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Excerto de o Despertar dos Mágicos de Louis Pauwels e Jacques Bergier
Para decifrar certos manuscritos encontrados nas margens do mar Negro foi insuficiente a ciência dos melhores linguístas do Mundo. Instalou-se uma máquina, um calculador electrónico, no Vaticano, e deu-se-lhe a estudar um pavoroso garatujado, os restos de um pergaminho imemorial sobre todos os quais estavam inscritos em todos os sentidos pedaços de indecifráveis signos. Era necessário que a máquina fizesse um trabalho que centenas de cérebros, durante centenas de anos, não poderiam executar: comparar os traços, refazer todas as séries possíveis de traços semelhantes, escolher entre todas as possibilidades possíveis, extrair uma lei de similitude entre todos os termos de comparação imagináveis, depois, tendo esgotado a lista infinita das combinações, elaborar um alfabeto a partir da única similitude aceitável, recriar uma língua, restituir, traduzir. A máquina fixou o magma do seu olho verde, imóvel e frio, começou a estalar e a zumbir, inúmeras ondas rápidas percorreram o seu cérebro electrónico, e finalmente fez emergir desse resíduo uma mensagem, libertando a palavra do velho mundo submerso. Ela traduziu. Sobre esses pergaminhos poeirentos, restos de letras se reanimaram, se uniram, se refundiram, e do informe, desse cadáver do verbo saiu uma voz cheia de promessas. A máquina disse: “E nesse deserto traçaremos uma estrada em direcção ao vosso Deus”.
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É sabida a diferença entre a aritmética e as matemáticas. O pensamento matemático, desde Evariste Galois, descobrir um mundo que é estranho ao homem, que não corresponde à experiência humana, ao Universo tal como o conhece a consciência humana vulgar. A lógica que diz sim ou não é ali substituída por uma superlógica que funciona por sim e não. Esta superlógica não é do domínio da razão, mas da intuição. É neste sentido que se pode dizer que a intuição, quer dizer, uma faculdade “selvagem”, um poder “insólito” do espírito, “rege actualmente grandes cantões de matemáticos.”
Como funciona normalmente o cérebro? Funciona como máquina aritmética binária: sim, não, de acordo, não de acordo, verdadeiro, falso, gosto, não gosto, bom, mau. Como binário, o nosso cérebro é invencível. Grandes calculadores humanos conseguiram ultrapassar as máquinas electrónicas.
O que é uma máquina aritmética? É uma máquina que, com extraordinária rapidez, classifica, aceita e recusa, arruma os diversos factores por séries. No fim de contas, é uma máquina que põe ordem no Universo. Imita o funcionamento do nosso cérebro. O homem classifica. Esta é a sua honra. Todas as ciências são baseadas num esforço de classificação.
Sim, mas existem, também, actualmente, máquinas electrónicas que não funcionam apenas aritmeticamente como também analogicamente. Exemplo: se se deseja estudar todas as condições de resistência da barragem que se constrói, elabora-se um plano da barragem. Efectuaram-se todas as observações possíveis a respeito desse plano. Fornecem à máquina o conjunto dessas observações. Esta coordena, compara a uma velocidade inumana, estabelece todas as conexões possíveis entre essas mil observações de pormenor, e declara: “Se não se reforçar o calço do terceiro pilar desmoronar-se-á em 1984”.
A máquina analógica fixou, com o seu olho imóvel e infalível, o conjunto das reacções da barragem, depois previu todos os aspectos da existência dessa barragem, assimilou essa existência e deduziu-lhe todas as leis. Ela viu o presente na sua totalidade, estabelecendo a uma velocidade que contrai o tempo todas as relações possíveis entre todos os factores particulares, e pôde ver, simultaneamente, o futuro. No fim de contas, passou do saber ao conhecimento.
Ora pensamos que o cérebro pode, também ele, em certos casos, funcionar como uma máquina analógica. Quer dizer que ele deve poder:
1.o – Reunir todas as observações possíveis a respeito de um caso;
2.o – Estabelecer a lista das revelações constantes entre os múltiplos aspectos do caso;
3.o – Transformar-se, por assim dizer, no próprio caso, assimilar-lhe a essência e descobrir a totalidade do seu destino.
Tudo isto, evidentemente, a uma velocidade electrónica, realizando-se dezenas de milhares de conexões numa espécie de tempo atomizado. Esta série fabulosa de operações precisas, matemáticas, é o que por vezes chamamos uma iluminação, quando o mecanismo, por acaso, se põe em marcha.
Se o cérebro pode funcionar como uma máquina analógica, pode, igualmente, trabalhar, não sobre a própria coisa, mas sobre uma maqueta da coisa. Não sobre o próprio Deus, mas sobre um ídolo. Não sobre a eternidade, mas sobre uma hora. Não sobre a Terra, mas sobre um grão de areia. Quer dizer que deve poder, estabelecendo-se as conexões a uma velocidade que ultrapassa o raciocínio binário mais rápido, sobre uma imagem representando o papel de maqueta, ver, como dizia Blake, “o Universo num grão de areia e a eternidade numa hora”.
Se isto se passasse assim, se a velocidade da classificação, de comparação, de dedução estivesse formidavelmente acelerada, se nossa inteligência se encontrasse, em certos casos, como a partícula no ciclotrão, teríamos a explicação de toda a magia. A partir da observação de uma estrela a olho nu, um sacerdote maia teria podido reorganizar no seu cérebro o conjunto do sistema solar e descobrir Urano e Plutão sem telescópio (assim como o provam, parece, alguns baixos-relevos). A partir de um fenómeno no crisol, o alquimista poderia conseguir uma representação exacta do átomo mais complexo e descobrir o segredo da matéria. Ter-se-ia a explicação da fórmula segundo a qual: “O que está em cima é semelhante ao que está em baixo”. No domínio mais grosseiro da magia imitativa, compreender-se-ia de que forma o mágico pré-histórico, contemplando na sua gruta a imagem do bisão cerimonial, conseguia apreender o conjunto das leis do mundo bisão e anunciar à tribo a data, o local e as épocas favoráveis para a próxima caçada.
