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Realismo Fantástico

Canibalismo nu, cru, cozido e ensopado

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Este texto foi lambido por 61 almas essa semana.

O texto que segue trata-se de um verdadeiro “manifesto canibal” e é parte de um material recebido pela Morte Súbita Inc. no início de outubro de 1999, além da carta outros documentos traziam relatos de pessoas que supostamente eram adeptas do consumo de carne humana.

Assim como o clube dos Apreciadores do Assassinato descrito por Quincey e a Murders Inc. americana, este grupo parece se reunir ou ao menos possuir uma rede de comunicação onde trocam impressões sobre o que é citado como “o ritual”. A diferença entre esse grupo em especial e os supracitados é que este é um grupo brasileiro. Vale ressaltar que pesquisas da nossa equipe não encontraram quaisquer fatos que comprovem a real existência deste grupo.

Do Canibalismo digno enquanto Ritual

E assim, tudo ficou claro novamente. É sempre dessa forma que acontece. A convivência demasiada com seres humanos e suas mesquinharias acaba deixando o mundo ao meu redor cada dia mais insuportavelmente obscuro. Engana-se quem pensa que refiro-me à minha sina, quem espera que eu descreva como suporto bravamente o insuportável dia após dia.  Não, meus senhores. Este texto trata exatamente do oposto. Nele, falo do meu prazer, do meu ritual. Trato desse assunto como poucos, com a importância e o respeito que merece. Que eu mereço. E eu mereço uma boa refeição.

Sobre a indignidade da alimentação exofágica

Observo as pessoas em sua grande maioria. Sim, preciso falar dessas pessoas, peço licença aos senhores para discorrer brevemente sobre elas antes de entrar no meu precioso assunto. Como é bom assistir esses tolos intoxicando-se. A hora do almoço e a hora do jantar. Seus pequenos lanches fúteis. É tempo de descanso, são pausas dignas do trabalhador antes de voltar à lida e depois de um árduo dia de trabalho. E o que essa raça faz com esse tempo?

Engole vorazmente as piores espécies de tranqueiras enquanto conversam com pessoas que não suportam, assuntos que desprezam. Olho para aquele talher infectado entrando e saindo daquela boca que não espera o conteúdo ser completamente mastigado e engolido para voltar a movimentar sua língua opaca de consistência e cheiro repugnantes  a fim de que sua voz torne-se novamente ouvida por seus companheiros de mesa que repetem exatamente a mesma atitude ao mesmo tempo. Uma interrompe a outra e ouve-se  o tempo todo mais de uma voz, uma em cima da outra e todas derramando o conteúdo da cavidade que forma a primeira parte do aparelho digestivo.  Reparo também na louça. Louça digna de porcos. Reaproveitada infinitas vezes por todos os tipos de pessoas. E muitos se sujeitam ainda ao aparelho de jantar que consiste em uma embalagem de papelão e um guardanapo cuja serventia é abrigar aquele conteúdo infecto, até que este se esgote.

Já pensaram a que se deve tamanha falta de respeito com os próprios corpo e alma?

Envenenam-se com carnes  inferiores, legumes nocivos, substâncias químicas fétidas e tudo regado a diálogos com teor invejoso, perverso ou no mínimo, assuntos completamente irrelevantes. Muitos fazem questão de gastar e investir na aparência externa, sustentam um status de sucesso. A cada dia apenas confirmam minhas suspeitas de que o fazem por se envergonhar de seu interior.

Não se importam  com o que lhes toca a língua, gasta os dentes, é empurrado garganta abaixo, digerido, excretado. Desrespeitam total e completamente o aparelho digestor, todos os dias, mais de uma vez, colocam-no totalmente à disposição de um conteúdo que me recuso a chamar de alimento. Buscam apenas encher o estômago para que a sensação de fome deixe de ser um incômodo. Não saciam aquilo que desperta nossos sentidos, apenas se entorpecem para que deixem de se sentir incomodados.  E disso é composta a mesquinharia que me sufoca. A massa humana que não se dá o devido valor. Não valoriza o organismo perfeito que generosamente lhe fora dado.  Essas pessoas estão involuindo.  Tornam-se a cada dia, mais similares aos animais que insistem em fazer de combustível que os mantém vivos. Fico feliz que queiram se mater vivos.  Esquecem-se de suas origens, deturpam seus costumes. Sim, estou com o pensamento egoísta que quer carne fresca transitando por ai tempo à perder de vista. Tempo que com a ajuda da procriação descontrolada a torna infinita. Carne fresca infinita para aqueles que sabem apreciar.

