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A imagem contemporânea do diabo como um ser pessoal que lidera uma legião de demônios – seres também pessoais, de caráter maléfico e destrutivo – e que trabalha ativamente na sociedade e em algumas pessoas tem origem no dualismo persa. Contudo, foi durante o período medieval que tal imagem se cristalizou no inconsciente coletivo do Ocidente, como bem demonstra Jean Delumeau em seu estudo sobre a história do medo no Ocidente [1] . Isso se deu gradativamente e atingiu seu auge durante as diversas crises que assolaram a Europa após o ano de 1300. As pestes que dizimavam multidões, a vitória dos muçulmanos sobre tropas cristãs nas regiões do mar adriático e a posterior perda de Constantinopla fizeram com que a Europa mergulhasse no que Delumeau chamou “choque psicológico coletivo”. Diversos teólogos sentiram a ameaça da cristandade sitiada e passaram a procurar explicações teológicas para a crise. Desde então, o diabo – que antes se pensava derrotado definitivamente por Cristo – começou a ganhar mais destaque. Ao seu poder eram atribuídas todas aquelas ameaças. Delumeau mostra como o medo passou a ser um sentimento onipresente na cristandade. Nesse clima de insegurança coletiva aumentou a desconfiança para com tudo o que fosse diferente, exógeno e que não se enquadrasse ou não pudesse ser explicado satisfatoriamente pelos quadros conceituais da teologia da época. Nesse período desenvolveu-se em grau extremo a satanização de muçulmanos, judeus e mulheres.
Naturalmente, a figura do diabo já existia, mas diante da superioridade religiosa do cristianismo, não incomodava muito. Era uma entidade vencida, derrotada ou “amarrada” conforme a linguagem do Apocalipse. Mas as sucessivas crises medievais cooperaram na reabilitação de sua importância funcional e na crença de que ele estava livre e agindo através de várias artimanhas no mundo a fim de desestabilizar a sociedade. Todos conhecemos, ao menos em parte, as diversas histórias da inquisição, torturas, fogueiras acesas e dos mecanismos pelos quais se interiorizava a crença no diabo.
O Iluminismo, de certo modo, ofuscou um pouco a figura do diabo. A fé no progresso e nas possibilidades da razão contribuiu para qualificar o período medieval como “Idade das Trevas” e algumas de suas crenças como superstições. Apesar disso, a figura do diabo ainda permanecia viva em alguns setores religiosos e desempenhando importante papel como causa explicativa das misérias e vícios, particularmente em situações de anomia como a que caracterizou a época de Wesley e do primeiro grande avivamento das igrejas evangélicas norte-americanas através das pregações de Jonathan Edwards. No mundo secular, porém, até boa parte do século vinte o diabo não foi muito invocado para explicar a origem de problemas sociais ou pessoais. Foi após a segunda guerra mundial, com a crise que a sucedeu, principalmente a guerra fria, que a imagem do diabo começa a recuperar seu prestígio no Ocidente. Não foram poucos os pregadores evangélicos norte-americanos que identificaram no comunismo soviético e chinês, a configuração social do poder maligno.
O diabo, em todo caso, sempre foi considerado como o princípio de contestação da ordem, de desarticulação de uma sociedade, de desequilíbrio ou de degradação moral da mesma. A ele foram atribuídos os vícios – alcoolismo, jogos de azar, prazeres do corpo, atividade sexual extra-conjugal, etc. O diabo é a personificação de tudo o que representa a oposição a um padrão tido como divino. A ele estão associadas as imagem de rebeldia, irreverência, ironia, falsidade, dissimulação, etc. Enfim, o diabo cumpre ainda a excelente função de bode-expiatório da sociedade: ele carrega nossos impulsos e é a causa final de nossos desequilíbrios.
