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Os Enfeitiçamentos – Dogma e Ritual da Alta Magia

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16 – Q

FONS – OCULUS – FULGUR

O homem que olha uma mulher com um desejo impuro, profana esta mulher, disse o grande Mestre. O que se quer com perseverança, se faz. Toda vontade real se confirma por atos; toda vontade confirmada por um ato é uma ação. Toda ação é submetida a um juízo e este juízo é eterno. São dogmas e princípios.

Conforme estes princípios e estes dogmas, o bem e o mal que desejais, quer a vós mesmos, quer aos outros, na extensão do vosso querer e na esfera de vossa ação, virá infalivelmente, quer aos outros, quer a vós, se confirmardes a vossa vontade e se fixardes a vossa determinação por atos.

Os atos devem ser análogos à vontade. A vontade de fazer mal ou de fazer – se amar deve ser confirmada, para ser eficaz, por atos de ódio ou de amor.

Tudo o que traz a impressão de uma alma humana pertence a esta alma; tudo aquilo de que o homem se apropriou de um modo qualquer torna – se seu corpo, na acepção mais extensa da palavra, e tudo o que se faz ao corpo de um homem é ressentido, quer mediata, que imediatamente, pela sua alma.

È por isso que toda espécie de ação hostil ao próximo é considerada, pela teologia moral, como um começo de homicídio.

O enfeitiçamento é um homicídio tão covarde que escapa do direito de defesa da vítima e da vingança das leis.
Estabelecido este princípio, para descargo da nossa consciência e advertência dos fracos, afirmamos, sem temor, que o enfeitiçamento é possível.

Vamos mais longe, e afirmamos que não só é possível, mas também é, de algum modo, necessário e fatal. Realiza – se sem cessar, no mundo social, sem conhecimento dos agentes e pacientes. O enfeitiçamento involuntário é um dos mais terríveis perigos da vida humana.

A simpatia passional submete necessariamente o mais ardente desejo à mais forte vontade. As doenças morais são mais contagiosas do que as doenças físicas, e há certo sucesso de predileção e moda, que poderíamos comparar à lepra ou cólera – morbo.

Morremos por um mau conhecimento, como por um contato contagioso, e a horrível doença que, desde alguns séculos somente, na Europa, pune a profanação dos mistérios do amor, é uma revelação das leis analógicas da natureza, e não apresenta ainda mais do que uma imagem fraca das corrupções morais que todos os dias resultam de uma simpatia equívoca.

Falam de um homem ciumento e covarde que, para vingar- se de um rival, infectou a si próprio de um mal incurável e fez dele o flagelo comum e o anátema de um leito partilhado. Esta horrível história é a de todo mago ou antes a de todo feiticeiro que pratica enfeitiçamentos. Ele envenena- se para envenenar, ele aspira o inferno para o respirar, ele fere- se mortalmente para fazer morrer; mas, se tiver a triste coragem de o fazer, é positivo e certo que envenenará e matará unicamente pela projeção da sua perversa vontade.

Podem existir amores que matam tão bem como o ódio, e os enfeitiçamentos da benevolência são a tortura dos maus.

As preces que dirigimos a Deus para a conversão de um homem trazem infelicidade a este homem, se não quiser converter- se. Há, como já o dissemos, fadiga e perigo em lutar contra as correntes fluídicas excitadas por cadeias de vontades unidas.

Há, pois, duas espécies de enfeitiçamentos: o enfeitiçamento involuntário e o enfeitiçamento voluntário. Pode – se também distinguir o enfeitiçamento físico do enfeitiçamento moral.

A força atrai a força, a vida atrai a vida, a saúde atrai a saúde: é uma lei da natureza.

Se duas crianças vivem juntas e, principalmente, se dormem juntas, havendo uma fraca e outra forte, a forte absorverá a fraca, e esta perecerá. É por isso que importa muito que as crianças durmam sempre sós. Nos colégios, certos alunos absorvem a inteligência dos outros alunos e, em todos os círculos de homens, logo se acha um indivíduo que se apodera das vontades dos outros.

O enfeitiçamento por corrente é uma coisa muito comum, como notamos; somos levados pela multidão, no moral como no físico. Mas o que mais particularmente temos de constatar neste capítulo é o poder quase absoluto da vontade humana sobre a determinação dos seus atos e a influência de qualquer demonstração exterior de uma vontade até sobre as coisas exteriores.