O que me preocupa é a qualidade. Acredito que os reflexos desta alimentação infame sejam sentidos não apenas nas mentes, mas a longo prazo, na qualidade genética e na própria carne humana.

Sobre a sistemática conspiração contra a Antropofagia

Retomo assim meu tema, meu ritual, meu conforto, meu retorno ao sagrado, o momento em que tudo volta a possuir clareza.

A qualidade da carne humana me preocupa. A qualidade do meu alimento me preocupa, não me alimento todos os dias. Lamento muito que as coisas tenham tomado esse rumo. Não acredito que todos mereçam o ritual, mas gostaria que fosse diferente. Não escondo que me divirto com esses seres infelizes, alienados, guiados pela ignorância, mas gostaria sim, que essa raça se elevasse e a sociedade finalmente encontrasse seu equilíbrio.

A iluminação de todos está justamente naquilo que desprezam. Desprezam, pois não atingiram a iluminação. O círculo vicioso, a mediocridade viciosa.

Estão presos. Foram fisgados pelos nobres parasitas. Poucos conseguem transcender essa moral imposta sem ajuda externa. Os interesses da minoria foram tão bem protegidos, que o preconceito ao canibalismo  impregnou-se no DNA humano. É preciso libertar-se.

O parasita alimenta-se do seu hospedeiro, mas é necessário cautela. Suga o suficiente para manter-se vivo, sem lhe retirar totalmente o alimento. Se isso acontecer, mata sua fonte, consequentemente, bebe do cálice amargo da morte. É assim que a maioria dos seres humanos vêm sendo manipulada há séculos.

Fizeram leis. o ritual é considerado crime de mutilação e profanação de cadáver. Tornaram-no imoral aos olhos da sociedade, implantaram a idéia de ser um um ato repugnante e de desrespeito ao ser humano.

Sobre a qualidade da carne humana

Porém,  meus senhores, os homens que estão na posição de comando, aqueles que de fato tem poder, alimentam-se todos os dias.  Diferente da maioria das pessoas, são muito bem nutridos de alimento da maior qualidade. Refiro-me a senhoras e senhores que apreciam a arte de se alimentar. Fazem questão dos melhores cortes, da carne mais apropriada, da bebida perfeita e obviamente, da louça mais sofisticada.

Faço questão como eles, porém, não posso me dar ao luxo de fazê-lo todos os dias. Não possuo troupeau1 como eles supostamente possuem. São apenas rumores, não tenho conhecimento de provas da existência de tal acordo, porém, adoro pensar nisso. Reflito em êxtase sobre cada detalhe. Cada indivíduo ansioso com a certeza do dia que estará lá; bela; fatiada. O corpo decorado com as mais requintadas iguarias, na melhor porcelana. Espetada pelo talher reluzente segurado pelas mãos generosas do seu senhor. Entrando boca a dentro, tendo sua carne triturada pelos dentes saudáveis, tocando a língua de cor forte, treinada a lidar com o alimento de primeira, descendo garganta abaixo, suavemente. Cumprindo seu propósito no ato íntimo, puro. Passando a viver eternamente a partir daquele ser vivo que tanto adora. É o ápice de suas vidas.

