente em casas brancas e lhes retiraram o poder de fala. Quando um (a) médium se comporta fora do padrão esperado pelos dirigentes, os mesmos não estudam o caso, apenas julgam, expulsam e excluem de seu meio. Porque deveriam ajudar? Isso os beneficiaria em que? No máximo, cobrarão um valor absurdo para realizar um trabalho espiritual falho e cheio de erros que comprometerão ainda mais a vida da pessoa. Todos os dias recebemos relatos assim, todos os dias nos dispomos a ouvi-las e tentar de alguma forma direcioná-las, mas chega um momento que só isso não é capaz de resolver o problema estrutural e essas mesmas pessoas, que já tiveram seus mentais massacrados pelo cristianismo camuflado, não suportam mais lutar em busca de respostas e acabam nos bancos pentecostais, afinal, é mais fácil ter um livro de condutas e a aceitação plena da sociedade do que lutar por uma religião onde os dirigentes tratam-na com desprezo.

Essa é apenas a ponta desse iceberg imundo. Religião também se tornou sinônimo de dinheiro fácil e num país que desde sua invasão portuguesa convive com a corrupção, roubo e estelionato, tem uma população muito inclinada a praticar tais atos. Nessa manjedoura nascem pais e mães de santo de todos os tipos, que misturam as religiões sem um embasamento mínimo de Tradição e legado, pois falar sobre Tradição é entrar no campo da ridicularização. Como assim? Tradição é algo desprezível para os novos universalistas que inseriram Exu e Pombagira como “policiais do astral”, guardiões particulares, seguranças privados. Novamente vem o pensamento:

“Até quando os humanos permanecerão cegos que esse tipo de comportamento é digno de um dono de casa grande que precisava dos negros fortes e fiéis a ele para controlar a massa dos desgraçados com chicotes, queimaduras, amputações e estupros?” 

Aí chegamos na Quimbanda Brasileira. Dentre os marginalizados existiram almas que sofreram na pele e ao invés de serem adestrados, se transformaram em seres revoltados, aquilo que o Estado burguês e elitista mais temia (e teme). Nos lugares mais repudiados, nas periferias (porque o povo preto e pobre – e até alguns brancos pobres) não poderiam conviver com a elite branca (a não ser que fossem empregados capazes de se jogar no chão para os brancos não sujarem seus sapatos). Então, quanto mais longe eles eram relocados, mais conveniente era a estética de destaque para os casarões e o centro onde os burgueses e elite transitavam. A presença do povo preto se tornou um estorvo para uma minoria dominante. 

O que a elite cristã temia (e teme)? A figura do diabo que foi usada como mártir do povo rebelde. Vindas da faxina europeia, bruxas e feiticeiras ibéricas trouxeram consigo seus velhos hábitos, suas magias e sabedorias e se não fosse por elas, a imagem do diabo cristão não ganharia a força necessária, pois os jesuítas e padres que foram encaminhados de Portugal tinham como principal missão destruir a cultura e os deuses dos ameríndios, demonizá-los e controla-los a partir das palavras da bíblia, dos hábitos e crenças cristãs. Jurupari, Anhagá, Andirá, Capelobo, Ticê, Catxuréu, Xandoré, dentre tantos outros deuses do submundo ameríndio foram anexados à massa que já havia vindo da Europa com chifres e rabo e com o tridente na mão: Satã e Lúcifer. Toda essa Tradição regional que tem sido resgatada por escritores comprometidos como por exemplo Rafael Noleto, foi praticamente extinta e tenho plena convicção que 80% dos leitores nunca tinham ouvido falar alguns dos nomes que citei e não têm a mínima ideia da riqueza da nossa cultura. 

Exus e Pombagiras receberam aspectos zoomórficos caprinos porque eram representações do famigerado Bode preto, a marca do Satan, o terror dos seguidores de várias religiões monoteístas. O Sabá das Feiticeiras ocorreu no Brasil e a Quimbanda é fruto do compartilhamento de saberes esotéricos de combate mágico (através de evocações e invocações) que ocorreu entre brancos, negros e ameríndios. Quando falamos em Maioral, estamos falando em nome desses deuses esquecidos e demonizados do Brasil, bem como os que vieram  da África e da Europa. Para aqueles que ainda não sabem, Exu já chegou no Brasil completamente associado ao diabo. O fato das imagens de Exu e Pombagira terem sido demonizadas assumindo a estética do medo foi um mecanismo de blindagem contra os avanços do cristianismo. Mas, o que eles (as) não contavam é que os Poderosos Mortos assumiriam essa plasticidade no astral e iniciariam uma resistência ativa. Tudo que a sociedade elitista repudiava e demonizava (inclusive a sexualidade liberta das Pombagiras) foi sendo edificado através de infiltrações propositais dentro de vários pontos onde ocorriam manifestações espirituais e assim se apresentaram os primeiros Exus e Pombagiras, ou seja, onde existia um ponto de exclusão social e se praticava algo fora dos olhos da Igreja, poderia ocorrer a magia dos excluidos. Os rebeldes e inconformados, os chicotados e estuprados, as que morreram queimadas ou foram amaldiçoadas a morrer de fome encontraram meios de se vingar usando a máscara de Exu (a divindade Yorubá) acrescido de uma alcunha que determinava o que esse espírito tinha capacidade de fazer. Os Cupidienses (índios-Morcegos) podem ter sido o principio do que conhecemos hoje como Exu Morcego e vários diabretes, se estudados em profundidade, tem características muito similares à certas classes de Exu e Pombagira. 

