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Shirlei Massapust
Certa vez estudantes alemães pretenderam criar a ofensa politicamente correta dizendo literalmente “eu o insulto” (beleidigung) ao afrontar cada desafeto. O filósofo da linguagem John Searle observou o malogro da pretensão de insultar, emitindo o parecer de que – apesar de formulada como um procedimento verbal convencional – tal frase seria uma variante de não-atuação porque 1) a convenção não é aceita socialmente e 2) o senso de ridículo nos faz perceber um impedimento contra a aceitação da polidez de um insulto.[1]
O filósofo da linguagem J. L. Austin observou que o insulto efetivamente ofensivo é injurioso; ou seja, deve estar baseado em características ou fatos verossímeis, senão reais.
Uma das coisas que os filósofos fazem ultimamente é examinar com atenção especial certo tipo de sentenças declarativas que, embora não exatamente falsas nem contraditórias, parecem, contudo, absurdas – por exemplo, afirmações que se referem a algo que não existe, como: “O atual rei da França é careca”. Poderíamos ser levados a aproximar isto da intenção de doar algo que não possuímos. Não há uma pressuposição de existência em ambos os casos? Não se trata de uma declaração que se refere a algo que não existe, e que não é propriamente falsa, mas nula? E quanto mais consideramos uma declaração, não como uma sentença ou proposição, mas como um ato de fala (a partir do qual os demais são construções lógicas), tanto mais estamos considerando a coisa toda como um ato. Ou, ainda, há semelhanças óbvias entre uma mentira e uma promessa falsa.[2]
Quando J. L. Austin publicou How To do Things With Words (1962) a França já era uma república, não sendo, portanto, governada por um rei. Mas mesmo que o falante desejasse ofender ao legitimista Alfonso Jaime Marcelino Victor Manuel Maria de Borbón y Dampierre (1936-1989) malograria neste intento pois tal homem não era calvo.
No livro Grafitos de Banheiro – A Literatura Proibida (1986) o autor Gustavo Barbosa observa que insultos genéricos, dirigidos a leitores aleatórios e desconhecidos, são geralmente palavras de baixo calão significando excrementos, órgão excretor, atividade sexual, órgão reprodutor e maternidade. Ou seja, todo mundo usa banheiro, pratica sexo e é filho de alguém. Tipificar o natural como ofensivo insulta o mundo inteiro.
O caso do uso de termo “vampiro” enquanto insulto é mais específico. Quando um falante ofende um ouvinte chamando-o de vampiro, este falante entende que o ouvinte possui alguns traços vampirescos de fato. O objeto da ofensa não é normal ou ordinário. “Vampiro” usualmente diz respeito à exploração capitalista do industrial sobre o alienado, embora também possa ocorrer o inverso. No Brasil existe o verbo morcegar, sinônimo de procrastinar no trabalho (andando de um lado a outro). Vampirismo tem muito a ver com dinheiro. Todo banqueiro e toda pessoa que realiza empréstimos a juros é vampiro. Mas o pior tipo é o servidor público – especialmente o ocupante de cargo político – que comete crime de prevaricação e/ou é notoriamente imperito em sua função. Por causa do romance Drácula (1897), de Bram Stoker, o vampirismo foi associado ao glamour, de modo que as vezes basta que um político esteja elegantemente vestido para ser chamado de vampiro.
Iniciada no ano de 1789, a Revolução Francesa representou um avanço decisivo no processo de ascensão da burguesia como classe dominante na vida econômica, social, politica e cultural do mundo moderno. O historiador brasileiro Raymundo Carlos Bandeira Campos localizou uma caricatura da véspera da revolução[3] onde membros do Terceiro Estado se enfastiam num verdadeiro trabalho de Hércules tentando cortar todas as cabeças duma hidra que representa os múltiplos impostos cobrados pela nobreza. A estaca cravada no coração do monstro indica que a odiosa hidra está a receber o tratamento do típico morto judicialmente condenado a não mais assediar os vivos.