Nada pode ser menor. Têm que garantir a satisfação plena para seus senhores. Passam a vida alimentando-se de nutrientes energéticos e água, além dos chás preparados com ervas especiais que previnem de doenças e melhora o funcionamento do organismo. É obrigatório também a ingestão de uma certa quantidade de canela por semana. A canela altera o gosto do sangue e dos tecidos.  Quem não possui paladar sofisticado provavelmente não nota a diferença, mas para os apreciadores desta arte, a canela faz a diferença. Não fazem exercícios físicos em demasia, pois os músculos definidos e desprovidos de gordura não possuem consistência nem sabor agradáveis. O exercício porém é indispensável para manter o corpo sadio e o cérebro funcionando na melhor forma. Gourmets especialistas em cérebros humanos defendem a tese de que o sedentarismo prejudica a consistência e o sabor do cérebro.

Do canibalismo historicamente intrínseco da humanidade

O canibalismo corre em nossas veias. Nossos ancestrais eram canibais. Eram sábios. Tinham também, a alimentação como ritual.

Uma fogueira, um caldeirão, pedaços grosseiros de carne humana  jogados na água fervente, música e dança.  Era assim que o realizavam. Essa imagem se instala na cabeça das pessoas como negativa e as fazem ter asco do único alimento perfeito. O ritual evoluiu. Os cortes e modos de preparo ficaram sofisticados, a estética não mais assusta. É como todos os costumes da humanidade.  Porém, somado a essa estética antiga que causa repulsa, os homens do controle usam inúmeras inverdades para manter o ritual longe das massas. Inverdades que não esquecem de reafirmar o tempo todo, de todas as formas. Desde canibais serem necessariamente assassinos ( qurem uma vulgarização mais grosseira do que o canibal que ficou famoso nos cinemas, protagonizado por Anthony Hopkins? ), a ligar diversas doenças ao ato e até mesmo negar a o fato dos australopitecos serem ancestrais da raça humana.  No nosso mundo, os valores estão ivertidos. Não só nesse, como em muitos outros campos. O valor da morte por exemplo. A morte passou a ser demérito.  Campbell em ” O poder do mito” cita uma espécie de jogo maia, onde o capitão da equipe vencedora tinha a cabeça decepada pelo da equipe perdedora.  “Nesse ritual maia, o jogo consiste em tornar-se merecedor de ser sacrificado com um deus.” Os ganhadores de hoje, são os sobreviventes. São aqueles que ganham a maldição de vagar mais tempo no vazio de suas existências.

A evolução da humanidade, assim como os verdadeiros valores,  passou a ser exclusiva para os poderosos, assim, esses a manipulam com menos dificuldade . Enterrar os mortos é mais um exemplo do que digo. É a perda da praticidade. Há cerca de 40.000 anos, a tendência religiosa trouxe consigo a necessidade do culto. As comunidades primitivas , peninsulares e agropastoris, cultuavam a fertilidade e a agricultura. Passaram então a alimentar o solo com a carne de seus iguais, pois acreditavam que a carne superior traria fertilidade à terra, tornaria seus alimentos superiores. Sutilmente, o telefone-sem-fio de nossa história, ignora o culto ao solo, ao auto desenvolvimento, e adota o culto aos mortos como origem do costume de enterrar parentes e amigos mortos.  A superioridade da carne dos entes queridos é substituída pelos espíritos  destes. Como podemos chamar de homenagem aos mortos, deixá-los apodrecendo, servindo de comida para vermes? Os senhores conseguem ver algum sentido nas terras devastadas para tornarem-se abrigo de defuntos? Nos esquecemos daquilo que poucos parecem se lembrar hoje. Os nativos americanos ainda se lembram das histórias antigas onde jovens ornados de plumas verdes eram enterrados para que surgisse alimento para a tribo, ou as lendas polinésias onde o homem emplumado surge para uma garota e lhe diz como deverá ser morto, decaptado e ter sua cabeça enterrada para então surgir árvores com frutos para todos. O milho e o coco, na América e na Polinésia, respectivamente, eram enriquecidos com a carne daqueles que se sobressaíam dentre os irmãos e irmãs tribais, os alimentos que fizeram o homem deixar de se comportar como um animal para se organizar em sociedades.