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Os técnicos da cibernética construíram máquinas electrónicas que funcionam primeiro aritmeticamente, depois analogicamente. Estas máquinas servem inclusivamente para o deciframento das linguagens cifradas. Mas os sábios são assim: eles recusam-se a imaginar que O que o homem criou possa também sê-lo. Estranha humildade!
Admitimos esta hipótese: o homem possui uma aparelhagem pelo menos igual, senão superior, a qualquer aparelhagem tecnicamente realizável, e destinada a atingir o resultado que se propõe qualquer técnica, a saber a compreensão e o manejamento das forças universais. Por que motivo não possuiria ele uma espécie de máquina electrónica analógica nas profundezas do seu cérebro? Sabemos actualmente que nove décimos do cérebro humano não são utilizados na vida consciente normal e o doutor Warren Penfield demonstrou a existência, em nós, desse vasto domínio silencioso. E se esse domínio silencioso fosse uma imensa sala de máquinas prestes a porem-se em movimento, à espera de uma ordem? Se assim fosse, a magia teria razão.
Temos correios: as secreções das hormonas ramificam-se em mil locais do nosso corpo para provocar excitações.
Temos um telefone: o nosso sistema nervoso; beliscam-me, eu grito; tenho vergonha, coro, etc.
Porque não teríamos também um rádio? O cérebro emite talvez ondas que se propagam a grande velocidade e que, como as ondas hiperfrequências que penetram nos condutores ocos, circulam no interior dos cilindros de mieline que são os nervos. Neste caso possuiríamos um sistema de comunicações e conexões desconhecido. O nosso cérebro emite talvez sem cessar tais ondas, mas os receptores não são utilizados, ou então não começam a funcionar senão em raras ocasiões, como esses postos de T.S.F. mal sintonizados que um choque torna por instantes sonoros.
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Eu tinha sete anos. Encontrava-me na cozinha, ao lado de minha mãe, que lavava a loiça. A minha mãe pegou num esfregão
para retirar a gordura dos pratos, e pensou, nesse mesmo momento, que a sua amiga Raymonde chamava esse objecto “uma relavote” (de lavar, limpar). Eu estava a tagarelar, mas, nesse próprio segundo parei e disse: “a Raymonde chama a isto uma relavote.” Não me recordaria deste incidente se minha mãe, vivamente impressionada, não mo tivesse várias vezes recordado, como se tivesse adivinhado um grande mistério e sentido, num bafo de alegria, que eu era ela, e que recebera uma prova mais do que humana do meu amor. Mais tarde, quando eu a fazia sofrer, nos momentos de trégua ela evocava esses segundos do “encontro”, como que para se convencer de que qualquer coisa de mais profundo que o seu sangue passara dela para mim.
Sei bem tudo o que se deve pensar das coincidências, e mesmo dessas coincidências privilegiadas que Jung chama “significativas”, mas parece-me, por ter vivido momentos análogos com um amigo muito caro, com uma mulher amada apaixonadamente, que é necessário ultrapassar a noção de coincidência e ousar atingir uma interpretação mágica. Basta para isso chegar a um acordo sobre a palavra “mágico”.
Que se passou nessa cozinha, numa tarde dos meus sete anos? Creio que involuntariamente devido a um choque imperceptível, um ínfimo estremecimento comparável à onda ligeira que faz cair um objecto muito tempo em equilíbrio, um ínfimo estremecimento provocado por puro acaso, uma máquina, em mim próprio, tornada infinitamente sensível por milhares de impulsos de amor, desse simples, violento, exclusivo amor de infância, se pôs bruscamente a funcionar. Essa máquina do meu cérebro, na fábrica cibernética da Bela Adormecida, contemplou minha mãe. Viu-a, recolheu e classificou todas as facetas do seu pensamento, do seu coração, dos seus humores, das suas sensações; transformou-se na minha mãe; teve conhecimento da sua essência e do seu destino até esse instante. Fixou, arrumou, a uma velocidade maior que a luz, todas as associações de sentimentos e de ideias que tinham desfilado em minha mãe desde o seu nascimento, e chegou à última associação, a do esfregão, de Raymonde e da relavote. E então eu exprimi o resultado do trabalho dessa máquina, que fora executado tão loucamente depressa que o seu próprio fruto me atravessava sem deixar vestígios, como os raios cósmicos nos atravessam, sem provocar qualquer sensação. Eu disse: “Raymonde chama a isto uma relavote”. Depois a máquina parou, ou então deixei de ser receptivo depois de o ter sido durante um milionésimo de segundo, prossegui a frase iniciada antes. Antes que o tempo parasse, ou melhor, se acelerasse em todos os sentidos, passado, presente, futuro; é a mesma coisa.
Eu viria a experimentar, noutras circunstâncias, “coincidências” da mesma natureza. Creio que é possível interpretá-las dessa forma. Pode ser que a máquina funcione constantemente, mas que nós só possamos ser receptivos ocasionalmente. Para mais, essa receptividade só pode ser raríssima. Talvez seja nula em certas pessoas. Desta forma há pessoas “que têm sorte”, e outras que a não tem. Os felizardos seriam aqueles que, por vezes, recebem uma mensagem da máquina: ela analisou todos os elementos da conjuntura, classificou, escolheu, comparou todos os efeitos e todas as causas possíveis e, descobrindo desta forma o melhor caminho do destino, pronunciou o oráculo, que foi recolhido sem que, nem ao de leve, a consciência suspeitasse desse trabalho formidável. Esses são “queridos dos deuses”, de facto. Eles são de tempos a tempos ligados para a sua fábrica. Para só falar de mim, tenho aquilo a que se chama “sorte”. Tudo me leva a crer que os fenómenos que presidem a esta sorte são da mesma espécie que os fenómenos que presidem à história da “relavote”.
