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Demônios e Anjos

Falando no Diabo…

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…ele aparece em novos filmes, livros e até “provoca” um aumento nos rituais de exorcismo

“Comando a te, chiunque é, chiunque sia, spirito immondo, di andartene da quest’anima di Dio.” (“Te ordeno, quem quer que seja, seja quem for, espírito imundo, ir embora desta alma de Deus”).

Foi com essa prece que o papa João Paulo 2º tentou aliviar o sofrimento de uma jovem de 19 anos, que se debatia gritando insultos numa voz gutural.

O incidente aconteceu há um mês, na praça São Pedro, em Roma. Avisado sobre um princípio de tumulto, o papa interrompeu uma audiência e foi ao encontro da moça de Monza (norte da Itália), que era segurada pelos guardas exibindo uma força, segundo testemunhas, “sobrenatural”.

O pontífice não hesitou. Levou-a até uma área isolada da multidão e, por duas horas, orou sobre ela. Quando João Paulo 2º deixava o local, ouviu-se uma voz que o desafiava, zombando do seu suposto poder espiritual: “Nem mesmo o chefe (da Igreja) pode me mandar embora.” Foi a terceira vez, em 22 anos, que o papa participou de um exorcismo Äas outras foram em 1978 e 82.

O fato ganhou destaque nos jornais italianos, foi difundido pelas agências internacionais até chegar às páginas da revista “Time” na última semana.

O interesse pelo ocorrido deve-se, em muito, à sua semelhança com o enredo do filme “O Exorcista”, de William Friedkin, no qual uma menina de 12 anos possuída pelo demônio mede forças com um padre católico.

O filme, de 1973, acaba de ser relançado nos EUA em cópia nova, com 11 minutos a mais. No primeiro final de semana de exibição, ocupou 684 salas e arrecadou US$ 8,5 milhões, segunda maior bilheteria de um relançamento na história, só perdendo para “Guerra nas Estrelas”.

Best-seller à vista No Brasil, a “moda” do diabo ganha um reforço de peso nesta semana com o lançamento de “O Demônio e a Srta. Prym”, novo livro de Paulo Coelho.”São 210 mil exemplares na primeira edição, o que é recorde no mercado brasileiro. E haverá lançamento simultâneo na Itália e em Portugal.

O livro fala do confronto entre o bem e o mal por meio da história de um lugarejo esquecido, que é visitado e “tentado” por um estrangeiro, mensageiro do diabo. Em troca de barras de ouro, os habitantes da aldeia precisam desobedecer um mandamento de Deus, o “não matarás”.

Durante a narrativa, Paulo Coelho desenvolve a idéia de que “cada um leva o demônio dentro de si”, mas que ele “só vem à luz quando o indivíduo se dispõe a escutar a sua voz”.

Católico fervoroso, Coelho, 53, acredita na existência do diabo, “mas não aquele com chifrinhos e rabo”. Para ele, o pior demônio é o “criado pelo próprio homem”. “É o demônio artifical, que só tem poder quando lhe é dado pelo próprio homem por meio do pensamento negativo e da amargura”, diz.

O escritor afirma que chegou a pisar neste “terreno tenebroso”, habitado pelo demônio. “Foi no início dos anos 70. Era um grupo sem ética alguma e cheguei a colocar de sua filosofia em algumas letras em parceira com Raul Seixas, como “Sociedade Alternativa’.”

No final da letra, ele cita o britânico Aleister Crowley (1875-1947), considerado por seus seguidores um dos maiores místicos do século 20 -e, por seus detratores, um charlatão aproveitador. Sua prática era baseada no amor livre, no hedonismo e no uso de drogas.

O escritor conta que por três anos esteve envolvido com a “doutrina Crowley” -que se auto-intitulava “”A Grande Besta 666” e “”O Homem Mais Depravado do Mundo”- e que só se livrou por completo de sua influência após sete anos. “Perdi a fé, afastei-em dos meus ideais. Foi doloroso, mas não foi eterno”, lembra.

Hoje, quase 30 anos depois, com o demônio estampado na capa do livro, Coelho espera ampliar sua legião de leitores em todo o mundo. Até agora são 29 milhões de livros vendidos, em 140 países, em 47 idiomas.

Na vida real Eficiente fabricante de best-sellers, Coelho parece ter farejado o interesse crescente pelo “capeta”. Em entrevista por telefone à Revista, de Roma, o padre Gabriele Amorth, 74, presidente da Associação Internacional dos Exorcistas, disse que o número de casos de “possessões” aumentou a tal ponto que o Vaticano, temendo uma “onda” de exorcismos, recomendou mais cautela aos padres na detecção de novos casos.

Padre Gabriele, que tem no currículo 50 mil exorcismos em 14 anos de atividade, testemunhou o encontro do papa com a garota e garante que ela está mesmo possuída.

“Eu havia exorcizado a moça um dia antes do papa. É pueril dizer que João Paulo 2º não conseguiu libertá-la. Um exorcismo desse tipo leva no mínimo quatro anos”, diz o padre, que todas as segundas, das 18h30 às 19h30, realiza sessões de exorcismo por telefone, direto de sua casa, na Itália.