Não é de espantar que durante o contexto de pós-guerra e guerra fria anos 50 e 60, quando alguns setores jovens do primeiro mundo começam a questionar antigos valores morais e religiosos através do rock and roll, os grupos mais conservadores não hesitaram em qualificar como de inspiração demoníaca tais atos de rebeldia juvenil. O novo gênero musical serviu como luva para os questionamentos de muitos jovens desestruturados socialmente e que encontraram nas guitarras elétricas e baterias suas armas de contestação a um sistema rígido que não oferecia muitas oportunidades de sucesso senão o enquadramento e a submissão à lógica do sistema. E tal como acontecia na Idade Média quando após várias sessões de tortura física, psíquica e religiosa, algumas mulheres e homens “confessavam” ter feito pactos com o ser sinistro, alguns grupos aceitaram a provocação e incorporaram o substantivo “diabo” como fonte de inspiração para toda sua insatisfação social. Desse modo, alguns grupos de rock contestadores da moral burguesa passaram a praticar deliberadamene atos simbólicos de provocação à sociedade e ficaram muito famosos, tais como o Kiss, que se apresentava com o rosto pintado e simulava masturbações no palco e o extinto Black Sabbath, de onde saiu o cantor Ozzi Osborne, conhecido por suas agressivas performances nos shows – morder morcegos e ratos, cuspir em Bíblias, urinar em crucifixos, etc.
Por motivos como esses, alguns grupos religiosos ainda associam o rock à demonologia. Contudo, se é que de fato a arte espelha os subterrâneos espirituais de uma sociedade e antecipa possibilidades de superação de suas contradições, temos que estar atentos aos novos discursos sobre o diabo manifestados por alguns artistas. Qualquer teologia atenta à cultura deve encarar esse imaginário e decidir como lidar com ele. Mais ainda se, além de atenta à cultura, o teólogo fizer uma opção consciente por uma teologia de orientação crítica, contestadora e profética. Tal teologia inevitavelmente será qualificada também como rebelde e questionadora – uma ameaça. Nossa proposta, portanto, é apenas provocativa: trazer à luz alguns discursos sobre o diabo presentes na música popular brasileira, com a intenção de estimular os interessados em demonologia a repensar o lugar dessa figura no discurso teológico.
1. O diabo como símbolo de contestação da sociedade.
O rock and roll sempre esteve associado à rebeldia. O moralismo puritano norte-americano reagiu horrorizado à figura do jovem Elvis Presley empunhando uma guitarra elétrica e rebolando as cadeiras num gingado com nítidas referências ao ato sexual. Jânio Quadros em sua passagem relâmpago pelo governo brasileiro chegou mesmo a proibir a vinda de Elvis Presley ao Brasil sob a alegação de que ele iria corromper nossa juventude. À medida que os anos foram passando, Elvis Presley ficou mais comportado, mas o movimento por ele iniciado já em nada devia àquele gordo e simpático senhor. Nos anos 60 vários grupos de rock surgiram reunindo jovens sem perspectivas no mercado de trabalho da época. Muitos deles vinham de famílias desestruturadas. Em geral haviam abandonado os estudos. Outros, como Roger Waters, líder do Pink Floyd, perderam os pais durante a segunda guerra. Havia também a guerra fria que pairava como um fantasma impossível de ser exorcizado.