Os enfeitiçamentos voluntários são ainda freqüentes nos nossos campos, porque as forças naturais, nas pessoas ignorantes e solitárias, agem sem serem enfraquecidas por nenhuma dúvida ou diversão. Um ódio franco, absoluto e sem mistura alguma de paixão repelida ou cupidez pessoal, é uma sentença de morte para aquele que o seu objeto em certas condições dadas. Digo sem mistura de paixão amorosa ou cupidez, porque um desejo, sendo uma atração, contrabalança e anula a força de projeção.

Assim, por exemplo, um ciumento não enfeitiçará nunca eficazmente seu rival, e um herdeiro cobiçoso não abreviará pelo único fato da sua vontade, os dias de um tio avarento e vivaz.

Os enfeitiçamentos feitos nestas condições recaem naquele que os opera, e são antes salutares do que nocivos à pessoa que é o seu objeto, porque a desembaraçam de uma ação odiosa que destrói a si própria, exaltando – se fora da medida.
A palavra envoûtement , muito enérgica na sua simplicidade gaulesa, exprime admiravelmente a própria coisa que significa: envoûtement , ação de tomar, por assim dizer, e de envolver alguém num voto, numa vontade formulada.
O instrumento do enfeitiçamento não é outro senão o próprio grande agente, que, sob a influência de uma vontade má, se torna, então, real e positivamente o demônio.

O malefício, propriamente dito, isto é, a operação cerimonial com o fim de enfeitiçar, só age sobre a vontade do operador, e serve para fixar e confirmar a sua vontade, formulando -a com perseverança e esforço, duas condições que fazem eficaz a vontade. Quanto mais a operação é difícil ou horrível, tanto mais é eficaz, porque age mais sobre a imaginação, e confirma o esforço em razão direta da resistência.

É o que explica a bizarria e até a atrocidade das operações da magia negra entre os antigos e na Idade Média, as missas do diabo, os sacramentos administrados a répteis, as efusões de sangue, os sacrilégios humanos e outras monstruosidades que são a própria essência e realidade da goecia e da necromancia. São práticas semelhantes que atraíram, em todos os tempos, a justa repressão das leis sobre os feiticeiros. A magia negra é realmente uma combinação de sacrilégios e assassinatos graduados para perverter para sempre uma vontade humana e realizar num homem vivo o fantasma horrendo do demônio. É, pois, propriamente falando, a religião do diabo, o culto das trevas, o ódio do bem levado ao seu paroxismo; é a encarnação da morte e a criação permanente do inferno.

O cabalista Bodin, que pensariam erroneamente ter sido um espírito fraco e supersticioso, não teve outro motivo de escrever a sua Demoniomania senão na necessidade de prevenir os espíritos contra uma muito perigosa incredulidade. Iniciado, pelo estudo da Cabala, aos verdadeiros segredos da magia, estremeceu ao pensar nos perigos a que este poder abandonado à malvadez dos homens exporia a sociedade. Tentou, pois, o que ainda acaba de ensaiar entre nós o senhor Eudes de Mirville; e recolheu fatos sem os explicar, denunciando às ciências desatentas ou preocupadas alhures a existência das influências ocultas das operações criminosas da magia má. Bodin não foi mais ouvido no seu tempo do que será o senhor Eudes de Mirville, porque não basta indicar a sua causa para impressionar os homens sérios; é preciso estudar esta causa, explica – la, provar a sua existência, e é o que procuramos fazer. Teremos melhor sucesso?
Pode- se morrer pelo amor de certos entes como pelo seu ódio: existem paixões absorventes sob cuja aspiração nós nos sentimos desfalecer como as noivas dos vampiros. Não são só os maus que atormentam os bons, mas, por sua vez, os

bons torturam os maus. A docilidade de Abel era um longo e penoso enfeitiçamento para a ferocidade de Caim. O ódio do bem, nos homens maus, procede do próprio instinto da conservação; aliás, negam que os que atormenta seja o bem, e se esforçam para estar tranqüilos, em deificar e justificar o mal. Abel, no entender de Caim era um hipócrita e covarde que desonrava a altivez humana pelas suas submissões escandalosas à divindade. Quanto este primeiro assassino não teve de sofrer antes de se entregar a um espantoso atentado contra seu irmão! Se Abel pudesse tê – lo compreendido, teria ficado atemorizado.