Após o incidente, padre Gabriele conta que se reuniu com os bispos do Vaticano para obrigar a “possuída” a comparecer a sessões periódicas de exorcismo. Hoje, a moça limita-se aos estudos. “Ela é pura e bonita quando não está possuída. É muito triste vê-la sofrendo assim, toda contraída e se retorcendo”, diz o padre.

No Brasil, apesar de ser prática comum nas igrejas evangélias não-pentecostais, há controvérsias sobre o exorcismo dentro da Igreja Católica, aceito e praticado por alguns integrantes, rejeitado e desacreditado por outros.

O padre exorcista Samuel Ferreira do Carmo, 66, da Congregação do Verbo Divino, de Brasília (DF) conta que, em dois anos, encontrou apenas dois casos que pareciam mesmo “obra do capeta”. “Raríssimos casos são realmente o demônio. As pessoas acabam atribuindo a ele problemas de fraqueza e mentais”, diz Samuel.

Alma albergue Mas por que essa “onda demoníaca”? Paulo Coelho acha que “o demônio, aquele que mora nos detalhes, sempre esteve vivo”. “Às vezes, sinto que a sociedade está impondo regras que não são necessariamente éticas. O que discuto no livro é onde está o meu limite de ação sem que prejudique o outro”, diz o escritor.

O padre-exorcista Gabriele acredita que a fé das pessoas está diminuindo. “Assim sendo, elas se entregam ao ocultismo”, diz.

Mais cético, o filósofo Mario Sergio Cortella, 46, professor da PUC-SP, o demônio resiste na moda porque a ciência ainda não é capaz de explicar tudo. “A ciência prometeu resolver todos os problemas da humanidade e não cumpriu. Quanto maior o avanço científico, mais as angústias aumentam”, acredita o filósofo.

Do ponto de vista psicanalítico, Rubem Alves, 66, professor emérito da Unicamp, diz que a alma humana é um albergue, onde moram as entidades mais distintas. “A crença na existência externa dos demônios ajuda as pessoas a se livrarem da culpa e da feiura. Todo demônio é feio.”

Também para Alves, os demônios sempre estiveram na moda. Só que não tinham visibilidade na mídia. “Os profissionais das imagens, descobriram que, sendo os demônios entidades que assombram, se constituem em objetos de arte. Eles têm a mesma realidade metafísica do Super-Homem, do Batman, do Flash Gordon.”

Nas religiões

A figura do diabo aparece em todas as religiões ocidentais e em algumas orientais, como as politeístas da Índia, da China, do Paquistão e do Iraque, além de religiões ancestrais do Japão.

Na Idade Média, o combate à magia acabou “refugiando” alguns demônios entre os muçulmanos.
“Sem o diabo, não há Deus”, diz professor de sociologia da USP Lisias Nogueira Negrão, 55, especialista em religião. Segundo ele, a noção do demônio foi criada nas religiões ocidentais moralizadas para que se contraponha ao bem.

Para os judeus, os demônios são agentes divinos que contrabalançam os anjos, conscientizando o homem do bem e do mal. “A demonologia não é um elemento intrínseco da religião judaica. É algo que pertence mais ao campo da superstição popular e que se desenvolveu em contato com outras culturas”, explica o rabino Henry Sobel, presidente do Rabinato da Congregação Israelita Paulista.

Ciência e frustração

O desenho animado online “Radiskull & Devil Doll”, transmitido pela Schockwave.com, tem uma legião de admiradores. Seu personagem principal, um diabinho, virou até bichinho de pelúcia.

Na rede Blockbuster, um dos filmes mais alugados em DVD é “Fim dos Dias”, no qual o demônio quer conquistar a terra a partir de Nova York, na virada de 2000, mas é impedido pelo astro Arnold Schwarzenegger.

O demônio está na pele de Gabriel Byrne, aquele padre em crise de “Stigmata”, aliás, esse último está entre os mais vendidos.

Em “O Diabo – A máscara sem rosto”, lançado pela Companhia das Letras (229 pág; R$ 28), o professor do departamento de literatura da Universidade de Aoyama Gakuin, em Tóquio, Luther Link discute as mudanças na imagem do diabo (ele nem sempre usou chifrinhos e rabo) em função dos papéis que a Igreja e o Estado lhe atribuíram.

O guru “cult” Deepak Chopra, com mais de 10 milhões de livros vendidos no mundo, colou um anticristo em seu último livro lançado no Brasil, “Senhores de Luz”, da Rocco (296 páginas, R$ 30), escrito junto com Martin Greenberg.

Diante de tantos capetas para todos os lados, Paulo Coelho dá um conselho aos temerosos: “Existir, o demônio existe. O segredo é não escutá-lo. Seu melhor truque é achar que ele não existe”.

Publicado originalmente na Revista da Folha – 08/10/2000

Por Roberto de Oliveira e Silvana Nuti

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