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FOI NO ANO DE 1886 que o farmacologista alemão Ludwig Lewin publicou o primeiro estudo sistemático do cacto que, depois disso, haveria de receber seu nome. O Anhalonium lewinü era novo para a ciência, embora fosse, na verdade, um amigo desde tempos imemoriais para as religiões primitivas e para os índios do México e do Sudoeste dos Estados Unidos. Era até muito mais que um amigo. Segundo as palavras de um dos primeiros espanhóis a visitar o Novo Mundo, “eles comem uma raiz a que chamam de peiote e que é por eles venerada como a um deus”.
O porquê de tal veneração evidenciou-se quando psicologistas eminentes, tais como Jaensch, Havelock Ellis e Weir Mitchell, começaram suas experiências com a mescalina — o princípio ativo do peiote. Não há dúvida de que eles as interromperam em um ponto muito aquém da idolatria, mas tudo nos leva a situar a mescalina em posição ímpar entre os demais alcalóides. Administrada em doses adequadas, ela modifica mais profundamente a qualidade da percepção que qualquer outra droga à disposição do farmacologista, a isso aliando o fato de ser menos tóxica que as demais.
A pesquisa sobre a mescalina tem sido realizada esporadicamente, desde os dias de Lewin e Havelock Ellis. Os químicos não se limitaram a isolar o alcalóide; conseguiram também realizar-lhe a síntese, com o que não mais ficaram à mercê das escassas e problemáticas coletas de um cacto do deserto. Os alienistas têm, eles mesmos, feito uso da mescalina, buscando assim conseguir uma melhor e mais direta compreensão dos processos mentais de seus pacientes. Infelizmente, por trabalharem baseados em um número muito reduzido de provas e dentro de uma faixa de condições por demais estreita, os psicologistas apenas observaram e registraram alguns dos mais impressionantes efeitos da mescalina. Os neurologistas e fisiologistas chegaram a algumas conclusões a respeito do mecanismo de sua ação sobre o sistema nervoso central. E ao menos um filósofo militante tomou o alcalóide, ante a luz que este poderia lançar sobre antigos e insolúveis enigmas, tais como o lugar da mente na natureza e a relação entre a inteligência e o consciente.
Assim estavam as coisas até que, há dois ou três anos, foi observado um fato novo[1], talvez de grande importância. Na verdade, havia muitas décadas que esse fato se apresentava ao vivo, diante de todos, mas, a despeito disso, ninguém se havia dele apercebido até que um jovem psiquiatra inglês, que atualmente trabalha no Canadá, se deu conta da grande semelhança de composição química existente entre a mescalina e a adrenalina. Pesquisas posteriores revelaram que o ácido lisérgico — um onírico extremamente poderoso, derivado da ergotina — apresenta afinidades com essas duas substâncias, em suas características bioquímicas. Veio em seguida a descoberta de que o adrenocromo, produto de decomposição da adrenalina, pode produzir muitos dos sintomas observados no inebriamento por mescalina. E é bem provável que o adrenocromo seja o fruto de uma decomposição realizada espontaneamente no corpo humano. Isto nos leva a concluir que cada um de nós é capaz de produzir uma substância química da qual, como sabemos, doses diminutas podem criar profundas alterações na percepção. Algumas dessas alterações são semelhantes às que acompanham essa praga tão característica do século XX que é a esquizofrenia. Será essa doença mental uma decorrência de um desequilíbrio químico: E estará o desequilíbrio químico, por seu turno, ligado a sofrimentos psíquicos que atuem sobre as glândulas supra-renais? Será arrojado e prematuro afirmá-lo. O máximo que podemos dizer é que isso constitui uma hipótese plausível. Entretanto, o mistério vem sendo sistematicamente desvendado; os detetives — bioquímicos, psiquiatras e psicologistas — acham-se em sua pista.
Em razão de uma série de circunstâncias — que para mim foram extremamente favoráveis — vi-me, na primavera de 1953, situado bem no meio de tal busca. Um desses pesquisadores tinha chegado à Califórnia, levado por suas investigações. A despeito dos setenta anos de pesquisas sobre a mescalina, o material psicológico de que se dispunha era ainda incrivelmente reduzido, e ele estava ansioso por ampliá-lo. Eu me atravessara em seu caminho e estava disposto — ou melhor, decidido — a servir de cobaia. E foi assim que, em uma radiosa manhã de maio, tomei quatro decigramas de mescalina, dissolvidos em meio copo d’água, e sentei-me para esperar pelos resultados.