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E assim nos começamos a aperceber de que a concepção mágica das relações do homem com outrem, com as coisas, com o tempo – que essa concepção não é completamente estranha a uma reflexão livre e viva sobre a técnica e a ciência modernas. É a modernidade que nos permite acreditar no mágico. São as máquinas electrónicas que nos fazem tomar a sério o feiticeiro pré-histórico e o sacerdote maia. Se se estabelecerem conexões ultra-rápidas no domínio silencioso do cérebro humano e se, em certas circunstâncias, o resultado desse trabalho é captado pela consciência, determinadas práticas dessa magia imitativa, determinadas revelações proféticas, determinadas iluminações poéticas ou místicas, determinadas divinações, que levamos à conta do delírio ou acaso, serão de considerar como aquisições reais do espírito em estado de vigília.
Aliás, há vários anos que sabemos que a natureza não é razoável. Ela não se adapta à forma vulgar do funcionamento da inteligência. Para a parte do nosso cérebro normalmente utilizável, qualquer raciocínio é binário. Isto é negro ou branco. É sim ou não. É contínuo ou descontínuo. A nossa máquina de compreender é aritmética. Classifica e compara. Todo o Discurso do método se baseia nisso. Toda a filosofia chinesa do Ying e do Yang também (e o Livro das mudanças, único livro de oráculos do qual a antiguidade nos transmitiu as leis, é composto por figuras gráficas: três linhas contínuas, três descontínuas em todas as ordens possíveis). Ora, como o dizia Einstein no final da sua vida: “Pergunto a mim próprio se a natureza joga sempre o mesmo jogo”. De facto, dá a impressão que a natureza escapa à máquina binária que é o nosso cérebro no seu estado de marcha normal. Desde Louis de Broglie fomos obrigados a admitir que a luz é simultaneamente contínua e quebrada. Mas nenhum cérebro humano conseguiu a representação de tal fenómeno, a compreensão a partir do interior, um conhecimento real. Admite-se. Sabe-se. Mas não se conhece. Imagine-se agora que, sobre um modelo da luz (toda a literatura e iconografia religiosas abundam em evocações da luz), um cérebro passa do estado aritmético ao estado analógico, no relâmpago do êxtase. Transforma-se na luz. Ele vive o incompreensível fenómeno. Nasce com ele. Conhece-o. Ele chega onde a sublime inteligência de Broglie não consegue chegar. Depois volta a cair, o contacto com as máquinas superiores é cortado, essas máquinas que funcionam na imensa galeria secreta do cérebro humano. A sua memória apenas lhe restitui os restos do conhecimento que acaba de adquirir. E a linguagem é impotente até para traduzir esses restos. Talvez certos místicos tenham conhecido desta forma os fenómenos da natureza que a nossa inteligência moderna conseguiu descobrir e admitir, mas não logrou integrar.
“E, da mesma forma que eu, o escriba perguntava Como, ou que coisa ela via, ou se via coisa corpórea. Ela respondia assim: eu via uma plenitude, uma claridade que me enchia de tal forma que não sei explicá-la ou dar qualquer similitude…” Eis uma passagem daquilo que Ângela de Foligno ditou ao seu confessor, passagem essa absolutamente significativa.
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O calculador electrónico, sobre uma maqueta matemática de barragem ou de avião, funciona analogicamente. Em certa medida transforma-se nessa barragem ou nesse avião e dá a conhecer a totalidade dos aspectos da sua existência. Se o cérebro pode agir da mesma forma, começamos a compreender por que motivo o feiticeiro elabora uma estrutura invocando o inimigo que quer atingir ou desenha o bisão de que pretende descobrir o rasto. Espera diante desses esboços a passagem da sua inteligência do estado binário para o estado analógico, a passagem da sua consciência do estado ordinário para o estado de vigília superior. Ele aguarda que a máquina comece a trabalhar analogicamente, que se produzam, no domínio silencioso do seu cérebro, conexões ultra-rápidas que lhe revelarão a realidade total da coisa representada. Ele espera, mas não passivamente. Que faz então? Escolheu a hora e o local em função de ensinamentos antigos, de tradições que talvez sejam o resultado de uma série de experiências. Tal momento de tal noite, por exemplo, é mais favorável que outro tal momento de tal outra noite, talvez devido ao estado do céu, da radiação cósmica, da disposição dos campos magnéticos, etc. Ele coloca-se numa determinada posição bem precisa. Faz certos gestos, uma dança especial, pronuncia certas palavras, emite sons, modula um sopro, etc. Ainda se não suspeitou que poderia tratar-se de técnicas (embrionárias, hesitantes) destinadas a provocar o estremecimento das máquinas ultra-rápidas contidas na parte adormecida do nosso cérebro. Os rituais talvez não sejam mais do que conjuntos complexos de disposições rítmicas susceptíveis de provocar uma actividade das funções superiores da inteligência. Uma espécie de voltas de manivela, mais ou menos eficazes. Tudo leva a crer que o funcionamento dessas funções superiores, desses cérebros electrónicos analógicos, exigem ramificações mil vezes mais complicadas subtis que aquelas necessárias para a passagem do sono à lucidez. [1]
Depois dos trabalhos de Von Frisch, sabe-se que as abelhas têm uma linguagem: desenham no espaço figuras matemáticas infinitamente complicadas, durante o voo, e comunicam desta forma entre si as informações necessárias à vida da colmeia. Tudo leva a crer que o homem, para estabelecer comunicação com os seus poderes mais elevados, deve pôr em jogo uma série de impulsos pelo menos tão complexos, tão ténues e tão estranhos àquilo que habitualmente determina os seus actos intelectuais.