Se o espectro do morto incômodo era relacionado pelos revolucionários à nobreza de Versalhes, era igualmente associado pelos conservadores aos seus opositores políticos. O acervo da Newberry Library abriga um panfleto onde o finado Jean-Paul Marat (1743-1793), editor do jornal l’Ami du peuple, é vilipendiado e definido como sendo “o vampiro mais notável da República Francesa”. Contudo, o autor admite que “este vampiro sedento por sangue” não bebia o líquido derramado. O opositor o considerava “assassino ou insano” pelo ato de incitar a violência popular contra monarquistas e conservadores.[4]
Em 1852 o designer Jean-Jacques Barre (1793-1855) atendeu ao pedido de Napoleão III para elaborar a moeda de dix centimes de franco, cunhada em bronze, mostrando o rosto do rei visto de perfil sob a legenda “Napoleon III Empereur”. Na outra face estava a Aigle de drapeau, águia segurando folhas de oliveira com raios de trovão (emblema heráldico do império[5]), sob a legenda “Empire Français”. Embora tal modelo tenha sido o padrão produzido pela casa da moeda de 1852 até 1877, a oposição politica cunhou moedas satíricas a partir da véspera da batalha de Sedan, mostrando o rei usando elmo uhlan ou outro chapéu próprio do uniforme militar prussiano, como se fosse um agente infiltrado do exército inimigo planejando a morte de seu próprio povo.
Napoleão III foi presidente da França de 1849 a 1852 e imperador de 1852 a 1870. Ele exerceu um reinado satisfatório até o momento em que declarou guerra à Prússia de Bismarck, teve medo e fugiu. Isto foi desastroso para a França. Todo o seu exército foi feito prisioneiro. O imperador foi capturado na batalha de Sedan, em 2 de setembro de 1870 e foi deposto pelas forças da Terceira República em Paris. Dois anos depois ele morreu no exílio.
Nas moedas satíricas Napoleão III é alcunhado “Le Petit” ou “Le Miserable”, comumente tem uma coleira no pescoço escrito “Sedan” e, num padrão isolado, aparece fumando. O valor de dez centavos é substituído pela cifra estimada de oitenta mil prisioneiros. No reverso a águia é substituída por uma coruja circundada pelos dizeres “Vampire Français” ou “Vampire de la France”, especificando a data de nascimento e óbito do sistema de governo monárquico vampirizado: Paris 02/12/1851 – Sedan 02/09/1870.
Algumas vezes a coruja segura o mesmo símbolo que a águia. Noutras é uma espada embainhada com raios de trovão. Noutras vezes ainda segura a espada sobre ossos cruzados (símbolo universal de veneno e morte). Assim os símbolos da guerra substituem o ramo de oliveira, tido como símbolo da paz. Aparentemente a portadora trata-se de uma ave específica: O primeiro nome dado pelos ornitólogos à espécie posteriormente renomeada como Tyto alba foi Strix flammea, a “bruxa em chamas”. Até hoje é comum ler na imprensa que este inofensivo animal “sempre foi considerado ave de mau agouro, anunciador de desgraças e até mesmo da morte”.[6]
Isso teve boa aceitação popular e circulou no comércio como se fosse dinheiro com valor de dez centavos de franco. A moeda satírica do vampiro teve tantas edições e variantes que os especialistas em numismática ainda não conseguiram catalogar todas. Na época em que todas as moedas valiam seu peso em bronze qualquer um podia produzir versões não oficiais com valor monetário real. Ou seja, a oposição política podia fazer com que moedas alternativas com valor equivalente aos das produzidas pela casa da moeda fossem usadas e circulassem porque o metal era insofismavelmente autêntico e se os objetos fossem farelos ou pepitas aquilo ainda teria o mesmo valor.
Notas
[1] SEARLE, John R. Os Actos de Fala. Trad. Carlos Vogt. Coimbra, Livraria Almedina, 1981, p 42 e p 41, nota 2.
[2] AUSTIN, John Langshaw. Quando Dizer é Fazer: Palavras e Ação. Trad. Danilo Marcondes de Souza Filho. Por Alegre, Artes Médicas, 1990, p 35.
[3] CAMPOS, Raymundo. Estudos de História Moderna e Contemporânea. São Paulo, Atual, 1988, p 139.
[4] Vie criminelle et politique de J.P. Marat, se disant l’Ami du peuple, adore´, porte´ en triomphe comme tel, et apre`s sa mort, projete´ saint par la jacobiniaille, ou, L’homme au 200,000 te^tes, le vampire le plus remarquable de la Re´publique francaise. (Pamphlet BX4060.A1 S25 ser. 1 v. 52 no. 10).
[5] Emblema usado pela primeira vez durante o Consulado Francês por Napoleão Bonaparte como cônsul-geral durante a Primeira República Francesa, e depois como brasão do império.
[6] SOLITÁRIAS CAÇADORAS DA NOITE. Em: Revista Geográfica Universal, nº 63. São Paulo, Bloch, fevereiro de 1980, p 49.
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