Vivemos, agimos e reagimos uns com os outros; mas sempre, e sob quaisquer circunstâncias, existimos a sós. Os mártires penetram na arena de mãos dadas; mas são crucificados sozinhos. Abraçados, os amantes buscam desesperadamente fundir seus êxtases isolados em uma única autotranscendência; debalde. Por sua própria natureza, cada espírito, em sua prisão corpórea, está condenado a sofrer e gozar em solidão. Sensações, sentimentos, concepções, fantasias — tudo isso são coisas privadas e, a não ser por meio de símbolos, e indiretamente, não podem ser transmitidas. Podemos acumular informações sobre experiências, mas nunca as próprias experiências. Da família à nação, cada grupo humano é uma sociedade de universos insulares.
Muitos desses universos são suficientemente semelhantes, uns aos outros, para permitir entre eles uma compreensão por dedução, ou mesmo por mútua projeção de percepção. Assim, recordando nossos próprios infortúnios e humilhações podemos nos condoer de outras pessoas em circunstâncias análogas; somos até capazes de nos pormos em seu lugar (sempre, evidentemente, em sentido figurado). Mas em certos casos a ligação entre esses universos é incompleta, ou mesmo inexistente. A mente é o seu campo, porém os lugares ocupados pelo insano e pelo gênio são tão diferentes daqueles onde vivem o homem e a mulher comuns que há pouco ou nenhum ponto de contato na memória individual para servir de base à compreensão ou a ligações entre eles. Falam, mas não se entendem. As coisas e os fatos a que os símbolos se referem pertencem a reinos de experiências que se excluem mutuamente.
Contemplarmo-nos do mesmo modo pelo qual os outros nos vêem é uma das mais confortadoras dádivas. E não menos importante é o dom de vermos os outros tal como eles mesmos se encaram. Mas e se esses outros pertencerem a uma espécie diferente e habitarem um universo inteiramente estranho? Assim, como poderá o indivíduo, mentalmente são, sentir o que realmente sente o insano? Ou, na iminência de ser reencarnado na pessoa de um sonhador, um médium ou um gênio musical, como poderíamos algum dia visitar os mundos que para Blake, Swedenborg ou Johann Sebastian Bach eram seus lares? E como poderá alguém, que esteja nos limites extremos do ectomorfismo e da cerebrotonia, pôr-se no lugar de outrem que ocupa o limite oposto do endomorfismo e da viscerotonia ou (a não ser dentro de certas áreas restritas) compartilhar dos sentimentos de um terceiro que se situe no campo do mesomorfismo e da somatotonia? Para o behaviorísta inflexível, tais proposições — suponho eu — são desprovidas de sentido. Mas para aqueles que aceitam, do ponto de vista teórico, aquilo que, na prática, sabem ser verdade — isto é, que a experiência possui dois aspectos, um externo e o outro interno —, os problemas apresentados são reais e tanto mais sérios por serem, alguns, inteiramente insolúveis, e outros só poderem ser resolvidos em circunstâncias excepcionais e por métodos que não se acham ao alcance de qualquer um. É, pois, quase certo que jamais poderei saber o que sentem sir John Falstaff ou Joe Louis. Por outro lado, sempre me pareceu possível que, por meio do hipnotismo, do auto-hipnotismo, da meditação sistemática, ou ainda pela ação de uma droga apropriada, eu pudesse modificar de tal forma minha percepção normal que fosse capaz de compreender, por mim mesmo, a linguagem do visionário, do médium e até\ do místico.
Baseado no que já havia lido a respeito das experiências com a mescalina, eu me convencera antecipadamente de que a droga haveria de garantir minha admissão, ao menos por umas poucas horas, no tipo de mundo interior descrito por Blake e AE.[2] Mas o que eu esperava não aconteceu. Contava ficar, de olhos cerrados, a contemplar visões de corpos geométricos multicores, de formas arquitetônicas animadas, recobertas de gemas e fabulosamente belas, de paisagens repletas de figuras heróicas, de dramas simbólicos e perpetuamente apaixonantes, no limiar da revelação derradeira. Mas está claro que eu não levava em conta as idiossincrasias de minha formação mental, as realidades de meu temperamento, educação e hábitos.