As rezas e os rituais perante os ídolos, perante as figuras simbólicas das religiões, seriam portanto tentativas para captar e orientar energias subtis (magnéticas, cósmicas, rítmicas, etc), para provocar o movimento da inteligência analógica que permitiria ao homem conhecer a divindade representada.
Se assim é, se existem técnicas para obter do cérebro um rendimento sem medida comum com os resultados da inteligência binária, mesmo que se tratasse da maior, e se essas técnicas apenas foram procuradas até aqui pelos ocultistas, compreende-se que a maior parte das importantes descobertas práticas e científicas, antes do século xIx, tenham sido feitas por estes.
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A nossa linguagem, assim como o nosso passado, procede do funcionamento aritmético, binário, do nosso cérebro. Nós classificamos em sim, não, positivo, negativo, estabelecemos as comparações e deduzimos. Se a linguagem nos serve para ordenar o nosso pensamento por sua vez inteiramente ocupado em organizar, é necessário verificar que ela não é um elemento criador exterior, um atributo divino. Ela não vem acrescentar um pensamento ao pensamento. Se eu falo ou escrevo, refreio a minha máquina. Não a posso descrever senão observando ao ralenti. Portanto apenas exprimo a minha tomada de consciência binária do mundo e mesmo assim quando essa consciência cessa de funcionar à velocidade normal. A minha linguagem é apenas testemunho do ralenti de uma visão do mundo também limitada ao binário. Esta insuficiência da linguagem é evidente e intensamente ressentida. Mas que dizer da insuficiência da própria inteligência binária? A existência interna, a essência das coisas escapa-lhe. Pode descobrir que a luz é contínua e descontínua simultaneamente, que a molécula do benzeno estabelece entre os seus seis átomos relações duplas e no entanto mutuamente exclusivas; admite-o, mas não o pode compreender, não pode integrar ao seu próprio movimento a realidade das estruturas profundas que examina. Para o conseguir ser-lhe-ia necessário mudar de estado, seria preciso que outras máquinas diferentes das habitualmente usadas começassem a funcionar no cérebro, e que o raciocínio binário fosse substituído por uma consciência analógica que revestisse as formas e assimilasse os ritmos inconcebíveis dessas estruturas profundas. Talvez isso se produza, na intuição científica, na inspiração poética, no êxtase religioso e noutros casos que ignoramos. O recurso à consciência desperta, quer dizer, a um estado diferente do estado de vigília lúcida, é o leitmotiv de todas as antigas filosofias. É também o leitmotiv dos maiores físicos e matemáticos modernos, para quem “qualquer coisa se deve passar na consciência humana para que ela passe do saber ao conhecimento”.
Não é portanto surpreendente que a linguagem, que não consegue senão testemunhar uma consciência do mundo em estado de vigília lúcida normal, seja obscura desde que se trate de exprimir essas estruturas profundas, quer se trate da luz, da eternidade, do tempo, da energia, da essência do homem, etc. No entanto, distinguimos duas espécies de obscuridade.
Uma provém de que a linguagem é o veículo de uma inteligência que se aplica a examinar essas estruturas sem nunca as poder assimilar. É o veículo de uma natureza que esbarra em vão com outra natureza. Quando muito, apenas traz o testemunho de uma impossibilidade, o eco de uma sensação de impotência e de exílio. A sua obscuridade é real. Trata-se apenas da obscuridade.
A outra provém do facto que o homem que tenta exprimir-se experimentou, por instantes, outro estado de consciência. Viveu por um momento na intimidade dessas estruturas profundas. Conheceu-as. É o místico do tipo São João da Cruz, o sábio iluminado do tipo Einstein ou o poeta inspirado do tipo William Blake, o matemático arrebatado do tipo Galois, o filósofo visionário do tipo Meyrink.
Depois da queda, o “vidente” é incapaz de comunicar. Mas a partir daí, ele exprime a certeza positiva de que o Universo
seria controlável e manejável se o homem pudesse combinar tão intimamente quanto possível o estado de vigília e o estado de supervigília. Qualquer coisa de eficaz, o perfil de um instrumento soberano aparece em tal linguagem. Fulcanelli, ao falar o mistério das Catedrais, Wiener, ao falar da estrutura do Tempo, são obscuros, mas aqui a obscuridade não é a obscuridade: ela é o sinal de que qualquer coisa brilha algures.
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Apenas a moderna linguagem matemática pode, provavelmente, traduzir certos resultados do pensamento analógico. Existem, na física matemática, domínios do “algures absoluto” e de “contínuos de medida nula”, quer dizer, medidas de universos inconcebíveis e no entanto reais. É natural que nos interroguemos a nós próprios para saber por que motivo os poetas ainda não foram ouvir junto dessa ciência o canto das realidades fantásticas, a não ser por receio de terem de reconhecer esta evidência: que a arte mágica vive e progride para além dos seus gabinetes.
Esta linguagem matemática a testemunhar a existência de um universo que escapa à consciência normalmente lúcida é a única em actividade, em constante progresso.
Mittag-LefHer a propósito dos trabalhos de Abel: Trata-se de autênticos poemas líricos de uma beleza sublime a perfeição da forma deixa transparecer a grandeza do pensamento e enche o espírito de imagens de um mundo mais afastado das banais aparências da vida, mais directamente vindo da alma que a mais bela criação do maior poeta, no vulgar sentido da palavra. Dedekind: Nós somos de raça divina e possuímos o poder de criar.