No Brasil, o rock chegou tardiamente e já devidamente disciplinado, como um animal selvagem domesticado. Inicialmente os adolescentes burgueses se contentavam em manifestar seus anseios por independência em bem-comportados bailes onde dançavam sob olhares vigilantes ao som de ingênuas versões nada contestadoras como “Estúpido Cupido” ou outras que falavam de sapatinhos cor-de-rosa. Também não podemos considerar o movimento da jovem-guarda como o nascedouro do rock brasileiro. A jovem-guarda ainda era excessivamente bem comportada para ser considerada “rock nacional”. A turma da jovem-guarda ainda tinha muitas marcas de adolescência e busca de identidade. Era uma pseudo-rebeldia tolerada como passageira. Alguns até procuravam passar a imagem de rebeldes e contestadores, mas tudo ainda dentro de um quadro extremamente limitado, a ponto de em nossos dias soar como ingênuo chamar de rebeldes-sem-causa os jovens da época que se deleitavam em cantar “Meu carro é vermelho, não uso espelho pra me pentear…cabelo na testa eu sou o dono da festa”. Tratava-se muito mais de uma crise de adolescência – jovens que praticavam pequenas e risíveis contravenções como turbinar motores, cantar pneus, participar de rachas em vias públicas e namorar escondido. O automóvel era ícone de independência financeira e símbolo maior de maturidade. Com o automóvel era possível entrar na rua Augusta a 120 por hora com três pneus carecas e sem usar a buzina para ser admirado pelas garotas. O automóvel-ícone era decorado de forma a transgredir os bem-comportados automóveis burgueses – “meu carro não tem luz, não tem farol, não tem buzina, tem três carburadores com motor envenenado, só pára na subida quando falta gasolina, só passa se tiver sinal fechado”. A pretensa “rebeldia” da jovem-guarda era muito mais estimulada pela indústria cultural. Não se tratava propriamente de contestação, mas de reclamações e reivindicações que não chegavam a afetar os padrões aceitos – ao contrário, eram até bem recebidas. Seria uma grande afronta ao rock and roll considerar o risonho Roberto Carlos, a “ternurinha” Wanderléia ou a pudica Celly Campello como patronos e matronas do rock nacional.
Mas na década de 70 um baiano estudante de filosofia e interessado em esoterismo acaba por tornar-se de fato, o representante mais original do incipiente rock nacional. Trata-se de Raul Seixas. Pouco antes, um esboço de rock nacional havia sido tentado pelos integrantes dos Mutantes. Mas apesar de toda qualidade do grupo, não havia muita originalidade no som ou nas letras dos Mutantes, se comparada às primeiras produções de Raul Seixas. Sua primeira aparição foi no Festival da Record em 1972 com uma proposta inusitada, tipicamente antropofágica: unir o rock americano ao baião de Luís Gonzaga. Pela primeira vez ouviu-se a mistura de guitarra elétrica com triângulo e sanfona harmonicamente numa mesma canção. Posteriormente, em seu primeiro LP, Raul Seixas insistiria no experimentalismo com a canção “Mosca na sopa”, cujo refrão é um rock pesado e as estrofes são cantadas em ritmos de candomblé acompanhadas por berimbau e atabaques. A música servia como uma apresentação do artista: Raul Seixas se autodenominava a mosca que pousara na sopa insossa da MPB. Sua fotografia na capa do LP também era sugestiva: o esquelético cantor, descabelado, barbudo e de dorso nu abria os braços como se estivesse crucificado ou talvez tentando imitar um inseto em vôo. Desde então, a música de Raul Seixas passou a chamar a atenção devido às suas constantes referências religiosas (quem não se lembra do mega-sucesso Gîtã, recheada de citações do Bhagavad-Gîtã, livro sagrado do hinduísmo) e à sutil crítica social ao padrão de vida burguês proposto pelo milagre brasileiro, tão bem dissecados na clássica “Ouro de tolo” ?