Sou e, até onde minha memória alcança, sempre fui pouco dado a devaneios. As palavras, mesmo as mais evocativas, empregadas pelos poetas, não conseguem produzir imagens em minha mente. Não vêm ao meu encontro visões hipnagógicas no limiar do sono. Quando me lembro de algo, a memória não se me apresenta como um fato ou objeto vivido. Por um esforço da vontade, consigo evocar uma imagem não muito vivida do que aconteceu na tarde da véspera, de como era o Lungarno antes de as pontes terem sido destruídas ou da estrada de Bayswater quando os poucos ônibus eram verdes e pequeninos, puxados por velhos cavalos a uns seis quilômetros por hora. Mas essas imagens terão pouca substância, e de forma alguma poderão ter vida própria. Guardam, para os objetos reais, a mesma proporção que os fantasmas homéricos apresentam com relação aos homens de carne e osso que vão visitá-los nas sombras. Só quando tenho febre alta é que minhas imagens mentais adquirem vida independente. Para aqueles cuja imaginação é fértil, meu mundo interior terá de parecer curiosamente monótono, limitado e desinteressante. Este era o mundo — um pobre mundo, porém meu — que eu esperava ver transformado em algo inteiramente diferente de si mesmo.
A modificação que realmente ocorreu nesse mundo nada teve de revolucionária. Meia hora depois de ingerir a droga, comecei a perceber um lento bailado de luzes douradas. Pouco depois surgiram imponentes superfícies rubras que cresciam e se avolumavam a partir de brilhantes nódulos de energia a assumir continuamente as mais variadas formas. De outra feita, ao fechar os olhos, se me deparava um complexo de estruturas cinzentas, de dentro das quais brotavam, incessantemente, pálidas esferas azuladas que se iam materializando e, à medida que o faziam, deslizavam silenciosamente para cima e fugiam de cena. Mas em tempo algum apareceram faces ou formas de homens ou animais. Nada de paisagens, espaços abissais, mágico crescimento e metamorfose de edificações, nada que lembrasse, por remoto que fosse, um drama ou uma parábola. O outro mundo ao qual a mescalina me conduzira não era o mundo das visões; ele existia naquilo que eu podia ver com meus olhos abertos. A grande transformação se dava no reino dos fatos objetivos. O que tinha acontecido a meu universo subjetivo era coisa que, relativamente, pouco importava.
Eu ingerira minha poção às onze horas. Hora e meia mais tarde estava sentado em meu escritório, contemplando atentamente um pequeno vaso de vidro. Continha ele apenas três flores — uma rosa-de-portugal, inteiramente desabrochada, com sua rósea corola onde a base de cada pétala apresentava um matiz mais quente e brilhante; um grande cravo creme e arroxeado; e, arrogante em sua heráldica beleza, de um púrpura pálido, a flor-do-íris. Por mero acaso, o pequeno ramalhete violava todas as regras do bom gosto tradicional. Pela manhã, ao desjejum, ferira-me os olhos a vivida dissonância de suas cores. Mas tal já não era mais minha opinião. Não contemplava mais uma esquisita combinação de flores; via, agora, aquilo mesmo que Adão vira no dia de sua criação — o milagre do inteiro desabrochar da existência, em toda a sua nudez.
— Isso é agradável? — perguntou alguém. (Durante essa parte da experiência, todas as conversas foram gravadas, e foi-me assim possível refrescar a memória a respeito do que fora dito.)
— Nem agradável, nem desagradável — respondi. — Apenas existe.
