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por Raph Arrais
O texto a seguir é parte de um dos capítulos de Artemagia: uma reflexão sobre o Caminho, meu livro recém-lançado, disponível em e-book e versão impressa pelas Edições Textos para Reflexão: raph.com.br/tpr
Boa leitura!
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Para ser um mago, é preciso saber.
No entanto, existem muitas formas de saber, e também muitos saberes diversos. Quiçá a forma mais essencial de saber seja saber que não se sabe. Quando o amigo de Sócrates lhe contou que a pitonisa no Oráculo de Delfos afirmou, inspirada por um deus, que ele era o mais sábio de todos os homens, sua resposta foi paradoxal: “Tudo que sei é que nada sei”. Para reconciliar tal paradoxo, ele dedicou boa parte dos anos seguintes a dialogar com muitas pessoas ditas sábias em Atenas, e acabou percebendo que tinha de fato uma vantagem sobre os demais homens, e que isso, e somente isso, talvez o tornasse o mais sábio entre eles: Sócrates sabia que não sabia.
É preciso reconhecer a própria ignorância para iniciar o caminho do saber; mas, ainda mais importante é reconhecer que, mesmo após muitas estações seguindo na estrada do conhecimento, ainda saberemos muito pouco – e decerto ainda não saberemos tudo, e sempre teremos mais por aprender.
O grande filósofo-xamã de Atenas sabia que seu conhecimento era como uma ilha pequenina, com suas praias cercadas de desconhecimento por todos os lados. O saber, todo o saber que se poderia adquirir em vida, era como uma gota no oceano cósmico do Mistério. E, ainda que tal ilha possa ficar um pouco maior ao fim da vida, isso também significa que suas margens com o que ainda falta saber irão tão somente se alargar na mesma medida.
Também devemos considerar que nem todo saber é acadêmico, ou devidamente reconhecido por aqueles que julgam o que é válido saber. Se você vive perfeitamente ajustado ao mundo, já deve ter ouvido dizer que nem todas as religiões devem ser estudadas, pois algumas são más ou “atrasadas”; e que a filosofia na realidade é algo sempre muito difícil de ser entendido, e não serve para muita coisa; e que nada do que escape do “método científico oficial” merece nossa atenção. Para começar a saber como sabe um mago, é inevitável começar a se desajustar do mundo, a se tornar um degenerado, um ser exótico, mas sempre no bom sentido: no sentido da sabedoria em si, que nada descarta, pois sabe que tudo deriva da mesma fonte.
Ao longo de milênios, muito do que se sabe do Caminho foi transmitido adiante por mestres aos seus discípulos. Era algo reservado aos que tinham a sorte de cruzar seu caminho com os filhos dos xamãs. Ultimamente isso tem mudado, e mudado bem rápido. Hoje basicamente todo o conhecimento do mundo pode ser acessado por um pedaço retangular de vidro, plástico e microchips, uma tela para quase tudo o que o homem já colocou em palavras e imagens, bem na palma de nossa mão. Não seria o suficiente para saber?
O saber de hoje não se trata mais de buscar por livros raros ou bibliotecas arcanas, secretas: nada disso, o saber de hoje é basicamente saber o que, dentre bilhões e bilhões de palavras, vale saber, o que diz respeito ao Caminho, à alma, e o que diz respeito ao noticiário passageiro, e a tudo mais o que, daqui a algum tempo, algumas vidas, não será de relevância alguma. É por isso que hoje os mestres talvez sejam justamente os curadores do conhecimento, aqueles que seguiram no Caminho o suficiente para pelo menos saber informar aos que vêm atrás sobre o que de fato os auxiliou na jornada, e o que serviu apenas de atraso.
Uma boa dica é começar pelos clássicos, os livros sagrados que venceram o tempo e as civilizações, e que por isso mesmo ainda são sagrados, embora jamais infalíveis. É assim que o Bhagavad Gita, o Tao Te Ching, o Dhammapada, o Fédon, o Enchiridion, os Evangelhos (inclusive os apócrifos, como de Tomé), o Corpus Hermeticum, as Enéadas, o Dogma e Ritual, o Livro dos Espíritos e o Cosmos, dentre tantos outros, continuam sendo bons pontos de partida na jornada. Isso não quer dizer, no entanto, que somente os textos das gerações passadas, e há muito passadas, possam nos auxiliar. Pelo contrário, em boa medida o saber também passa por saber que o mundo muda, e que todo o conhecimento dos séculos passados pode não ser o suficiente para ser um mago neste aqui.
Para ser um mago, é preciso ousar.
É inevitável ser ousado se desejamos criar o novo, transgredir as cartilhas de conduta, desbravar territórios inexplorados, viver de nosso próprio pensamento, de nosso próprio delírio, de nossa própria imaginação, e não só do que nos mandaram fazer. Sem dúvida faz bem seguir as leis e não querer ganhar vantagem em cima da liberdade alheia, mas não é deste tipo de transgressão que falo aqui. Sócrates não se considerava um “parteiro de ideias” à toa: ele não queria que seus jovens discípulos apenas repetissem os mesmos discursos e os mesmos pensamentos indefinidamente, mas ele desejava ver no mundo novas ideias, ideias-bebês, ideias-crianças, que só poderiam se tornar ideias amadurecidas com o tempo, sim, mas precisavam de algum ventre para florescer!
Não é fácil erigir o futuro. Não é fácil se livrar do peso da ortodoxia, dos “manuais de homens de bem”, e ser um heterodoxo construtivo. Pois a multidão em geral têm medo das grandes mudanças, até mesmo com razão (muitos heterodoxos foram destrutivos), e por isso muitos magos ousados do passado não terminaram em bons lençóis. Há muitos que foram banidos, trancafiados, condenados à morte, crucificados, queimados vivos etc. Felizmente o mundo de hoje alcançou um estágio tal onde os magos podem ousar sem, com isso, arriscarem suas vidas.
E mesmo assim ousar não é tão fácil quanto parece. Não se cria novas ideias do nada, e não se pode avançar além das trilhas já percorridas pelos caminhantes que nos precederam sem antes conhecermos seu pensamento a fundo. Nada de superficialidades: a fundo. É preciso mergulhar de corpo e alma na magia dos que vieram antes, até que se tornem nossos amigos e amigas mais próximos, até que nosso pensamento se alinhe de tal forma com o deles que, daí sim, tenhamos a devida autoridade para discordar.
Desde as antigas histórias nas fogueiras da tribo, muitos caminhantes tentaram se aproximar do Mistério por meios diversos. Mas mesmo nessa caçada da imaginação, quando alcançaram enfim sua presa, perceberam que era descomunal, que rompia os horizontes da linguagem. É assim que uns descreveram como era o seu rabo, mas nada souberam dizer das patas. E outros perceberam como os olhos e os ouvidos se moviam, mas não encontraram a boca. E uns disseram que tinha asas, e outros que era como uma serpente; e uns disseram que vivia em meio ao fogo, e outros que era um tipo de peixe. Em suma, não foi possível descrevê-lo, nem sequer imaginá-lo, mas todos aqueles que mergulharam em seu coração disseram que lá, no fim do Caminho, concordaram sobre o que ele era, embora tenham chegado até lá por vias muito distintas e específicas.
Quiçá todos esses caminhantes tivessem tão somente uma única coisa em comum, um tipo de entusiasmo muito especial, que jamais finda: a ousadia de seguir o chamado do Mistério.
Aquilo que você busca também está lhe buscando. (Rumi)
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Obs.: Texto destinado ao site Morte Súbita inc.
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