Os “seres matemáticos”, quer dizer, as expressões, os signos que simbolizam a vida e as leis do mundo invisível, do mundo impensável, desenvolvem, fecundam outros “seres”. Para falar com propriedade, esta linguagem é a verdadeira “língua verde” do nosso tempo.
Sim, a “língua verde”, a gíria no sentido original dessas palavras[4], no sentido que se lhes dava na Idade Média (e não no sentido insípido que hoje lhe atribuem certos literatos que se julgam audaciosos), eis que a encontramos na ciência de vanguarda, na física matemática que é, se analisarmos bem, um desregramento da inteligência aceite, uma ruptura, uma visão.
O que é a arte gótica, à qual devemos as catedrais? Baseando-se na similitude fonética entre argot (gíria) e art goth (arte dos godos), bem como entre argotique (de gíria) e art gotháque (arte gótica, arte dos godos), Fulcanelli escrevia[5]: “Para nós a arte gótica não passa de uma deformação ortográfica da palavra argotáque, de acordo com a lei fonética que rege, em todas as línguas, sem dar a menor atenção à ortografia, a cabala tradicional”. A catedral é uma obra de art got ou de argot.
E o que é a catedral de hoje, a que ensina aos homens as estruturas da Criação, senão a equação, que substituiu a rosácea? Libertemo-nos das fidelidades inúteis ao passado, a fim de melhor nos ligarmos a ele. Não procuremos a catedral moderna no monumento de vidro e betão encimado de uma cruz. A catedral da Idade Média era o livro dos mistérios dado aos homens do passado. O livro dos mistérios, hoje, são os físicos matemáticos que o escrevem, com “seres matemáticos”, encaixados como rosáceas nas construções que se chamam foguetões interplanetários, fábrica atómica, ciclotrão. Eis a verdadeira continuidade, eis o verdadeiro fio da tradição.
Os argotáers da Idade Média, filhos espirituais dos Argonautas que conheciam o caminho do jardim das Hespérides, escreviam na pedra a sua mensagem hermética. Signos incompreensíveis para os homens nos quais a consciência não sofreu transformações, nem o cérebro sofreu aquela “aceleração” formidável pela qual o inconcebível se torna real, sensível e manejável. Não eram secretos por amor ao secreto, mas simplesmente porque as suas descobertas das leis da energia, da matéria e do espírito se tinham efectuado noutro estado de consciência, incomunicável directamente. Eram secretos, porque “ser” é “ser diferente”.
Por tradição atenuada, como em recordação de tão alto exemplo, o calão é nos nossos dias um dialecto à margem, usado pelos insubmissos, ávidos de liberdade, pelos proscritos, os nómadas, por todos aqueles que vivem à margem das leis vigentes e das convenções. Esses eram os voyants (videntes), ou seja, por corrupção da palavra, os voyous (que veio a significar vadios), e entre eles havia-os que se proclamavam Filhos do Sol, sendo assim L’art got a arte da luz ou do espírito.
Mas reencontraremos a tradição sem degenerescência se nos apercebermos de que esse art got, que é arte do espírito, é hoje a arte dos “seres matemáticos” e dos integrais de Lebesque, dos “números para além do Infinito”; a dos físicos matemáticos que edificam, em curvas insólitas, em “luzes interditas”, em trovoadas e em chamas, as catedrais para as missas do futuro.
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Estas observações arriscam-se a parecer revoltantes para um leitor religioso. Mas não são. Pensamos que as possibilidades do cérebro humano são infinitas. Isto põe-nos em contradição com a psicologia e a ciência oficiais, que têm “confiança no homem”, sob a condição de que ele não ultrapasse o quadro traçado pelos racionalistas do século xix. Isto não deveria pôr-nos em contradição com o espírito religioso, pelo menos com o que tem de mais puro e de mais alto.
O homem pode atingir os segredos, ver a luz, ver a Eternidade, apreender as leis da Energia, adaptar a sua marcha interior ao ritmo do destino universal, ter um conhecimento sensível da última convergência das forças e, como Teilhard de Chardin, viver da incompreensível vida do ponto Ómega onde toda a criação se encontrará, no final do tempo terrestre, a um tempo terminada, consumida e exaltada. O homem tudo pode.
A sua inteligência, equipada provavelmente, desde a origem, para um conhecimento infinito, pode, em certas condições, apreender o conjunto dos mecanismos da vida. O poder da inteligência humana inteiramente manifestada provavelmente pode atingir a totalidade do Universo. Mas esse poder cessa onde essa inteligência, chegada ao termo da sua missão, pressente que ainda há “qualquer coisa” para além do Universo. Aqui, a consciência analógica perde toda a possibilidade de funcionar. Não há, no Universo, modelos do que está para além do Universo. Essa porta intransponível é a do Reino de Deus. Aceitamos essa expressão, nesta acepção: “Reino de Deus.”
Por ter tentado ultrapassar o Universo imaginando um número maior que tudo o que se poderia conceber no Universo, por ter tentado constituir um conceito que o Universo não pudesse preencher, o genial matemático Cantor acabou na loucura. Há uma última porta que a inteligência analógica não pode abrir. Poucos textos igualam em grandeza metafísica aquele onde H. P. Lovecraft[6] tenta descrever a aventura desvairada do homem desperto que teria conseguido entreabrir essa porta e portanto afirmaria ter penetrado ali onde Deus reina para além do infinito. . .