Istigkeit — “existência” —, não era essa a palavra que Meister Eckhart gostava de usar? O Existir da filosofia platônica — com a diferença que Platão parecia ter cometido o enorme, o grotesco erro de separar Existir de tornar-se e de identificá-lo com a abstração matemática — a Idéia. Ele, pobre mortal, talvez jamais tivesse visto um ramalhete de flores a brilhar com sua própria luz interior, quase que estremecendo sob a tensão da importância do papel que lhes fora confiado; jamais deveria ter-se apercebido de que essa tão grande importância da rosa, do íris e do cravo residia, tão-somente, naquilo que eles representavam — uma efemeridade que, não obstante, significava vida eterna, um perpétuo perecer que era, ao mesmo tempo, puro Existir; um punhado de pormenores diminutos e sem par no qual, por algum indizível paradoxo, embora axiomático, encontrar-se-ia a divina fonte de toda a existência.
Continuei a observar as flores e, em sua luz vivida, eu parecia captar o equivalente qualitativo da respiração — mas de uma respiração sem retornos a um ponto de partida, sem refluxos periódicos, mas antes em um fluxo, repetido, da beleza para uma beleza mais sublime, de um significado profundo para outro ainda maior. Palavras tais como Graça e Transfiguração vieram-me à mente, e isto, sem dúvida, era o que, entre outras coisas, queriam elas significar. Meus olhos se encaminhavam da rosa para o cravo, e daquela incandescência de plumas para as suaves volutas de ametista animada, que era o íris. A Beatífica Visão, Sat Chit Ananda — Existência-Consciência- Beatitude —, pela primeira vez entendi, não em termos de palavras, não por insinuações rudimentares, vagamente, mas precisa e completamente, o que queriam significar essas sílabas prodigiosas. E lembrei-me, então, de uma passagem que lera em um dos ensaios de Suzuki: “Que é o Dharma-Corpóreo do Buda?”. (O Dharma-Corpóreo do Buda é outro modo de se referir à Mente, à Peculiaridade, ao Vazio, à Divindade.) A pergunta foi feita, em um mosteiro zen, por ardente e perplexo noviço. E, com a vivaz insensatez de um dos Irmãos Marx, respondeu-lhe o superior: “A sebe ao fundo do jardim”. “E poderia eu perguntar” — retrucou timidamente o noviço — “qual o homem que concebeu essa verdade?” A que Groucho, dando-lhe uma pancada nas costas com seu bastão, responde: “Um leão de cabelos de ouro!”.
Quando li esse diálogo, achei-o pouco mais ou menos um amontoado de insensatez. Agora, porém, tudo está tão claro como o dia, tão evidente quanto o postulado de Euclides. Não há a menor dúvida de que o Dharma-Corpóreo do Buda seja a sebe do fim do jardim. Ao mesmo tempo, e com igual certeza, ele é estas flores, ele é qualquer coisa que desperte a atenção de meu ego (ou melhor, de minha bem-aventurada despersonalização, liberta por um momento de meu abraço asfixiante). Assim também os livros, que recobrem as , paredes de meu escritório: tais como as flores, eles também luziam, quando para eles olhei, com cores mais brilhantes, com uma importância mais profunda. Livros vermelhos de rubi; livros de esmeralda; livros de ágata, de água-marinha, de topázio; livros de lápis-lazúli de cor tão intensa, tão intrinsecamente importantes que pareciam a ponto de sair das estantes para melhor atrair minha atenção.
— Que me diz das relações espaciais? — perguntou o investigador enquanto eu olhava os livros.
Era difícil responder. Na verdade, a perspectiva se tornara bastante estranha e as paredes da sala já não mais pareciam encontrar-se em ângulos retos. Mas não eram esses os fatos realmente importantes. O que mais ressaltava era a constatação de que as relações espaciais tinham perdido muito do seu valor e de que minha mente tomava contato com o mundo exterior em termos de outras dimensões que não as de espaço. Em situações normais o olho se preocupa com problemas tais como Onde? — A que distância? — Como se situa em relação a tal coisa?. Durante a experiência com a mescalina, as perguntas tácitas a que a visão responde são de outra ordem. Lugar e distância deixam de ter muito interesse. A mente elabora a compreensão das coisas em termos de intensidade de existência, profundidade de importância, relações dentro de um determinado padrão. Eu olhava para os livros, mas não me preocupava, em absoluto, com suas posições no espaço. O que notava, o que se impunha por si mesmo a minha mente, era o fato de que todos eles brilhavam com uma luz viva e que, em alguns, o resplendor era mais intenso que em outros. Nesse instante, a posição e as três dimensões eram questões de somenos. Não, evidentemente, que a noção de espaço houvesse sido abolida. Quando me levantei e pus-me a andar, eu o fiz com toda a naturalidade, sem erros de apreciação sobre a posição dos objetos. O espaço ainda estava ali; mas havia perdido sua primazia. A mente se preocupava, mais do que tudo, não com medidas e lugares, e sim com a existência e o significado.