Durante a década de setenta Raul Seixas gravou discos excelentes que ainda hoje fazem sucesso em jovens que sequer haviam nascido na época. Aos poucos foram crescendo também as sugestões provenientes de grupos religiosos de que o cantor havia feito pactos com o diabo. Algumas publicações religiosas da época alertavam os jovens a respeito do perigo em que se constituía a figura do maluco-beleza. Não se contentavam em mencionar seu envolvimento com drogas ou o fracasso de seus sucessivos casamentos, mas também insistiam em qualificá-lo como um agente do diabo, um artista endemoninhado. Uma publicação da época, por exemplo, afirmava que o Espírito Santo revelara que a canção “Eu nasci há dez mil anos atrás” manifestava quem era seu verdadeiro compositor: o próprio diabo que confessava ter sido criado por Deus antes da fundação do mundo e que estivera por trás dos principais acontecimentos da história da humanidade descritos na canção, como a crucificação de Jesus e a segunda guerra mundial. No LP de 1978, Raul Seixas gravou outra composição que alimentou ainda mais esse preconceito religioso contra ele: a canção chamava-se “Judas” e nela o compositor reclamava ter Judas desempenhado um importante papel no plano da salvação e que, portanto, sua memória deveria ser reabilitada. Num trecho, ele diz: “Se eu não o tivesse traído, morreria cercado de luz, e o mundo hoje então não teria a marca sagrada da cruz”. Os grupos religiosos deram-se por satisfeitos. Era a prova que precisavam. Só mesmo um homem possuído pelo demônio para propor a reabilitação teológica de Judas. Anos mais tarde, numa de suas últimas entrevistas pouco antes de morrer, Raul Seixas contava essas histórias e declarava ter, de fato, se aproveitado da paranóia religiosa. Ele conta, por exemplo, que ás vésperas do lançamento de seu último LP, o título ainda não havia sido escolhido. Nenhum dos títulos sugeridos parecia ser adequado. Algumas semanas antes da decisão final, enquanto fazia um show, um grupo de religiosos distribuía aos jovens que compravam ingresso um folheto qualificando o local do show como “panela do diabo”. Um dos folhetos chegou às mãos de Raul Seixas e ele imediatamente percebeu que ali estava o título do novo trabalho: “A panela do diabo”.
Uma das canções mais conhecidas de Raul Seixas trata exatamente dessa ligação íntima entre o rock e a figura do diabo. Aqui a figura do diabo aparece como símbolo de rebeldia e contestação. Se a sociedade queria enquadrar os jovens no modelo econômico do milagre brasileiro, havia quem se recusasse a ser enquadrado. Tal contestação, porém, ainda se dá apenas no nível da moral privada, não chegando a tocar mais profundamente nas causas sociais. Eis a letra:
Rock do diabo (Raul Seixas-Paulo Coelho)
Me dê um porco vivo pra eu encher a minha pança
Dez quilos de alcatra com muqueca de esperança
O diabo, o diabo usa capote
É rock, é fox, trote
O diabo – foi ele mesmo quem me deu os toques
Enquanto Freud explica as coisas o diabo fica dando os toques
Existem dois diabos só que um parou na pista
Um deles é o do toque, o outro é aquele do exorcista
Mamãe disse a Zequinha, nunca pule aquele muro
Zequinha respondeu: mamãe, aqui tá mais escuro
O diabo é o pai do rock (bis)
Enquanto Freud explica o diabo dá os toque
Essa canção de Raul Seixas é exemplo bem claro das associações entre a figura do diabo e a rebeldia preconizada pelo rock. O próprio ritmo é rápido, agressivo. O intérprete preocupa-se mais em gritar a letra que propriamente em entoá-la. É uma canção de estilo expressionista, na maneira como traz à tona contradições internas que pulsam no compositor. O rock contesta a sociedade, o sistema e a hipocrisia da burguesia, enquanto outras canções a legitimam. Não nos esqueçamos que nessa época fizeram relativo sucesso a dupla Dom e Ravel, entoando ufanisticamente “Este é um país que vai pra frente”. As lideranças eclesiásticas em geral não se preocupavam em questionar o sistema capitalista e temiam confrontar-se com o