Quando falamos que Exu é o diabo é porque entendemos que esses Poderosos Mortos que se uniram independente da origem para desordenarem o Estado Cristão tem como principais funções a corrupção da integridade, ou seja, sem eles (as) continuaríamos escravos da Igreja e seus ditames moralistas (até hoje existem os moralistas de internet que falam de família integra, mas estacionam seus carros de luxo nos pontos escuros em busca de sexo com prostitutas e transexuais – geralmente de forma passiva). 

O coro que grita: “Exu não é o diabo!” deveria se envergonhar e abaixar a cabeças para esses ancestrais que tanto sofreram para que eles (as) pudessem ao menos se manifestar. O coro que vai festejar Exu deveria erguer os tridentes contra o Sistema opressor, contra autoridades corruptas, contra a discriminação por opção sexual, contra o controle explicito das Igrejas Evangélicas, contra a destruição dos terreiros sem fazer desse ato político uma festa que já começa acontecer com cenas de Exu incorporado de tênis debaixo do sol misturando egrégoras e desrespeitando as Tradições. A festa terá muitas fotos que virarão memes capazes de enfraquecer as patas fendidas, os chifres de sabedoria, as vestes sagradas de autoridade, as hordas que invadem os lares cristãos e corrompem um de seus membros o (a) levando para o caminho da espiritualidade ancestral. 

Aí vem o questionamento:

“Quimbanda se mistura com política?”

A resposta deveria ser não, porque o quimbandeiro (a) que mal conhece sua própria história acredita que a Quimbanda é uma espécie de sistema de gênios da lâmpada e por isso existem tantos processos contra pais e mães de santo por estelionato. Trabalho caros, promessas não cumpridas, ameaças, enfim, essa é a realidade que ninguém quer falar, mas eu falo sem medo algum. Na minha casa, Exu é Rei e Pombagira é Rainha e respeitamos suas trajetórias, nos espelhamos em suas histórias e procuramos não repetir os erros que alguns de nossos próprios antepassados podem estar envolvidos. Não se trata de divida social, mas de dividendos espirituais. Quem luta contra o Sistema merece aplausos, quem dança conforme a música merece o desprezo. 

Ou você é quimbandeiro (a) integralmente ou você não é nada além de uma pessoa que gosta de estar com os fios invisíveis lhe manipulando. E não se enganem porque muitos deuses de outros continentes são apenas máscaras do mesmo deus que se orgulha de ver os homens na miséria. 

“Não posso acreditar num Deus que quer ser louvado o tempo todo.” Friedrich Nietzsche

Para finalizar esse primeiro ensaio sobre o tema, deixo aqui minhas palavras:

Se o quimbandeiro (a) é alheio a tudo a todos a sua volta, se para ele só vale o dinheiro do cliente e isso lhe basta, se sua fé baseia-se na ciência espiritual e não no esforço que os espíritos tiveram para codifica-la, se a Quimbanda (caminho religioso marginal) sair da marginalidade e permitir que Exu e Pombagira se tornem apenas humanos enfraquecidos e não uma consciência de equilíbrio através da punição, se o (a) quimbandeiro (a) temer a injustiça tendo armas espirituais em suas mãos capazes de saná-la, se permitir que os mais novos transformem uma luta de sobrevivência em um caminho de riqueza, a Quimbanda não tem serventia alguma, o diabo não existe nela e Maioral repudiará o (a) quimbandeiro. Se eu for julgado por outros Quimbandeiros (as) como ativista político que seja porque me orgulho de saber da onde veio a minha crença e para onde vai. Se argumentarem que a quimbanda não é um caminho de resistência apenas direi: Cubra o seio da Pombagira, amoleça o falo de Exu, não mate mais nada para esses espíritos, porque deles só poderemos esperar decepções e caminhos errôneos. O (A) quimbandeiro não bom ou ruim, ele (a) é o que precisa ser, assim como foram nossos antepassados. Se o Sistema te chicoteia e você gosta, saiba que adorarei lhe chicotear. Se eu não souber conversar com o Povo sofrido, jamais terei asco da elite que adora vê-los suplicando por comida. Não é injustiça social; é injustiça religiosa. Deus é uma vergonha. 

Quimbanda pra Quimbandeiro! Para sempre o Bode Preto!

casadepantera.com.br | @quimbandabrasileira


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