E, de par com essa indiferença pelo espaço, adquiri um descaso ainda maior pelo tempo.
— Parece haver bastante — foi tudo o que pude dizer quando o meu inquiridor me pediu que dissesse qual a noção que tinha dessa dimensão.
Bastante; mas pouco se me dava saber, exatamente, quanto. Poderia, está claro, olhar para meu relógio; mas ele, sabia-o eu, estava em outro universo. Essa minha experiência tinha sido, e ainda era, de duração indefinida, também podendo ser considerada um perpétuo presente, criado por um apocalipse em contínua transformação.
Dos livros, meu interlocutor desviou-me a atenção para o mobiliário. No centro da sala havia uma pequena mesa para máquina de escrever. Junto a ela, do lado oposto ao meu, estava uma cadeira de vime e, além dela, uma escrivaninha. As três peças formavam um intricado desenho de horizontais, verticais e oblíquas — desenho tanto mais interessante por não estar sendo interpretado em termos de suas relações de espaço. Mesa, cadeira e escrivaninha constituíam uma composição que se assemelhava a algo por Braque ou Juan Gris: uma natureza-morta nitidamente relacionada com o mundo objetivo, mas onde não havia profundidade, nada de realismo fotográfico. Eu examinava minha mobília, não como o utilitário, que tem de sentar-se em cadeiras, escrever em escrivaninhas e em mesas; não como o operador cinematográfico ou o investigador científico, mas como o esteta puro, cuja única preocupação se cinge às formas e suas relações dentro do campo visual ou dos limites de um quadro. Mas, à medida que prosseguia em minha investigação, essa análise puramente estética de cubista foi sendo substituída pelo que poderei apenas definir como sendo a visão sacramentai da realidade: voltei ao estado em que me encontrava quando contemplava as flores — a um mundo onde tudo brilhava, animado pela Luz Interior, e era infinito em sua importância. Assim, os pés daquela cadeira — quão miraculosa a sua tubularidade, quão sobrenatural seu suave polimento! Consumi vários minutos — ou foram vários séculos? — não apenas admirando aqueles pés de bambu, mas em verdade sendo-os, ou melhor, sentindo-me neles; ou, empregando linguagem talvez mais precisa (pois “eu” não estava em jogo, do mesmo modo como, até certo ponto, “eles” tampouco o estavam), sendo minha Despersonalização na Desindividualização que era a cadeira.
Refletindo sobre minha experiência, vejo-me levado a concordar com o eminente filósofo de Cambridge, dr. C. D. Broad, “que será bom considerarmos, muito mais seriamente do que até então temos feito, o tipo de teoria estabelecida por Bergson, com relação à memória e ao senso de percepção. Segundo ela, a função do cérebro e do sistema nervoso é, principalmente, eliminativa e não produtiva. Cada um de nós é capaz de lembrar-se, a qualquer momento, de tudo o que já ocorreu conosco, bem como de se aperceber de tudo o que está acontecendo em qualquer parte do universo. A função do cérebro e do sistema nervoso é proteger-nos, impedindo que sejamos esmagados e confundidos por essa massa de conhecimentos, na sua maioria inúteis e sem importância, eliminando muita coisa que, de outro modo, deveríamos perceber ou recordar constantemente, e deixando passar apenas aquelas poucas sensações selecionadas que, provavelmente, terão utilidade na prática”.
