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Shirlei Massapust
Em 1989 a fábrica de brinquedos estadunidense Mattel Inc. lançou a Barbie Beach Blast, de cor branca, que escurecia radicalmente quando exposta à luz solar. Ao mesmo tempo a fábrica de brinquedos paulista Estrela S.A. obteve licença para produzir a versão brasileira Barbie Banho de Sol, com mesma aparência e vestimenta, exceto pelo fato de ser levemente morena e escurecer menos, ainda que sensivelmente, quando exposta à luz.
Ganhei uma Barbie Banho de Sol no meu aniversário de dez anos e estava feliz com isso até uma criatura maquiavélica comparecer à minha festinha trazendo sua Barbie Beach Blast, na intenção de provar o quanto o brinquedo nacional que meus pais me deram era inferior ao importado que seus pais lhe deram.
Diante dum círculo de crianças atentas foi demonstrado primeiro a diferença de cor à sombra e, depois, sob exposição à luz. Eu achei a Barbie Beach Blast monstruosa por clarear rapidamente na parte não exposta, de modo que a figura ficava nigérrima em cima e clara por baixo. Então, no meu ponto de vista, a versão brasileira apresentava uma reação química mais verossímil, próxima da realidade humana. Mas existe gosto para tudo e as meninas concordaram que a produção nacional era uma porcaria mal feita.
Esse era o nível cultural e ético das crianças de classe média, na zona norte do Rio de Janeiro. Humilhação pública era o castigo reservado para quem ganhava algo apenas ruim. Isto é o que faziam quando a coletividade identificava suposto vício redibitório num item original e licenciado, na posse de um indivíduo. Se, ao invés dum produto brasileiro mal feito, eu estivesse ostentando publicamente um produto “pirata” do tipo montado em navio fábrica taiwanês, descaminhado pela rota da muamba no Paraguai, a punição seria a exclusão do grupo social. (Não era como se ninguém tivesse boneca taiwanesa. Nós tínhamos, mas o assunto era tabu e ficavam escondidas no armário quando vinha visita).
Certa vez uma colega de classe, no Colégio Sagres, chamada Andréia, confessou-me algo extraordinário. Durante a temporada de natal do ano 1988 ela foi visitar familiares em um sítio. Embora haja pedido um gravador cassete de presente, ao invés disso ganhou brinquedos em escala 1/6 com formato de geladeira, fogão e bufê rosa. Junto da mobília também ganhou duas bonecas recast do modelo estadunidense Barbie Garden Party #1953. Isso deixou-a profundamente triste, envergonhada, revoltada, cheia de rancor.
Andréia deplorou a tentativa de compensação quantitativa, com brinquedos obtidos em camelô, oposta ao pedido qualitativo duma única máquina que, à época, era tão útil e necessária quando os tablets e smartphones são atualmente.
No início do ano letivo Andréia constatou que muitos alunos tinham ganho gravador cassete. Certa noite, antes de dormir, ela olhou para um canto do seu quarto onde havia um urso de pelúcia Feliz Aniversário, da coleção Ursinhos Carinhosos, fabricado pela Estrela S.A. Neste momento sentiu que o urso lhe falava por telepatia:
— Me dê a sua alma e eu te dou o seu gravador.
Andréia não respondeu. O urso falou mais uma vez:
— Me dê a sua alma e eu te dou o seu gravador.
Novamente, ela não respondeu. Quando pareceu que o objeto falaria pela terceira vez, Andréia gritou e saiu correndo. No dia seguinte sua família quis queimar o brinquedo, mas ela teve pena e não deixou, argumentando que “era muito bonito”.
Andréia me explicou o que sabia sobre objetos falantes: “Dizem que o diabo costuma possuir brinquedos”, mas depois eles voltam ao normal.
Anotei o caso no meu diário de escabrosidades. Em 1992 voltei a fazer um questionário perguntando sobre certos detalhes. Andréia já havia abandonado tais crenças e estimou-me “melhoras”. Todavia, teorizou que talvez tudo haja sido uma reação inconsciente ao seu desejo de possuir um brinquedo que pudesse falar como um gravador.
Após este caso isolado de alucinação auditiva, Andréia experimentou uma alucinação visual. Certa noite, quando estava deitada em seu quarto, sentiu a sombra duma mão “parecida com a do Freddy Krueger” saindo do lado do beliche e se aproximando de sua face. Ou seja, ela viu uma projeção duma memória adquirida, a sombra da icônica luva com garras metálicas do personagem antagonista do filme de horror A Hora do Pesadelo (A Nightmare on Elm Street, 1984), e suas sequências.
A mão preta saiu de traz da cama e Andréia não conseguiu gritar no mesmo instante em que desejou fazê-lo. Quando a paralisia do sono passou a menina gritou três vezes, chamando a atenção dos adultos. Sua mãe Lúcia e sua tia Fátima Sueli entraram no quarto pedindo que Andréia se acalmasse, pois tivera um pesadelo.
Primeiro Andréia julgou que aquilo intentava matá-la. Logo depois o telefone tocou, informando sobre o óbito de Mírtis, uma das nossas colegas da 4ª série, que havia acabado de falecer, vítima de meningite. Então os familiares de Andréia concluíram que de fato havia uma pessoa conhecida em perigo naquele exato momento, sendo o episódio um alerta de conteúdo premonitório ou precognitivo, talvez telepático.
Este episódio foi confirmado pela mãe de Andréia e também por outros familiares adultos, em conversas deles com minha mãe e com outros pais de alunos. Muita gente na escola se impressionou. Seria Andréia uma médium ou sensitiva? Pelo menos, sob meu ponto de vista, à época, isso elevou as narrativas de Andréia a outro patamar.
No meio de tudo anotei uma ocorrência efêmera, porém cômica. Certo dia Andréia ouviu as badaladas do sino da igreja, anunciando as 6h da tarde, e ligou o rádio para rezar. Porém não sintonizou na Super Rádio Tupi, onde toca diariamente a oração da Ave Maria após a reza do romeiro Pedro Augusto. Ela encontrou outro radialista orando e começou a repetir o que ele dizia. Repentinamente a reza foi substituída por um medonho gemido. Andréia levou um susto, mas logo julgou ser problema de estática. Quando estava prestes a tocar no botão de ajuste da modulação do rádio, o homem gritou: “Sai Coisa ruim!” Era um programa de batalha espiritual transmitindo um exorcismo.
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