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André Correia (Conexão Pagã / @bercodepalha)
Durante a minha primeira década praticando bruxaria eu tinha a ideia de que os meus rituais deveriam ser praticados com o rigor técnico quase laboratorial. Eu lavava e passava meu traje ritualístico, separava as velas, as varetas de incenso, as ervas, posicionava o tambor estrategicamente em um lugar específico, perfumava o ambiente com essências ou incensos e limpava metodicamente as imagens que seriam postas sobre o altar. Eu sempre gostei do mise en place dos rituais, da preparação cerimonial que me conduzia para um estado emocional preparatório para o que seria encenado na hora seguinte.
Eu iniciava esse processo tomando um copo de água fresca ou chá sem açúcar, para ressaltar o sabor das plantas que estavam naquela água. Lembro que os banhos eram tomados com as luzes apagadas, sem absolutamente nenhum foco de luz. Primeiramente eu lavava todo o corpo normalmente, com sabonete e shampoo. Mas com a ausência total de luz, minha percepção do toque da água era aguçada, era necessário tatear os objetos e tubos para encontrar o shampoo correto. Eu cheirava o sabonete antes de passá-lo no corpo, convidando o olfato a acordar. O banho era muito mais do que simplesmente uma limpeza, era uma provocação já ritualística, na qual eu convidava os sentidos para acordar. Isso é muito importante, pois em um ritual as energias, espíritos, elementos, elementais e deuses não se manifestam somente de forma visual. É necessário estar com a atenção aguçada, como um animal caçando ou sendo caçado.
Essa forma de celebrar, de cultuar me foi muito útil por muito tempo. Era uma maneira que eu havia encontrado de manter o controle sobre a metodologia que eu havia criado e estabelecido. Mas com o passar do tempo, fui percebendo que tudo estava se tornando mecânico demais, eventualmente uma mera teatralização sazonal para cumprir um calendário que eu havia determinado que iria seguir. Havia perdido o sentido real, havia se esvaziado da sua essência. Talvez o mais difícil tenha sido perceber essa perda de sentido, aceitar que aquilo havia se esvaído e que eu havia falhado na minha proposta de me conectar com o que eu considero sagrado.
O meu primeiro movimento para me distanciar daquela forma que eu havia praticado por anos foi o silêncio. Passaram-se meses em que eu deixei meus rituais de lado para somente pensar neles, pensar no que eu havia feito no passado, no que eu deveria fazer e como eu faria dali para frente. As vezes me senti culpado por não fazer nada, as vezes senti falta e as vezes me senti livre. Quando eu me sentia livre, me sentia culpado novamente, pois eu acreditava que estava me distanciando dos deuses. Mais um engano. Me sentir livre estava me aproximando do comportamento selvagem do sagrado que eu acredito e cultuo. A culpa que eu sentia não havia relação alguma com os os deuses, mas sim com o desprendimento que eu estava praticando com a minha fé domesticada e acorrentada por métodos, pré-determinações e opiniões alheias. Eu precisava me ouvir mais e fazer isso é muito mais difícil do que pensamos, pois as nossas mentes são alimentadas a cada instante com a opinião, com as impressões e pelos estudos dos outros. Como separar a voz do outro e a minha voz interna dentro da cabeça?
O conhecimento não surge do nada, não é uma geração espontânea a mística. Ele sempre parte de uma experiência para uma reflexão posterior. Mesmo quando lemos um livro, por exemplo, a experiência de outro nos traz ideias, mas nós não passamos a pensar exatamente como o escritor, pois inferimos sobre aquele conhecimento baseado na nossa experiência de vida e nossa base de informações adquiridas com o tempo.
Precisamos entender a voz do outro através de muito estudo, muitos livros, cursos, trocas, observações e a partir daí começar a diferenciar o que a nossa mente transformou em algo “apropriado”, o que realmente absorvermos, experimentamos na prática, digerimos de informações, transformamos em conhecimento pessoal. Assim entenderemos o que é do outro e o que é nosso, aprendido com estudos e práticas.
Comecei então a dar ouvido ao que me era soprado por inspiração. Os rituais começaram a ser muito mais experimentais, mais sensoriais e fluidos. A importância deixou de ser nos movimentos, na forma de andar, nas palavras cheias de pompas e circunstâncias e passou a ser muito mais na percepção do período e na percepção de quem estaria ali presente comigo, seja em matéria ou em energia. Muita coisa mudou a partir daí. Senti despertar algo muito mais denso, quase material que me chamava a manifestar minha sacralidade de maneira mais natural e menos ensaiada. Eu brinco que a minha bruxaria deixou de ser de butique e passou a ser de palha, mais pé no barro, eventualmente até mais “agressiva” e isso me deixou mais livre. Aquela bruxaria que em algum momento era impecavelmente limpa foi se sujando conforme minha prática evoluiu, foi me dando a tranquilidade de conversar com os deuses e espíritos como quem comunga com amigos verdadeiros.
André Correia. Psicólogo atuante em clínica desde 2007, adepto da bruxaria eclética, construtor de tambores ritualísticos. Participa dos projetos Conexão Pagã e Music, Magic and Folklore. Coordenador do Círculo de Kildare e autor da obra musical Tambores Sagrados.
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