regime militar. Nesse sentido, “Deus” acaba sendo inadvertidamente associado a um princípio de manutenção do sistema e da autoridade paterna inquestionável. Mas o rock com sua rebeldia própria questionava tudo isso. A associação é simplista, mas funcionava bem: Deus é o princípio da legitimidade, da ordem, da manutenção do poder estabelecido, das explicações fáceis. Mas o diabo é o pai da contestação. Contesta os bons costumes, a etiqueta e o vocabulário, pedindo “um porco vivo pra encher a pança”, fazendo apologia de um dos pecados capitais – a glutonaria. A segunda estrofe faz referências ao famoso filme “O exorcista”, que popularizou ainda mais a figura do diabo como um ser que domina a personalidade de certos indivíduos, mas que pode ser exorcizado pelos poderes da igreja. A canção, porém, faz questão de frisar que o diabo que confere ao compositor a possibilidade de desmascarar a realidade não é esse. Esse é o diabo “do exorcista”, mas o outro, o que liberta a consciência, é o diabo “do toque”. Na terceira estrofe contesta a sabedoria dos mais velhos. A mãe recomenda que o filho não pule o muro – por medo, excessiva preocupação ou desejo de manter domínio sobre os mais jovens? Mas Zequinha responde: “mamãe, aqui está mais escuro”. O ambiente familiar convencional é visto como trevas. A libertação está exatamente em ousar transgredir os conselhos e pular o muro, abrindo-se a novas experiências. O riff conclusivo exalta essa figura do diabo como o pai do rock, o ritmo jovem por excelência e finaliza questionando as explicações freudianas que aparentemente não são suficientes para tranqüilizar o compositor. “Enquanto Freud explica, o diabo dá os toque”.
2. O diabo como parceiro de Deus
Busco o segundo exemplo do aparecimento do diabo na música em compositores mais recentes. Observamos com certo espanto ter havido uma determinada “evolução” no conceito do diabo na MPB. O diabo já não é apenas figura de contestação, mas princípio presente na realidade humana, que não deve ser exorcizado, mas incorporado como elemento importante na constituição da identidade, a despeito da tensão que causa. É um ato de muita coragem aceitar que o princípio positivo não deve anular o negativo, mas ambos podem conviver mutuamente no cotidiano. A canção gravada pelo grupo Titãs em 1989 mostra muito bem isso:
Deus e o diabo (Sérgio Brito, Paulo Miklos, Nando Reis)
Deus está debaixo da mesa
O diabo está atrás do armário
Deus está atrás da porta
O diabo está no meio da sala
O que há de errado com meu coração?
Deus está lendo o jornal
O diabo está dançando
O diabo está fazendo o jantar
Deus está escrevendo uma carta
O que há de errado com meu coração?
Deus está sonhando
O diabo está fazendo discurso
Deus está lavando os pratos
O diabo está tocando piano
Deus é o teto da casa
O diabo é a porta dos fundos
O diabo é o chão da cozinha
Deus é o vão da entrada
O que há de errado com meu coração?
O cenário é o ambiente familiar de uma casa onde convivem duas pessoas, aparentemente um casal. Porém, é impossível dizer quem é o elemento masculino ou o feminino no convívio, pois ambos dividem funções de manutenção e outras atividades relacionadas ao lazer familiar. O curioso é que apesar de tão diferentes, a convivência parece ser cordial. Nenhum tenta expulsar o outro, mas aceitam dividir o mesmo espaço e é exatamente isso que traz confusão ao compositor. Deus aparece debaixo da mesa ou atrás da porta, lendo um jornal ou escrevendo uma carta, enquanto o diabo esconde-se atrás do armário, aparece imponente no meio da sala, dança ou prepara o jantar. Em outra cena Deus sonha e lava os pratos, e se identifica com o teto da casa, enquanto o diabo faz discursos, toca piano e se identifica com a porta dos fundos. As imagens são confusas. Em nenhum momento aparecem cenas que poderiam ser qualificadas como maléficas. O que transparece é uma certa cumplicidade e complementaridade como se um personagem dependesse do outro para manter a casa arrumada e em funcionamento.