“Ele sabia que um tal Randolph Carter, de Boston, tinha existido; no entanto não podia saber com certeza se era ele próprio, fragmento ou faceta de entidade para além da última Porta, ou qualquer outro, que fora esse Randolph Carter. O seu “eu” fora destruído, e, no entanto, graças a qualquer faculdade inconcebível, tinha igualmente consciência de ser uma legião de “eu”. Se é que nesse sítio, onde a menor noção de existência individual estava abolida, podia sobreviver, sob qualquer forma, uma coisa tão singular. Era como se o seu corpo tivesse sido bruscamente transformado numa dessas efígies, de múltiplas cabeças e membros, dos templos hindus. Num esforço insensato, contemplando esse aglomerado, tentava separar o seu corpo original – se é que podia existir um corpo original…
“Nessas terrificantes visões, esse fragmento de Randolph Carter que ultrapassara a última Porta foi arrancado ao nadir do horror para mergulhar nos abismos de um horror ainda mais profundo e, dessa vez, isso vinha do interior: era uma força, uma espécie de personalidade que bruscamente lhe fazia frente e o envolvia ao mesmo tempo, se apossava dele e se integrava a sua própria presença, coexistia a todas as eternidades, era contíguo a todos os espaços. Não havia qualquer manifestação visível, mas a percepção dessa entidade e a temível combinação dos conceitos de entidade e de infinidade provocava-lhe um terror paralisante. Esse terror ultrapassava de longe todos os que, até ali, Carter suspeitara que existiam… Essa entidade era una e um todo, um ser a um tempo infinito e limitado que não fazia apenas parte de um contínuo espaço-tempo, mas que fazia parte integrante do turbilhão eterno das forças de vida, do último turbilhão sem limites que tanto ultrapassa as matemáticas como a imaginação. Essa entidade talvez fosse aquela que certos cultos secretos da Terra evocam em voz baixa e que os espíritos vaporosos das nebulosas espirais designam por meio de um signo impossível de reproduzir… E, num relâmpago, projectado ainda mais longe, o fragmento de Carter conheceu a superficialidade, a insuficiência do que acabava de experimentar mesmo disso, mesmo disso…”
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Voltemos ao nosso assunto inicial. Nós não dizemos: existe, na imensa superfície silenciosa do cérebro, uma máquina electrónica analógica. Dizemos: visto que existem máquinas aritméticas e máquinas analógicas, não seria possível imaginar, para além do funcionamento da nossa inteligência em estado normal, um funcionamento em estado superior? Poderes da inteligência que pertenceriam à mesma categoria dos da máquina analógica? A nossa comparação não deve ser tomada à letra. Trata-se de um ponto de partida, de uma rampa de lançamento em direcção às regiões da inteligência ainda selvagens, quase por explorar. Nessas regiões, a inteligência talvez comece bruscamente a cintilar, iluminando as coisas habitualmente escondidas do Universo. De que forma consegue ela atingir essas regiões onde a sua própria vida se torna prodigiosa? Por que operações se dá a mudança de estado? Não afirmamos que o sabemos. Dizemos que há, nos ritos mágicos e religiosos, na imensa literatura antiga e moderna consagrada aos momentos singulares, aos instantes fantásticos do espírito, milhares e milhares de descrições fragmentárias que seria necessário reunir, comparar, e que talvez evoquem um método perdido – ou um método futuro.
Pode dar-se o caso de que por vezes a inteligência roce, como que por acaso, a fronteira dessas regiões selvagens. Aí põe em movimento, durante uma fracção de segundo, as máquinas superiores de que distingue confusamente o ruído. É a minha história da “relavote”, são todos esses fenómenos ditos “parapsicológicos” cuja existência tanto nos perturba, são esses extraordinários e raros fachos iluminativos, um, dois ou três, que a maior parte das pessoas sensitivas sentem no decorrer da vida, e sobretudo nas mais tenras idades. Nada resta, apenas a recordação. transpor essa fronteira (ou, como dizem os textos tradicionais: “entrar no estado de vigília”) provoca um benefício muito maior e não parece ser obra do acaso. Tudo leva a pensar que essa ultrapassagem exige a reunião e a orientação de um enorme número de forças, exteriores e interiores. Não é absurdo supor que essas forças estão à nossa disposição. Simplesmente, falta-nos o método. Também nos faltava o método, há pouco tempo, para libertar a energia nuclear. Mas talvez essas forças estejam apenas à nossa disposição no caso de nós comprometermos, para as captar, a totalidade da nossa existência. Os ascetas, os santos, os taumaturgos, os videntes, os poetas e os sábios de génio não dizem outra coisa. E é o que escreve William Temple, moderno poeta americano: “Nenhuma revelação especial é possível se a própria existência não for um instrumento de revelação”.
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Retomemos portanto a nossa comparação. Foi durante a segunda guerra mundial que a “pesquisa operacional” nasceu. Para que a necessidade de semelhante método se fizesse sentir “era necessário que se pusessem problemas que escapavam ao bom-senso e à experiência”. Portanto os tácticos recorreram aos matemáticos:
“Quando uma situação, pela complexidade da sua estrutura aparente e da sua evolução visível, não pode ser dominada pelos processos habituais, pede-se aos cientistas para tratarem essa situação da mesma forma que, na sua especialidade, tratam os fenómenos da natureza, e para, desta forma, elaborarem uma teoria. Criar a teoria de uma situação ou de um objecto é imaginar um modelo abstracto cujas propriedades simularão as propriedades desse objecto. O modelo é sempre matemático. Por seu intermédio, as questões concretas são traduzidas em propriedades matemáticas.”
Trata-se do “modelo” de uma coisa ou de uma situação demasiado nova ou demasiado complexa para ser apreendida na sua realidade total pela inteligência. “Em pesquisa operacional fundamental, há então interesse em construir uma máquina electrónica analógica de forma que essa máquina realize o modelo. Pode-se então, manipulando os botões de regulamento e vendo-a funcionar, encontrar respostas para todas as perguntas em vista das quais o modelo foi concebido”.
