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Corria o ano de 1250. Em Palma, na ilha de Mayorca, Ambrósia, uma dama bela e sábia dirigia-se à igreja. Pela rua passava um cavalheiro de alto porte e ricamente vestido; vê a senhora: pára fulminado. Ela entra no templo …O cavalheiro, transtornado, arremessa seu cavalo e entra atrás dela no meio dos fiéis aterrorizados causando grande rumor. Foi um escândalo. O cavalheiro é o conhecido Senhor Raimundo Lullo, mordomo-mor das ilhas e dono do paço. Ele é casado; tem dois filhos e uma filha. Madame Ambrósia di Castelo também é casada e tem uma reputação sem mancha.
Raimundo Lullo era tido como grande sedutor. Sua entrada eqüestre na igreja de Palma causou grande sensação na cidade. Ambrósia, confusa, consultou o marido que era, sem dúvida, um homem prudente; ele não considerou ofensa a atitude de Lullo, mas elogio à beleza da mulher e aconselhou Ambrósia a curar seu louco adorador pela loucura mesma de que ela era causa. Raimundo Lullo escrevera à senhora para desculpar-se: o que ela lhe inspirava, dizia ele, “era estranho, sobre-humano, fatal; ele respeitava sua honra, sua afeição, que sabia pertencer a outro; mas precisava expressar seu amor, precisava de dedicações, de sacrifícios a fazer, de milagres a realizar, de penitências, das proezas de um cavaleiro errante…”
Ambrósia lhe respondeu: “Para viver um amor que dizeis ser sobre-humano ser-me-ia necessária uma existência imortal. …Dizem existir um elixir da vida. Procurai-o! E quando estiverdes certo de vossa descoberta, vinde ver-me. Até lá vivei para vossa mulher e vossos filhos, como eu viverei para meu marido, que eu amo, e se me encontrardes na rua, não me reconheçais.”
Era uma saída graciosa que mandava o enamorado para as calendas gregas; mas ele não compreendeu assim e a partir daquele dia, o brilhante senhor desapareceu para dar lugar a um sombrio e grave alquimista. Passaram-se anos. A mulher de Raimundo Lullo morreu, Ambrósia di Castelo ficou viúva. O alquimista parecia tê-la esquecido e somente se ocupava da Grande Obra. Um dia, estava a viúva em sua casa quando anunciaram-lhe Raimundo Lullo.
Estava velho, pálido, calvo; trazia um frasco cheio de um elixir vermelho como fogo. Avançou cambaleando, procurando a amada com os olhos. Estava em sua frente mas ele não a reconheceu porque em seu pensamento, ela era sempre moça e bela, como naquele dia, na igreja de Palma.
— Sou eu — ela diz — que deseja?
Ouvindo-lhe a voz, o alquimista estremeceu, reconheceu Ambrósia e, delirante, enxerga a moça de outrora; lançando-se a seus pés, estendeu o frasco:
— Toma — disse ela — bebe, é a vida. Pus aí dentro trinta anos da minha vida mas eu o experimentei, estou certo disso, é o elixir da imortalidade.
— Como o experimentaste? — pergunta Ambrósia com um triste sorriso.
— Há dois meses, depois de ter bebido uma quantidade de elixir igual a esta, abstive-me de todo alimento. A fome torceu-me as entranhas mas não morri e posso dizer que sinto em mim mais vida e mais força que nunca.
— Eu vos creio — disse Ambrósia — mas este elixir que vos conserva a vida não faz voltar a mocidade… Meu pobre amigo, olhai-vos — e apresentou-lhe um espelho.
Raimundo recuou. Nunca, nos últimos trinta anos ele pensara em mirar-se.
— Agora, Raimundo, olhai-me — disse ela — descobrindo seus cabelos brancos. — Depois, desprendendo o alfinete de seu vestido, mostrou-lhe o seio que tinha sido destruído por um cancro. — É isto que quereis imortalizar?… Ouvi-me: há trinta anos que vos amo e não quero condenar-vos à prisão perpétua no corpo de um velho; não me condeneis a isto. Dai-me a graça da morte. Deixa que eu me transforme para reviver, retemperamo-nos na juventude eterna. Eu não quero vosso elixir que prolonga a noite do túmulo; eu aspiro a imortalidade.
Raimundo Lullo lançou ao chão o frasco, que se quebrou.
— Eu vos liberto — disse ele — e fico por vós na prisão. Vivei na imortalidade do céu. Eu estou condenado para sempre à morte viva sobre a Terra.
Escondendo o rosto entre as mãos, ele se retirou banhado em lágrimas. Alguns meses depois, um monge da ordem de São Francisco de Assis assistia Ambrósia di Castelo em seus últimos momentos. Este monge era Raimundo Lullo…
Lenda
A lenda diz que o alquimista viveu ainda muitos séculos em expiação. Nas ocasiões em que deveria naturalmente morrer, o pobre adepto sentia todas as dores da agonia, tinha crises extremas e depois sentia a vida retomá-lo… Ele orava e dedicou sua existência às boas obras. Deus lhe concedia todas as graças exceto a morte. Ele estudava muito: compreendeu o ser e suas harmonias, adivinhou a Cabala, lançou as bases e traçou o plano de uma ciência universal e desde então foi chamado de doutor iluminado.