O cenário da casa não reflete apenas a confusão interior da juventude dos anos 80, mas é um retrato de toda revisão do conceito de vida proposto por diversos intelectuais e artistas nos anos noventa. Parece haver uma consciência clara de que a casa precisa ser constantemente cuidada para se evitar o caos e cada personagem tem um importante papel a desempenhar. Mal e bem se misturam num caleidoscópio de imagens, mas o sentido parece ser buscado exatamente nessa confusão toda. Contudo, a intuição de que a produção de sentido para o mundo – a organização do cotidiano – tem que de fato incorporar os elementos positivos e negativos, ainda é difícil de ser totalmente assimilada. Por isso sempre se repete o mesmo refrão: “o que há de errado com meu coração ?”
3. o diabo como o “cover” de Deus.
Outra interessante canção, já do final dos anos noventa, é “Heavy metal do Senhor”, composta por Zeca Baleiro. Aqui temos novamente a oposição Deus-diabo, em uma letra bastante “ortodoxa” teologicamente: Deus é o ser autêntico, o verdadeiro artista e criador. O diabo é apenas o “cover”, o que nada cria, mas tudo copia, distorce e engana. Na linguagem musical, “covers” são pessoas ou bandas que se especializam em tocar sucessos de outros artistas mais famosos. Geralmente, os “covers” vestem-se como os integrantes da banda a que se propõem copiar, tentam fazer uma voz semelhante, etc. o circuito underground de barzinhos e espaços alternativos está repleto de covers que se apresentam imitando grupos como Beatles, Pink Floyd, U2, Bom Jovi, etc. A letra de Baleiro diz:
O cara mais underground que eu conheço é o diabo
Que no inferno toca cover das canções celestiais
Com sua banda formada só por anjos decaídos
A platéia pega fogo quando rolam os festivais
Enquanto isso Deus brinca de gangorra no playground
Do céu com os anjos que já foram homens em pecado
De repente os santos falam: “toca, Deus, um som maneiro”
E Deus fala: “agüenta, vou rolar um som pesado”
A banda cover do diabo acho que já tá por fora
O mercado tá de olho é no som que Deus criou
Com trombetas distorcidas e harpas envenenadas
Mundo inteiro vai pirar com o heavy metal do Senhor
A letra acima não deixa nada a dever às demonologias construídas na história da teologia eclesiástica: o diabo aqui é apresentado como o simulacro, o imitador, a cópia, o falsificador, o cover que engana, aquele que nada cria (pois a criação é um atributo do artista, de Deus), mas que tenta imitar e reproduzir nos ambientes undergrounds (o inferno) aquilo que o Deus/artista cria. Em suma, essa canção jamais poderia ser acusada de herética, pois ela reafirma, numa outra linguagem, todos os pilares da demonologia tradicional, anunciando até mesmo uma escatológica epifania divina, quando “o mundo inteiro pirar” com as trombetas distorcidas e harpas envenenadas que animarão o show final de Deus,
4. O diabo como alter-ego de Deus
O último exemplo é do compositor Lobão, e talvez seja uma das mais enigmáticas e instigantes canções populares sobre o tema da relação entre Deus e o diabo:
O diabo é Deus de folga (Lobão)
Em todo milagre existe uma falta de percepção
Alguma coisa acontece que não dá pra explicar
Como aquilo foi acontecer
Todo milagre é esquisito
por alguma falta de imaginação
Só porque a gente se espanta
Com a realidade se amarrando em qualquer ficção
O diabo é Deus de folga, o diabo é Deus…
O diabo é Deus dando voltas
no imaginário de toda civilização
Dessa vez, a co-existência entre Deus e o diabo num mesmo ambiente, local ou personalidade, cantada pelos Titãs, evolui para a identificação plena de um com o outro. Mal e bem são dois lados da mesma moeda. Na própria transcendência existe uma ambigüidade essencial. Um evento extraordinário na natureza – um milagre, usando a linguagem religiosa – pode ser, ao mesmo tempo identificado como divino ou demníaco, dependendo do ponto de vista. Por exemplo, quando um graveto se incendeia sem qualquer estímulo externo, sempre há quem qualifique o fenômeno como “coisa do diabo”. Entretanto, no Antigo Testamento, Deus também se revelava em sarças que ardiam e não se consumiam e hoje não são poucos os grupos carismáticos evangélicos que procuram bosques escuros para orar à noite e relatam visões de gravetos e arbustos que se incendeiam milagrosamente. O artista reconhece que todo milagre envolve um mistério sagrado – o ponto de vista do observador é que vai qualificar a natureza do sagrado – se positivo ou negativo, divino ou demoníaco. Deus e o diabo aparecem então como construções mentais, símbolos explicativos para o mesmo e único Sagrado Incondicional, ou o “Deus-acima-de-Deus” do qual Tillich fala em “A coragem de Ser”.