Essas definições são extraídas de um boletim técnico[7]. São mais importantes, para uma visão do “homem desperto”, para uma compreensão do espírito “mágico”, do que a maior parte das obras de literatura ocultista. Se nós traduzirmos modelo por ídolo ou símbolo, e máquina analógica por funcionamento iluminativo do cérebro ou estado de hiperlucidez, vemos que o mais misterioso caminho do conhecimento humano – aquele que se recusa a admitir os herdeiros do século xIx positivista – é um verdadeiro e grande caminho. É a técnica moderna que nos convida a considerá-lo como tal.
“A presença dos símbolos, signos enigmáticos e de expressão misteriosa nas tradições religiosas, as obras de arte, os contos e os costumes do folclore provam a existência de uma linguagem universalmente espalhada no Oriente assim como no Ocidente, e cuja significação trans-histórica parece situar-se na própria raiz da nossa existência, dos nossos conhecimentos e dos nossos valores[8].”
Ora, o que é o símbolo, senão o modelo abstracto de uma realidade, de uma estrutura, que a inteligência humana não pode
dominar inteiramente, mas cuja “teoria” esboça?
“O símbolo revela certos aspectos da realidade – os mais profundos – que desafiam qualquer processo de conhecimento[9].” Como o “modelo” que o matemático elabora a partir de um objecto ou de uma situação que escapa ao bom-senso ou a experiência, as propriedades do símbolo simulam as propriedades do objecto ou da situação assim abstractamente representados, e cujo aspecto fundamental se mantém dissimulado.
Em seguida seria necessário que uma máquina electrónica analógica fosse montada e funcionasse, a partir desse modelo, para que o símbolo mostrasse a realidade que contém e as respostas a todas as perguntas em vista das quais foi concebido. O equivalente dessa máquina, supomos nós, existe no homem. Certas atitudes mentais e físicas ainda mal conhecidas podem provocar-lhe o funcionamento. Todas as técnicas, ascéticas, religiosas, mágicas parecem orientadas para esse resultado, e é provavelmente isso que a tradição, percorrendo toda a história da humanidade, exprime ao prometer aos sábios o “estado de vigília”.
Assim, os símbolos talvez sejam os modelos abstractos, estabelecidos desde as origens da humanidade pensante, a partir dos quais as estruturas profundas do Universo nos poderiam ser sensíveis. Mas atenção! Os símbolos não representam a coisa em si, o fenómeno em si. Seria igualmente falso pensar que eles são pura e simplesmente esquematizações. Na pesquisa operacional, o modelo não é o modelo reduzido ou simplificado de uma coisa conhecida. É o ponto de partida possível em vista do conhecimento dessa coisa. É um ponto de partida situado fora da realidade: situado no universo matemático. Em seguida será necessário que a máquina analógica, construída sobre esse modelo, entre em transes electrónicos para que as respostas práticas sejam dadas. Eis porque todas as explicações dos símbolos aos quais se dedicam os ocultistas são sem interesse. Eles trabalham sobre os símbolos como se se tratasse de esquemas traduzíveis pela inteligência no estado normal. Como se, desses esquemas, se pudesse caminhar imediatamente para uma realidade. Desde há séculos que assim ocupam o seu tempo na Cruz de Santo André, na suástica, na estrela de Salomão, e o estudo das estruturas profundas do Universo nem por isso avançou.
Devido a uma inspiração da sua sublime inteligência, Einstein conseguiu entrever (não a apreender totalmente, não a incorporar-se e a dominar) a relação espaço-tempo. Para comunicar a sua descoberta no grau em que ela é inteligentemente comunicável, e para se ajudar a si próprio, no sentido de se elevar até à sua própria visão iluminativa, desenha o signo e/ou triedro de referência. Esse desenho não é um esquema da realidade. É vulgarmente inutilizável. É um “levanta-te e caminha!” para o conjunto dos conhecimentos físico-matemáticos. Mas todo esse conjunto posto em movimento num cérebro potente não conseguirá senão reencontrar o que esse triedro evoca, e não passar ao Universo onde existe a lei expressa por esse signo. No final dessa marcha, porém, saber-se-á pelo menos que este outro universo existe.
Todos os símbolos são talvez da mesma categoria. A suástica invertida, ou Cruz gamada, cuja origem se perde no mais longínquo passado, talvez seja o “modelo” da lei que preside a toda a destruição. Cada vez que há destruição, na matéria ou no espírito, o movimento das forças é talvez conforme a esse modelo, da mesma forma que a relação espaço-tempo é conforme ao triedro.
Assim também, diz-nos o matemático Eric Temple Bell, talvez a espiral seja o “modelo” da estrutura profunda de toda a evolução (da energia, da vida, da consciência). Pode ser que no “estado de vigília” o cérebro possa funcionar como a máquina analógica a partir de um modelo estabelecido, e que desta forma ele penetre, a partir da suástica, a estrutura universal da destruição, a partir da espiral, a estrutura universal da evolução.
Os símbolos, os signos são talvez, portanto, modelos concebidos para as máquinas superiores do nosso espírito, em vista ao funcionamento da nossa inteligência noutro estado.