A antipatia outra coisa não é senão o pressentimento de um enfeitiçamento possível, enfeitiçamento que pode ser de amor ou ódio, porque se vê, muitas vezes, o amor suceder à antipatia. A luz astral nos adverte das influências futuras por uma ação sobre o sistema nervoso mais ou menos sensível e mais ou menos viva. As simpatias instantâneas, os amores fulminantes são explosões de luz astral motivadas tão exatamente e não menos matematicamente explicáveis e demonstráveis que as descargas das fortes baterias elétricas. Vemos, por isto,quantos perigos imprevistos ameaçam o profano que se diverte continuamente com o fogo junto a barricas de pólvora que não vê.

Estamos saturados de luz astral e projetamo – la incessantemente para lhe dar lugar e atrair. Os aparelhos nervosos destinados quer à atração, quer à projeção, são particularmente os olhos e as mãos. A popularidade das mãos reside no polegar, e é por isso que, conforme a tradição mágica conservada ainda nos nossos campos, é preciso, quando nos achamos em companhia suspeita, termos o polegar dobrado e escondido na mão, evitando de fixar alguém, procurando, pois, olhar primeiro aqueles dos quais tememos alguma coisa, a fim de evitar projeções fluídicas inesperadas e os olhares fascinadores.

Existem também certos animais, cuja propriedade é romper as correntes de luz astral por uma absorção que lhe é peculiar. Estes animais nos são violentamente antipáticos e tem no olhar alguma coisa fascinadora, tais como o sapo, o basilisco e a toupeira. Aprisionados e levados vivos ou guardados nos quartos que a pessoa habita, garantem -na das alucinações e dos prestígios do embebedamento astral: o embebedamento astral, palavra que escrevemos aqui pela primeira vez e que explica todos os fenômenos das paixões furiosas, das exaltações mentais e da loucura.
Criai sapos e toupeiras, caro senhor, me dirá aqui um discípulo de Voltaire; trazei – os convosco e não escrevais mais. A isto, posso responder que pensarei seriamente no assunto, quando estiver disposto a rir do que ignoro e a tratar de loucos os homens, cuja ciência e sabedoria não entendo.

Paracelso, o maior dos magos cristãos, opunha ao enfeitiçamento as práticas de um enfeitiçamento contrário. Compunha remédios simpáticos e os aplicava não aos membros sofredores, mas sim a representações destes mesmos membros, formadas e consagradas conforme o cerimonial mágico. Os sucessos eram prodigiosos, e nunca médico algum se aproximou das curas maravilhosas de Paracelso.

Mas Paracelso tinha descoberto o magnetismo muito antes de Mesmer, e tinha levado até as suas últimas conseqüências esta descoberta luminosa, ou antes esta iniciação à magia dos antigos, que, mais do que nós, compreendiam o grande agente mágico e não faziam da luz astral, do azoth, da magnésia universal dos sábios, um fluido animal e particular somente emanando de alguns entes especiais.

Na sua filosofia oculta, Paracelso combate a magia cerimonial, de que certamente não ignorava o terrível poder, mas cujas práticas, sem dúvida, quer proibir, a fim de desacreditar a magia negra. Coloca a onipotência do mago no magnes interior e oculto. Os mais hábeis magnetizadores de nossos dias não diriam melhor. Todavia, quer que se empreguem os signos mágicos, e principalmente os talismãs, para cura das doenças. Teremos ocasião de voltar, no nosso décimo oitavo capítulo, aos talismãs de Paracelso, tocando, conforme Gaffarel, na grande questão da iconografia e da numismática ocultas.

Curamos o enfeitiçamento pela substituição, quando é possível, e pela ruptura ou desvio da corrente astral. As tradições dos campos sobre tudo isto são admiráveis e certamente vêm de longe: são restos dos ensinos dos druidas, que tinham sido iniciados nos mistérios do Egito e da Índia pelos hierofantes viajores. Sabem, pois, em magia vulgar, que um enfeitiçamento, isto é, uma vontade determinada e confirmada de fazer mal, obtém sempre seu efeito, e que ela não pode ser retratada sem perigo de morte. O feiticeiro que livra alguém de um encanto dever ter outro objeto da sua malvadez, do contrário é certo que ele próprio será ferido e perecerá vítima dos seus próprios malefícios. O movimento astral sendo circular, toda emissão azótica ou magnética que não acha seu médium , volta com força ao seu ponto de partida: é o que explica uma das mais estranhas histórias de um livro sagrado, a dos demônios enviados aos porcos que se precipitaram no mar. Esta obra de alta iniciação nada mais foi que a ruptura de uma corrente magnética infeccionada por vontades más. Chamo -me legião, dizia a voz instintiva do paciente, porque somos muitos.
As possessões dos demônios nada mais são que enfeitiçamentos, e existe nos nossos dias uma quantidade inumerável de possessos. Um santo religioso que se votou ao serviço do alienados, o irmão Hilário Tissot, chegou, por uma longa