A primeira menção do demônico em Tillich se dá num artigo de 1923 sobre o Socialismo Religioso (Grundlinien des religiösen Sozialism). Entretanto, a articulação do conceito começa a se firmar realmente na Filosofia da Religião de 1925. Aí o demônico aparece em contraposição ao divino e ambos inseridos na esfera do Sagrado: “O demônico é o Sagrado precedido por um sinal ‘menos’: o anti-divino sagrado” [2] , o Sagrado negativo, destrutivo. Entretanto, ainda é Sagrado, uma vez que provêm do mesmo abismo de onde flui a graça.
A diferença, no entanto, é esta: a graça atravessa a forma reconhecendo-a, assumindo-a, ao mesmo tempo em que afirma a forma incondicional. O demoníaco possui todas as formas de expressão que subsistem no sagrado, mas as possui com a marca da oposição à forma incondicional e com uma intenção destrutiva” [3] .
A despeito das posteriores revisões e aprofundamentos que Tillich fez do conceito de demônico, ao meu ver sempre persistem elementos da mística de Boehme (o demônico participa do próprio Abismo incondicional), da ontologia de Schelling (as potências primordiais) e da fenomenologia de Rudolff Otto (na essência do Sagrado não há distinção entre divino e demoníaco). O que une essas três influências é a intuição de que o demônico não é um poder autônomo, independente do sagrado, mas participa de sua própria essência. Será muita ousadia ou inconseqüência dizer, a partir daí, tal como Lobão, que o diabo, de fato, é apenas “Deus de folga”, zombando da humanidade, “dando voltas no imaginário de toda civilização” ? Nunca é demais recordar que eventos trágicos da história de Israel como a ascensão de Ciro ao poder no cenário da política internacional foram atribuídos à vontade de Deus e ao seu plano salvífico. Deus de fato, cria tanto o bem como o mal, conforme disse o profeta. O bem, (“Deus”) e o mal (“o diabo”) se originam na mesma fonte. No texto de Jó, o ser humano representado pelo personagem Jó é vítima da tensão originária entre Deus, o princípio do bem e o diabo, o princípio do mal. No diálogo entre ambos, o bem-Deus permite que o mal-Satã provoque em Jó toda sorte de sofrimento possível à humanidade. Jó perde a família, os bens e a saúde. Se Satã é o causador imediato, o agente direto do sofrimento pela perda da segurança em nível material (os bens), pessoal (a saúde) e inter-pessoal (a família), em última análise, Deus também está envolvido nisso tudo, na medida em que permite a ação de Satã.
Conclusão
O ponto de chegada de toda essa provocação que nos é trazida pela MPB é a afirmação de que Satã nada mais é que a ira de Deus ou Deus em estado de juízo? Quando Deus julga, mostra sua face terrível e essa face é recebida pela consciência humana como demônica. Nesse sentido, a rebeldia do rock só é ameaça para os detentores do poder na sociedade. Para outros segmentos, ela é rebeldia também criativa, questionadora – coloca dúvidas nas certezas estabelecidas. A rebeldia do rock ou na época medieval a invasão islâmica e as práticas rituais das mulheres só ameaçam quem pretende manter a hegemonia do poder e negar qualquer contradição interna. Nesse caso, o que é qualificado como “diabo” tem uma função crítica que não pode deixar de ser valorizada pela teologia. O que é qualificado como “diabo” não será, no fundo, uma expressão abrupta de juízo, em sentido teológico e, portanto de origem divina? Estará certo o compositor Lobão, que sem conhecer a disciplina teológica (creio eu), chega a uma conclusão teológica altamente provocativa: O diabo é Deus de folga!!??