Sobre a dignidade dos falecidos entes queridos

Não entendo por que deixam de homenagear os queridos parentes e amigos revivendo-os dentro de si, alimentando-se deles, dando-os a última honra de nutrirem àqueles a quem amaram ao invés de vermes. E as flores? Que raio de gente coloca flores em cima de uma moradia eterna? As flores murcham rápido. As flores morrem junto com o morto.  Apodrecem como o corpo na terra. Acredito que os senhores concordam comigo. Acredito no bom senso. A não ser que sejam comerciantes da morte. Sim, caso meus caros senhores estejam ligados a esse comércio, certamente julgam-me desprovida de senso. O comércio da morte alimenta hospitais, funerárias, cemitérios, floriculturas. Todos que estão ligados beneficiam-se da dor da perda. Acabar com esse comércio significaria uma grande crise na economia mundial.  É imoral, mas, defendo. Não são meus queridos mesmo.

Meus queridos eu trato de forma diferente. Jamais conseguiria conviver com a idéia da carne que eu amo apodrecendo. Foi com muitas lágrimas que devorei quem eu mais amei e assim será com os próximos. Lágrimas de saudade, de respeito, de culto. Minha ultima homenagem aos meus queridos. Mesmo os que não amei vivos, os que não conhecia, quando compõem, junto ao melhor vinho e a melhor louça, meu banquete divino, são amados. Profundamente amados, desde o corte até a excreção. É com amor que sinto o gosto sublime e ímpar que cada um possui. É com amor que sinto a consistência perfeita, que sinto a carne partindo-se nos meus dentes, acariciando minha língua, descendo suave pela minha garganta; os recebo com muito amor em meu sistema digestivo perfeito. E assim, tudo fica claro novamente. É a clareza de minhas vistas e de meu espírito. É a paz. O momento único que torna-se eterno em segundos.

Da diferença entre crime e ritual

Não se confunda canibalismo com homicídio. Não podemos sujár o ritual com coisas pequenas. Não pode ser vício nem costume. Nunca entreguei-me a nada disso. Entregar-se a essas coisas, diminue o ritual e muda o foco. Já vi pessoas grandes e nutridas caírem por causa de tais domínios. O foco deixou de ser o ritual para tornar-se o assassinato. Adquirir o alimento tornou-se mais importante que alimentar-se. O assassinato é coisa de animais. Ai está a ironia. O consumo de animais nos torna como animais. Nos torna assassinos. O consumo leviano de carne humana nos leva ao assassinato tal e qual. Não existe lugar dentre os puros para desajustados, são como cães que sobem à cata de restos de carne na mesa de seus senhores, e como tais devem ser tratados e punidos. Nós, seres evoluídos, temos uma responsabilidade muito grande. Não somos compreendidos, temos todas as desculpas, mas não podemos fraquejar, não somos como nossos rebanhos. A continuidade da raça sublime depende de nós. Nosso alimento nos garente a sobriedade e a clareza. Assim, seguiremos nessa sociedade em minoria. Menos predadores do que presas. Presas que cada dia tornam-se mais inferiores. Até quando serão o alimento perfeito? Os senhores sabem o quanto essa questão me preocupa: quanto tempo até que a degradação de nosso alimento nos leve a olhar uns para os outros quando necessitarmos de bálsamo para a alma. Até quando essa raça involuída viverá seus cotidianos medíocres, usando falsos valores e pequenas esmolas que chamam de luxo para encobrir o vazio de suas almas, a ausência de sentido em suas vidas e a podridão que habita seus organismos? Até quando, não sei. Provavelmente sempre. Provavelmente até o dia de virar alimento. De vermes ou de homens.

Senhores, está tudo claro. Estou no meu momento. A lucidez de meu ritual  fez com que eu consguisse discorrer sobre meu assunto. Não os julgo dignos dele. Não os julgo dignos de compartilhar meus momentos, minha grandeza ou minha sabedoria. Não estou tornando isso público por piedade, ou para sentir-me caridosa. Torno meu texto público, por julgá-los incapazes de compreendê-lo.  Liberto assim, a minha paz interna.

Marrie Della’rubra

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