experiência e a prática constante das virtudes cristãs, a curar muitos doentes, praticando, sem sabê- lo, o magnetismo de Paracelso. Atribui a maioria das doenças a desordens da vontade ou à influência perversa de vontades estranhas; considera todos os crimes como atos de loucura, e queria que se tratassem todos os malvados como doentes, em vez de os exasperar e torna – los incuráveis, sob pretexto de os castigar. Quanto tempo passará ainda antes que o pobre irmão Hilário seja reconhecido por um homem de gênio! E quantos homens graves, ao lerem este capítulo, dirão ainda que Hilário Tissot e eu deveríamos tratar- nos mutuamente, conforme as idéias que nos são comuns, evitando bem de publicar as nossas teorias, se não quisermos que nos tomem por médicos dignos de serem enviados aos Incuráveis!
“E contudo gira! ”exclamava Galileu, batendo no chão com os pés. “Conhecereis a verdade, e a verdade vos fará livres ”, disso o Salvador dos homens. Poderíamos acrescentar: Amareis a justiça, e a justiça vos tornará sadios. Um vício é um veneno, até para o corpo; a verdadeira virtude é um penhor de longevidade.

O método dos enfeitiçamentos cerimoniais varia conforme os tempos e as pessoas, e todos os homens artificiosos e dominadores acham em si mesmos seus segredos e sua prática, sem mesmo os calcular exatamente e raciocinar sobre a sua continuidade. Seguem, nesse ponto, as inspirações instintivas do grande agente, que se assimila maravilhosamente, como já dissemos, aos nossos vícios e às nossas virtudes; mas pode – se dizer que, geralmente, estamos submetidos às vontades dos outros pelas analogias das inclinações e, principalmente, dos nossos defeitos. Acariciar as fraquezas de uma individualidade é apoderar- se dela e fazer dela um instrumento na ordem dos mesmos erros e das mesmas depravações. Ora, quando duas naturezas análogas em defeito se subordinam uma à outra, opera- se uma espécie de substituição do mais forte ao mais fraco; é uma verdadeira obsessão de um espírito por outro. Muitas vezes, o fraco se debate e quereria revoltar- se, depois cai mais embaixo na escravidão. É assim que Luiz XIII conspirava contra Richelieu; depois, obtinha de algum modo a sua graça pelo abandono de seus cúmplices.

Todos nós temos um defeito dominante que é, para nossa alma, como que o umbigo do seu nascimento pecador, e é por ele que o inimigo sempre nos pode pegar; a vaidade para uns, a preguiça para outros, o egoísmo para o maior número. Que espírito hábil e mau se apodere desta mola, e estais perdido. Ficais, então, não louco, não idiota, mas positivamente alienado, em toda força desta expressão, isto é, submetido a um impulso estranho. Neste estado, tendes um horror instintivo a tudo o que vos levaria à razão, e até não quereis ouvir as representações contrárias à vossa demência. É uma das doenças mais perigosas que podem afetar o moral humano.

O único remédio contra este enfeitiçamento é apoderar – se da própria loucura para curar a loucura, e fazer o doente achar satisfações imaginárias numa ordem contrária àquela em que se perdeu. Assim, por exemplo, curar um ambicioso fazendo – lhe desejar as glórias do céu, remédio místico; curar um depravado por um verdadeiro amor, remédio natural; obter para um vaidoso, honrosos sucessos; mostrar desinteresse aos avarentos e obter- lhes um justo ganho por participação honrada em empresas generosas, etc.

Reagindo da mesma forma sobre o moral, chegaremos a curar um grande número de doenças físicas, porque o moral influi sobre o físico em virtude do axioma mágico: “O que está em cima é como o que está em baixo ”. É por isso que o Mestre dizia, falando de uma mulher paralítica: “Satã a ligou ”. Uma doença provém sempre de um defeito ou de um excesso, e sempre achareis na origem de um mal físico uma desordem moral: é uma lei invariável da natureza.

Eliphas Levi – Dogma e Ritual da Alta Magia


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