Desconfio que a demonologia ainda voltará a ser um tema bastante forte na teologia dos próximos anos, pois se Malinowsky estiver certo, é impossível afastar ou exorcizar definitivamente o diabo da vida religiosa devido à sua funcionalidade. Há em torno dessa figura associações milenares impregnadas no inconsciente coletivo. Naturalmente, ficam em aberto outras questões como a atribuição de uma personalidade autônoma ao diabo. Não se trata aqui de admitir que o diabo é um ser pessoal, mas de admitir que há em torno da figura, do personagem e da semântica da palavra “diabo” toda uma carga de símbolos que não podem ser desprezados no estudo da religião.
Talvez o que necessitemos seja descobrir uma linguagem nova que nos permita afirmar que Deus e o diabo ocupam o mesmo lugar na esfera do Sagrado. Cada qual com funções específicas contribuem para manter a casa arrumada, tal como na canção dos Titãs. Bem e mal coexistem na ambigüidade permanente da vida. O que importa, finalmente, é a estrutura onde ambos coabitam – o Sagrado Incondicional ou o “Deus-acima-de-Deus”. De acordo com a canção, “Deus é o teto da casa, o diabo é a porta dos fundos; o diabo é o chão da cozinha, Deus é o vão da entrada”. Mas nada se diz sobre a própria “casa”. Essa sim, é de natureza inefável e indizível.
Isso nos encaminharia novamente para uma visão apocatástica. Num nível mais teológico mais profundo, mal e bem devem se reconciliar na unidade última do Incondicional. Será esse o sentido da reconciliação final de todas as coisas ? É bom lembrar que mesmo na MPB encontramos esse anúncio, mais particularmente na última estrofe de “Trem das Sete” (Raul Seixas, novamente), que geralmente passa despercebida, em seu escatológico Amém final:
Ói, óia o céu, já não é o mesmo céu que você conheceu, não é mais
Vê, ói que céu, é um céu carregado e rajado, suspenso no ar
Vê, é o sinal, é o sinal das trombetas dos anjos e dos guardiões
Ói, lá vem Deus, deslizando no céu entre brumas de mil megatons
Ói, óia o mal, vem de braços e abraços com o bem num romance astral…
Amém!
Haverá algum sentido nisso tudo? Ainda é cedo para dizer, mas a MPB está aí a nos provocar enquanto teólogos a refletir melhor sobre a relação entre Deus e o diabo, pois esse tema tem várias implicações ontológicas e éticas. A meu ver, qualquer tentativa de exorcizar definitivamente o diabo da vida pode ser mais demoníaca do que se supõe, pois isso significaria eliminar precocemente nossas ambigüidades e nos iludir com a falsa promessa de uma vida perfeita, sadia e irrepreensível. No confuso emaranhado de nosso tempo e na “insegura certeza” provocada pelas reflexões acima, de que todo processo de vida apresenta a ambigüidade de elementos positivos e negativos, só nos resta terminar repetindo o refrão dos Titãs: O que há de errado com meu coração?
Carlos Eduardo Brandão Calvani é diretor do Centro de Estudos Anglicanos do Brasil
NOTAS
[1] DELUMEAU, Jean. História do medo no Ocidente. São Paulo, Companhia das Letras, 1993.
[2] TILLICH, Paul. Filosofia de la Religion. Buenos Aires, La Aurora, 1969, p. 74
[3] Idem, p. 74
Fonte: Revista Correlatio Nº 3
Carlos Eduardo Brandão Calvani
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