De acordo com tal teoria, cada um de nós possui, em potencial, a Onisciência. Mas, visto que somos animais, o que mais nos preocupa é viver a todo o custo. Para tornar possível a sobrevivência biológica, a torrente da Onisciência tem de passar pelo estrangulamento da válvula redutora que são nosso cérebro e sistema nervoso. O que consegue coar-se através desse crivo é um minguado fio de conhecimento que nos auxilia a conservar a vida na superfície deste singular planeta. Para formular e exprimir o conteúdo dessa sabedoria limitada, o homem inventou, e aperfeiçoa incessantemente, esses sistemas de símbolos com suas filosofias implícitas a que chamamos idiomas. Cada um de nós é, a um só tempo, beneficiário e vítima da tradição lingüística dentro da qual nasceu — beneficiário, porque a língua nos permite o acesso aos conhecimentos acumulados oriundos da experiência de outras pessoas; vítimas, porque isso nos leva a crer que esse saber limitado é a única sabedoria que está a nosso alcance; e isso subverte nosso senso da realidade, fazendo com que encaremos essa noção como a expressão da verdade e nossas palavras como fatos reais. Aquilo que, na terminologia religiosa, recebe o nome de “este mundo” é apenas o universo do saber reduzido, expresso e como que petrificado pela limitação dos idiomas. Os vários “outros mundos” com os quais os seres humanos entram esporadicamente em contato não passam, na verdade, de outros tantos elementos componentes da ampla sabedoria inerente à Onisciência. A maioria das pessoas, durante a maior parte do tempo, só toma conhecimento daquilo que passa através da válvula de redução e que é considerado genuinamente real pelo idioma de cada um. No entanto, certas pessoas parecem ter nascido com uma espécie de desvio que invalida essa válvula redutora. Em outras, o desvio pode surgir em caráter temporário, seja espontaneamente, seja como resultado de “exercícios espirituais” voluntários, do hipnotismo ou da ingestão de drogas. Mas o fluxo de sensações que percorre esse desvio, seja ele permanente ou temporário, não é suficiente para que alguém se aperceba “de tudo o que esteja ocorrendo em qualquer lugar do universo” (uma vez que o desvio não destrói a válvula de redução, que ainda impede que se escoe por ela toda a torrente da Onisciência), embora possibilite a passagem de algo mais — e sobretudo diferente — do que aquelas sensações utilitárias, cuidadosamente selecionadas, que a estreiteza de nossas mentes considera uma imagem completa (ou, no mínimo, suficiente) da realidade.
O cérebro é dotado de um certo número de sistemas enzimáticos que servem para coordenar seu funcionamento. Algumas dessas enzimas visam a regular o fluxo de glicose destinado a alimentar as células cerebrais. A mescalina, inibindo a produção dessas enzimas, diminui a quantidade de glicose à disposição de um órgão que tem uma fome constante de açúcar. E o que acontece quando o metabolismo do açúcar no cérebro é reduzido pela mescalina? O número de casos observados é diminuto e, pois, ainda não nos é possível apresentar uma resposta conclusiva. Mas o que tem acontecido à maioria daqueles que tomaram o alcalóide, sob controle, pode ser assim resumido:
1. A capacidade de lembrar-se e de raciocinar corretamente não sofre redução perceptível. (Ouvindo os registros de minha conversação, quando sob o efeito da droga, nada me leva a concluir que estivesse mais estulto do que sou sob condições normais.)
2. As impressões visuais tornam-se grandemente intensificadas e o olho recupera um pouco da inocente percepção da infância, quando o senso não se achava direta e automaticamente subordinado à concepção. O interesse pelo espaço diminui e a importância do tempo cai quase a zero.
3. Embora o intelecto nada sofra e a percepção seja grandemente aumentada, a vontade experimenta uma grande transformação para pior. O indivíduo que ingere mescalina não vê razão para fazer seja o que for, e considera profundamente injustificável a maioria das causas que, em circunstâncias normais, seriam suficientes para motivá-lo e fazê-lo agir. Elas não o preocuparão, pela simples razão de ter ele melhores coisas em que pensar.
4. Essas melhores coisas podem ser experimentadas (tal qual se deu comigo) lá fora, aqui dentro ou em ambos os mundos — o interior e o exterior, simultânea ou sucessivamente. Que elas são melhores, isso parece axiomático a quem quer que tome mescalina, desde que possua um fígado são e uma mente isenta de angústias.