Ele, que sabia fazer ouro e podia comprar o mundo não tinha direito ao descanso do túmulo. Era o pobre da imortalidade. Por toda parte ele ia mendigando a morte que ninguém podia dar. Resolveu lutar contra o Islamismo e se expor aos fanáticos. Tomou como criado um jovem árabe na frente do qual atacava a doutrina de Maomé. O árabe assassinou seu amo, exatamente como Lullo esperava. Mas ele não morreu. Persistente, foi para Túnis pregar o cristianismo mas o rei, admirando sua ciência e coragem, salvou-o do furor do povo e mandou-o embora com todos os seus livros. O alquimista e missionário cristão Raimundo Lullo esteve outras cidades muçulmanas da África; ninguém ousava pôr as mãos nele.
Regressou então a Túnis e reunindo o povo nas ruas exclamava que fora expulso do país mas voltava para desmascarar os dogmas ímpios de Maomé e morrer por Jesus Cristo. Conseguiu que a turba furiosa o perseguisse. Foi espancado, apedrejado, mas não morria, embora ferido, quebrado. Por fim, as pedras que lhe atiravam cobriram-no completamente. Na noite seguinte, dois negociantes genoveses, navegando junto à costa de Túnis, viram uma grande luz que se elevava próxima ao porto. Foram até o lugar e encontraram um monte de pedras de onde saíam os raios da esplendorosa luz. Removendo as pedras, encontraram Lullo, quebrado e vivo. Embarcaram-no em seu navio e o levaram até Mayorca, sua pátria. Ao avistar a ilha, o mártir expirou. Deus o libertava, a penitência terminava.
História
Raimundo Lullo, o filósofo e adepto que morreu sendo considerado “Doutor Iluminado” era, na verdade, filho deste Senhor de Mayorca que ficou célebre por sua paixão por Ambrósia di Castelo. O Raimundo Lullo alquimista não compôs o elixir da imortalidade mas foi aquele que produziu ouro para o rei Eduardo III, da Inglaterra. Este ouro foi chamado ouro de Raimundo e existem ainda moedas, muito raras, conhecidas como raimundinas. Sobre Raimundo Lullo, L. Figuier escreveu em seu Doctrines et Travaux des Alchimistes:
“Raimundo Lullo, foi um gênio que alcançou todos os ramos dos conhecimentos humanos, como exposto em seu livro Ars Magna – Magna Arte. …Ele aperfeiçoou e descreveu com cuidado diversos compostos que estão muito em uso na química. A ele devemos a preparação do carbonato de potássio por meio do tártaro e por meio das cinzas de lenha, a retificação do espírito do vinho, a preparação dos óleos essenciais, a purificação da prata e a preparação do mercúrio doce.”
Raimundo Lullo encerrou em seu testamento filosófico todos os princípios desta ciência [química] mas de um modo velado, como era uso e dever de todos os adeptos. Este estudioso foi o primeiro iniciado depois de São João que se dedicou ao apostolado hierárquico da santa ortodoxia. Toda a sua vida foi dedicada a fundações pias e aos trabalhos científicos. Em 1276, fundou em Roma um colégio de franciscanos onde era ensinada a língua árabe, com o propósito de refutar os livros dos doutores mamometanos e de pregar aos mouros a fé cristã. João XXI confirmou esta instituição, o colégio, no primeiro ano de seu pontificado.
Entre os anos de 1293 e 1311, ele solicitou e obteve do Papa Nicolau IV e dos reis de França, Sicília, Chipre e Mayorca o estabelecimento de muitos colégios para o estudo de línguas. Por toda parte ensinou sua grande arte, que é uma síntese universal dos conhecimentos humanos e tem por objetivo estabelecer entre os homens uma só língua… Na Espanha, em Compluto, fundou uma academia para estudo de línguas e ciências. Reformou muitos conventos, viajou pela Itália recrutando soldados para uma nova ordem militar.
Raimundo Lullo morreu em 1314 ou 1315 aos oitenta anos, segundo Genebard. Discípulo dos grandes cabalistas, ele queria estabelecer uma filosofia universal universal e absoluta. Queria substituir as abstrações convencionais, os termos ambígüos da escolástica por um verbo simples, popular. …Raimundo Lullo define as coisas pelo seu nome mesmo e não por sinônimos; depois, explica os nomes pela etimologia.
À pergunta: “Que é o homem?” – Responderá: esta palavra tomada na acepção geral significa a condição humana; tomada numa acepção particular, designa a pessoa humana. Mas, que é a pessoa humana? Originariamente é a pessoa que Deus fez dando um sopro de vida a um corpo tirado da terra – ou humus. …As pessoas habituadas aos termos científicos dirão que qualquer um poderia dizer o mesmo que diz o doutor iluminado; que ele raciocina como uma criança; que com esse método todo mundo seria sábio e que se preferiria o bom senso da gente do povo à doutrina dos acadêmicos. “É isso que eu quero” – diria simplesmente Raimundo Lullo.
[A teoria de Lullo pode ser classificada de pueril, infantil, tão pueril quanto a moral daquele que disse: “Se não vos tornardes como crianças não entrareis no Reino dos Céus”.] Raimundo Lullo queria opor a Cabala tornada cristã à magia fatalista dos árabes, às tradições do Egito e da Índia, opor a magia da luz à magia das trevas. Ele dizia que nos últimos tempos, as doutrinas do Anticristo seriam de um realismo materializado e que então ressuscitariam todas as monstruosidades da magia má…
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