A nossa inteligência, no seu estado vulgar, talvez trabalhe, com o seu vértice mais delicado, desenhando modelos graças aos quais, passando para um estado superior, poderia incorporar-se a última realidade das coisas. Quando Teilhard de Chardin chega a atingir o ponto Ómega, elabora dessa forma o “modelo” do último ponto da evolução. Mas para sentir a realidade desse ponto, para viver em profundidade uma realidade tão pouco imaginável, para que a consciência integre essa realidade, a assimile por completo – para que a consciência, no fim de contas, se transforme ela própria no ponto Ómega e apreenda tudo o que é apreensível num tal ponto: o sentido último da vida da Terra, o destino cósmico do Espírito realizado, para além do final dos tempos no nosso globo -, para que essa passagem da ideia ao conhecimento se faça, seria necessário que surgisse outra forma de inteligência. Ou seja uma inteligência analógica, ou a inspiração mística, ou o estado de contemplação absoluta.
Assim, a ideia de Eternidade, a ideia de Transfinido, a ideia de Deus, etc., são talvez “modelos” estabelecidos por nós e destinados, noutro domínio da nossa inteligência, num domínio habitualmente adormecido, a dar as respostas em vista das quais nós as elaborámos.
O que é preciso ver bem é que a ideia mais sublime é talvez o equivalente do desenho do bisão para o feiticeiro pré-histórico. Trata-se de uma maqueta. Em seguida será necessário que as máquinas analógicas comecem a funcionar sobre esse modelo na zona secreta do cérebro. O feiticeiro passa, por transes, para a realidade do mundo bisão, descobre-lhe todos os aspectos de uma só vez e pode anunciar o lugar e a hora da próxima caçada. Isto é a magia no estado mais inferior. No estado superior, o modelo não é um desenho ou uma estatueta, nem sequer um símbolo. É uma ideia, é o produto mais perfeito da mais perfeita inteligência possível. Essa ideia só foi concebida em vista de outra etapa da investigação: a etapa analógica, segundo tempo de toda a investigação operacional.
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O que nos parece é que a mais alta, a mais fervorosa actividade do espírito humano consiste em estabelecer “modelos” destinados a outra actividade do espírito, pouco conhecida e difícil de pôr em actividade. É neste sentido que se pode dizer: tudo é símbolo, tudo é signo, tudo é evocação de outra realidade.
Isto abre-nos portas sobre o possível e infinito poder do homem. Isto não nos dá a chave de todas as coisas, contrariamente ao que crêem os simbologistas. Da ideia de Trindade, da ideia do transfinido, à estatueta cravada de alfinetes do mago aldeão, passando pela cruz, a suástica, o vitral, a catedral, a Virgem Maria, os “seres matemáticos”, os números, etc., tudo é modelo, maqueta de qualquer coisa que existe num universo diferente daquele onde essa maqueta foi concebida. Mas as maquetas não são intercambiáveis: um modelo matemático de barragem fornecido ao calculador electrónico não é comparável a um modelo de foguetão supersónico. Nem tudo está em tudo. A espiral não está na cruz. A imagem do bisão não está na fotografia sobre a qual o médium se exercita, o ponto Ómega do P.e Teilhard não está no Inferno de Dante, o menir não está na catedral, os números de Cantor não estão nos números do Apocalipse. Se existem maquetas de tudo, nem todas as maquetas são como mesas gigognes[10], e não formam um todo desmontável que revele o segredo do Universo.
Se os modelos mais poderosos fornecidos à inteligência em estado de vigília superior são os modelos sem dimensão, quer dizer, as ideias, é preciso abandonar a esperança de encontrar a maqueta do Universo na Grande Pirâmide ou sobre o pórtico de Notre-Dame. Se existe uma maqueta do Universo inteiro, ela só poderia existir no cérebro humano, no cume extremo da mais sublime das inteligências. Mas não teria o Universo mais recursos do que o homem? Se o homem é um infinito, não seria o Universo o infinito mais qualquer coisa?
No entanto, descobrir que tudo é maqueta, modelo, signo, símbolo, leva a descobrir uma chave. Não aquela que abre a porta do mistério insondável, e que aliás não existe, ou está ainda nas mãos de Deus. A chave, não de uma certeza, mas de uma atitude. Trata-se de fazer funcionar a inteligência “diferente” à qual essas maquetas são propostas. Trata-se portanto de passar do estado de vigília vulgar para o estado de vigília superior. O estado desperto. Nem tudo está em tudo. Mas a vigília é tudo.
1 Bem entendido, a nossa comparação com a máquina electrónica não é completa. Como qualquer comparação, é apenas um ponto de partida e também um esboço da ideia.
2 Cantor: A essência das matemáticas é a liberdade.
3 Aí tudo é amplo: as técnicas.do pensamento, as lógicas”, os “conjuntos”, tudo é vivo, tudo se renova sem cessar, as concepções mais estranhas e mais transparentes nascem umas das outras, transformam-se, semelhantes aos “movimentos” de uma sinfonia; estamos no domínio divino da imaginação. Mas de uma imaginação abstracta, se assim se pode dizer. De facto, essas imagens da técnica matemática não têm nada a ver com as do mundo ilusório onde chapinhamos, embora possuam a chave e o segredo dele. (Georges Buraud: Matemática e Civilização, Revista “La Table Ronden, Abril de 1959).
4 Quer dizer, no sentido de língua própria dum ofício, e por conseguinte secreta, como as técnicas. (N. da Z)
5 Fulcanelli: Le Mystère des Cathédrales.
6 Excerto do conto: À travers les Portes de la Clè dÁrgent, que Bergier e eu publicámos em francês num volume intitulado: Dénzons et Merveilles. (Colecção uLumière Interdite”, edições Deux Rives, Paris.)
7 “Bulletin de Liaison des Cercles de Politique Économique” Março de 1959.
8 René Alleau: De la Nature des Symboles (ed. Flammarion)
9 Mircéa Éliade: Images et Symboles.
10 Table gigognes mesa contendo uma série de mesas que entram umas
nas outras. (N. da T.)
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