Esses efeitos da mescalina constituem o tipo de reação que se poderia esperar de uma droga com o poder de reduzir a eficiência da válvula redutora que é o cérebro. Quando esse órgão é atingido pela carência de açúcar, o subnutrido ego se enfraquece, já não mais se pode permitir empreender suas tarefas rotineiras e perde todo o interesse por essas relações de tempo e espaço que possuem tão grande valor para um organismo preocupado com a vida neste mundo. Assim que a Onisciência vence a barreira daquela válvula, começam a ocorrer todas as espécies de fatos desprovidos de utilidade biológica. Em certos casos, poderão dar-se percepções extra-sensoriais. Outras pessoas podem descobrir um mundo de visionária beleza. Ainda outras têm a revelação da glória, do infinito valor e da significação da existência primeva, do fato objetivo e não conceituado. No estágio final da despersonalização há uma “obscura noção” de que Tudo está em todas as coisas — de que Tudo é, em verdade, cada coisa. Isso é, no meu entender, o máximo a que uma mente finita pode alcançar em “aperceber-se de tudo o que está acontecendo em qualquer parte do universo”.
A esse respeito, quão significativa é a enorme ampliação da percepção das cores sob o efeito da mescalina! Para certos animais, a capacidade de distinguir determinados matizes possui grande importância biológica. Mas, além dos limites de seu espectro utilitário, a maior parte dos seres vivos apresenta completa insensibilidade às cores. Assim as abelhas, que consomem quase todo o seu tempo “desflorando as frescas virgens da primavera”, só conseguem distinguir umas poucas cores, conforme Von Frisch o demonstrou. A grande percepção às cores de que o olho humano é capaz é um luxo biológico — inestimavelmente precioso para nós, como seres intelectuais e espirituais, mas desnecessário à nossa sobrevivência como animais. A julgar pelos adjetivos que Homero lhes pôs nas bocas, os heróis da Guerra de Tróia mal ultrapassavam as abelhas em sua capacidade para distinguir cores. Ao menos sob esse aspecto, o progresso da humanidade tem sido prodigioso.
A mescalina aviva consideravelmente a percepção de todas as cores e torna o paciente apto a distinguir as mais sutis diferenças de matiz que, sob condições normais, ser-lhe-iam totalmente imperceptíveis. Poder-se-ia dizer que, para a Onisciência, os chamados caracteres secundários das coisas seriam os principais. Contrariamente a Locke, ela consideraria as cores dos objetos como mais importantes e, pois, merecedoras de maior atenção que suas massas, posições e dimensões. Tal como ocorre com os consumidores de mescalina, muitos místicos percebem cores de uma intensidade preternatural, não só em seu mundo interior como também no das coisas objetivas que os rodeiam. Fato idêntico ocorre com os indivíduos suscetíveis a ou que sofrem de psicoses. Há certos médiuns para os quais as revelações que se manifestam, por breves períodos, nos indivíduos que ingerem mescalina são uma experiência diária, de todas as horas, por longos espaços de tempo.
Podemos agora, após esta longa mas indispensável excursão ao reino da teoria, voltar àquela maravilhosa realidade — quatro pés de cadeira, de bambu, no meio de uma sala. Quais narcisos silvestres de Wordsworth, eles me proporcionaram toda sorte de riquezas — a inestimável dádiva de uma concepção nova e direta da verdadeira Natureza das Coisas, bem como um tesouro mais modesto, sob a forma de compreensão, particularmente no campo das artes.
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l. A esse respeito, veja-se: l. HOFFER, Abram; OSMOND, Humphry; SMYTHIES, John. “Schizophrenia: a new approach”. Journal of Mental Science, 100(418), jan. 1954. 2. OSMOND, Humphry. “On being mad”. Saskatchewan Psychiatric Services Journal, 1(2), set. 1952. 3. SMYTHIES, John. “Schizophrenia: a new approach”. Journal of Mental Science, 98, abr. 1952. 4. SMYTHIES, John. “The mescalin phe-nomena”. The British Journal for the Philosophy of Science, 3, fev. 1953. Numerosos outros artigos sobre bioquímica, farmacologia, psicologia e neurofisiologia da esquizofrenia e dos efeitos da mescalina estão em preparação.
2. Pseudônimo literário de George William Russell (1867-1935), poeta e pintor irlandês.
por Aldous Huxley
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